Judeus jogam xadrez na idade média

(Artigo publicado na revista A HEBRAICA, Magazine VIII, Junho 1994, págs. 33-35).

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Através das épocas, o povo judeu conseguiu preservar suas particularidades e, ao mesmo tempo, manter intacto o seu caráter erudito. Na atualidade, são estudados de forma sistemática diversos tópicos que atingem à vida, econômica, social e cultural das diferentes comunidades da Europa; seus líderes espirituais e personagens mais destacados; e outras tantas dimensões de movimentos específicos como o messianismo, o criptojudaísmo ou “marranismo”, o “shabataísmo” e o chassidismo.

Realmente, é pouco o que sabemos sobre temas relacionados à vida cotidiana dos judeus, tais como superstições, feitiços, magia, educação e convívio familiar, características da vida sexual, participação em espetáculos públicos, passatempos favoritos, normas de alimentação, hábitos de saúde e higiene, relação com a morte, etc. Entre as diferentes formas de recreação e passatempo dos judeus na Europa ocidental abordaremos a atitude dos judeus para com o jogo de xadrez.

Contrariamente ao que todo mundo pensa, não existe evidência histórica que demostre que os judeus tivessem grandes conhecimentos de xadrez, e tudo parece indicar que este antigo passatempo surgido na Índia, foi adquirindo maior importância face ao próprio convívio com seus vizinhos, cristãos ou muçulmanos. Assim, não será exagero afirmar que os judeus, tanto sefaraditas como ashquenazitas, estabeleceram parâmetros de conduta perante este tipo de divertimento.

Em todos os períodos existiram judeus que se destacaram no xadrez. Alguns escreveram tratados teóricos sobre o jogo, e outros, ainda mais eruditos, nos legaram belos poemas sobre as regras do jogo e as diferentes formas de encarar uma partida. Segundo o historiador britânico Israel Abrahams: “Os judeus jogavam o mesmo jogo de xadrez praticado pelos seus vizinhos, exatamente com as mesmas regras e os mesmos tabuleiros”.

O XADREZ NA TRADIÇÃO RABÍNICA

A afirmação que o jogo de xadrez aparece citado em alguns tratados do Talmude da Babilônia, de fato não tem nenhuma base sólida, e podemos dizer que esta ideia surgiu por mero engano dos comentaristas e exegetas talmúdicos; que sempre tentavam explicar os termos ‘’nardshir” e “isqundari” mencionados na folha 61b do Tratado Ketubot. A natureza do “nardshir” aparece em obras escritas em língua árabe, sendo identificado com o jogo de “nard”; uma espécie de passatempo medieval com tabuleiro. As regras deste jogo foram explicadas pelo lexicógrafo e rabino italiano Nathan ben Yehiel de Roma (1035-1106), numa clássica obra de costumes denominada “Aruch”.

Uma íntima relação entre o “nardshir” e o xadrez já aparece em uma explicação de Rashi, o exegeta Rabi Shelomo ben Isaac de Troyes (1040-1105) ao Tratado Eruvim 61ª, onde associa-se “nardshir” com “isqaqis”. O significado oculto da palavra “isqundari” é desconhecido, embora haja quem acredite que o termo faz referência a um jogo recreativo de caráter lúdico, composto por um exército de pequenos cachorros.

Outro grande comentarista e talmudista do século 14, o rabino Nissim ben Reuven de Gerona (1310-1375) no “Sêfer Chassidim”’ (Livros dos Justos, folha 400), publicado post-mortem na Bolonha em 1538, translitera o “isqundari”  como “jogo de madeira composto de pequenas peças”, e não há dúvida alguma que ele pretende identificar o antigo jogo com o tradicional xadrez.

Pouco a pouco o xadrez foi ganhando popularidade na Europa, e como resultado disto, o jogo foi despertando suspeitas por parte dos rabinos. O sábio Maimônides, por exemplo, cita o jogo de xadrez no seu “Comentário sobre a Mishná” (Sanhedrim III, 3), e explica que o “shatranj” (xadrez) deve ser incluído na lisa dos passatempos proibidos para judeus, sempre que jogados por dinheiro. Ainda ele alerta as comunidades que “os jogadores profissionais indignos e sem credibilidade pública, deverão responder pelas transgressões nos tribunais”.

O rabino ashquenazita Kalonymos ben Kalonymos (1286-1328), autor da obra satírica “Even Bochan” (Fundamentos a prova, 1322) acerca dos judeus da região de Provença, condena por completo jogar xadrez apostando dinheiro ou mesmo sem apostar, apenas por divertimento.

Todas estas opiniões radicais exprimidas pelos rabinos da época medieval, não conseguiram modificar as atitudes gerais manifestadas pelos judeus no que diz respeito ao xadrez. Pelo contrário, a partir do século 16, o xadrez torna-se o passatempo preferido dos judeus no Shabat e nas próprias festividades judaicas, excluindo naturalmente o “Yom Kipur” (Dia do Perdão). Nestes dias festivos do calendário hebraico, somente as apostas em moedas eram proibidas, havendo outra forma de premiação, não necessariamente pecuniária.

Em tempos de distúrbios e tribulações, os rabinos proibiam todos os tipos de jogos, mas o xadrez quase sempre conseguia seu “nihil obstat” (permissão) para continuar na legalidade. Um exemplo disso aconteceu com os judeus de Forli, ao norte da Itália, entre 1416 e 1418. Eles se “auto-prescreveram” de não jogar dados, cartas ou qualquer outro jogo de apostas por espaço de dez anos. Nesta ocasião as únicas autorizações foram concedidas aos:

  1. Jogadores de dados ou de xadrez cuja identidade era duvidosa, e sempre que suas apostas não ultrapassassem os quatro “bolognini” de prata.
  2. Jogadores de cartas ou xadrez que jogavam em dias de jejum, e suas apostas não excediam um “quattrino”.

Muitas vezes, a comunidade interditava os jogos de loteria e apostas, mas excluía-se o xadrez. Isto aparece documentado na monumental obra “Pachad Itzhak” (O temor de Isaac, cap. III, fol. 54) escrito em Veneza pelo rabino e médico da comunidade Isaac Lampronti (1679-1756). Este livro, publicado em várias edições entre 1750 e 1840, nos informa que os três rabinos da comunidade de Cremona declararam que “…todos os jogos, a exceção do “isqaqui” (xadrez), são extremamente perniciosos, e os jogos são a origem de todas as aflições e transtornos ocasionados à comunidade”.

Como a situação destes judeus italianos piorou consideravelmente, o decreto da “kehilá” cremonense anunciava que “durante um ano, todos os jogos de apostas, a exceção do xadrez, estariam terminantemente proibidos”.

Devemos lembrar que algumas medidas semelhantes foram adotadas em outras comunidades: em Veneza em 1628, em Frankfurt após o incêndio de 1711, e também em outras kehilot menores da Europa.

A partir do século 15, principalmente nos países da Europa, achamos alguns judeus que faziam promessas de não voltar a jogar qualquer jogo de apostas, inclusive o xadrez; por um ano ou mais. Por outra parte, não eram somente homens os únicos jogadores de xadrez. O historiador Pietro Carreras na sua obra “Giuoco degli Scacchi” (1617), comenta acerca de uma jovem judia, excelente jogadora de xadrez, que morava no gueto de Veneza por volta de 1617.

“PAPA JUDEU” JOGA XADREZ

O xadrez foi parte inseparável de uma curiosa lenda medieval acerca do “Papa judeu”. Quatro crônicas nos relatam que no século 11, na pequena cidade de Mainz, situada sobre o rio Reno, vivia um renomado sábio judeu que fazia milagres, chamado Simão Hagadol (Simão o Grande). Este judeu teve um filho de nome Elchanan.

Certa vez, este rabino Simão de Mainz foi com sua esposa à sinagoga, deixando seu filho aos cuidados de uma jovem cuidadora. Sem entrar em detalhes, o menino sumiu, e pouco tempo depois foi entregue a um monastério. O pranto dos pais foi de cortar o coração, e o rabino jejuava constantemente implorando a Deus por piedade.

Paralelamente, longe de seu lar, o pequeno Elchanan ia crescendo dentro do Cristianismo, atingindo praticamente todas as hierarquias eclesiásticas possíveis, chegando a ser ordenado Cardeal e posteriormente Papa.

Este Papa, denominado Andreas na versão hispânica da crônica, sabia de sua origem judaica, e queria por todos os meios retornar à sua fé ancestral. Sem duvidar, entendeu que para aproximar-se ao Judaísmo precisaria trazer seu pai Simão Hagadol para Roma. Como fazê-lo? Nada melhor que decretar uma política antijudaica que atingisse a todos os judeus de Mainz, na Alemanha.

De um dia para outro o Papa (aliás Elchanan), determinou que os judeus não mais observariam o Shabat, não poderiam circuncidar seus filhos, teriam proibido de guardar os jejuns e dias festivos, etc. Como resultado destas injustas restrições, os judeus de Mainz decidiram enviar uma delegação de três sábios a Roma para reivindicar seus direitos perante o Papa. Entre os três judeus estava, naturalmente, o eminente rabino Simon de Mainz.

Os três judeus de Mainz entraram no luxuoso palácio do Papa, e na hora de prosternar-se (ajoelhar-se) diante da autoridade eclesiástica, foram poupados pelo Papa. Ciente do lugar que ocupava o rabino Simão naquela época, o Papa Andreas (Anacleto II) solicitou aos dois rabinos que deixassem a sua sala, pois gostaria de jogar xadrez com o rabino Simão de Mainz.

Esta lenda de acentuado cunho cristão, nos conta que o Papa Andreas conseguiu facilmente derrotar o rabino. Porém, o anônimo cronista traz ainda outra curiosidade sobre o jogo: No transcurso do mesmo, o rabino alemão reconheceu o Papa como sendo seu filho Elchanan, pois ele (Simão) lembrava perfeitamente os movimentos ensinados a seu filho durante sua infância. Sem dúvida, o sonho da conversão dos judeus da Alemanha na época das Cruzadas estava ainda latente neste fascinante relato.

Finalmente, como era de se esperar, o Papa judeu Andreas aboliu o decreto contra os judeus ashquenazitas e desapareceu subitamente de Roma, retornando a Mainz. Ele não apenas voltou a seu lar, como também a sua antiga religião. Para que os próximos Papas pudessem exercer melhor suas funções, este Papa judeu escreveu um curto livro sobre a fé cristã.

O xadrez invadiu as cortes europeias e cada idioma falado nos países do velho continente deu um nome diferente ao jogo. Desta forma o árabe (depois o hebraico), escolheou o termo “shahmat”; em obras escritas em catalão apareceu o “isqaquis” ou “isqas”; em livros italianos optou-se por “sqaqi”, “sqaqire”, “hisqaqi” ou “scacchi”, e na língua polonesa “tschekh” ou “szach”.

Finalmente, importante dizer que todas as peças do jogo de xadrez provém do árabe, sendo posteriormente adotadas pelo hebraico da seguinte forma: Rei (melekh), Rainha (malkah), Bispo (fil ou pil), Cavalheiro (suss, farash ou parash), Torre (ruq, merkavá ou migdal), Peões (reguel ou guibor).

Das fontes analisadas, fica claro que a maioria dos rabinos olhava o jogo de xadrez com certa desconfiança, principalmente quando jogado por dinheiro. Os jogadores profissionais eram considerados indignos e estavam sujeitos a serem julgados nos tribunais estabelecidos nas várias comunidades.

BIBLIOGRAFIA

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