(Artigo publicado originalmente no YOMAN CHINUCH – Boletim Informativo para Educadores da Área Judaica, Ano V, No. 17, Março 2002, sem paginação).
Atualmente, diversos cursos em Ciências da Educação e sua alma gêmea, a Pedagogia; são ministrados em quase todas as universidades do mundo. No entanto, poucos sabem que, há vários séculos, as diferentes formas em que os conteúdos destas ciências eram transmitidos foram temas de constante preocupação dos Sábios de Israel.
A educação pública e obrigatória, longe de ser uma invenção cristã do século 11, como afirmam pesquisadores ocidentais, já existia durante a compilação do Talmude, a lei oral do Judaísmo.
Todos aqueles que, de uma forma ou outra, nos dedicamos à educação cometemos o erro de atribuir extrema importância à bibliografia moderna, mencionando autores como Piaget, Bruner, Freinet, Erikson, Gardner, Dewey, Perrenoud, e tantos outros, e quase sempre achamos que os melhores teóricos da educação sabem responder às nossas dúvidas. Na maioria das vezes, construímos nossa biblioteca pedagógica com obras de pensadores e educadores contemporâneos. Não que eles não sejam relevantes para o progresso desta disciplina, porém, devemos se possível, desvendar e analisar outras fontes de informação mais antigas e menos conhecidas.
Portadoras de enorme prestígio e respeito na área educacional, as milenares fontes judaicas representam a vanguarda da pedagogia. Poucas vezes lembramos que nela aparece uma literatura repleta de páginas sagradas, que constituem uma verdadeira preciosidade no campo da educação. Não seria exagerado afirmar que os professores, coordenadores ou diretores de escola deveriam aprender e ensinar algumas destas memoráveis páginas do Judaísmo.
Nesta resenha analisaremos um texto de Baba Batra (21a), o último tratado da quarta ordem talmúdica denominada Nezikin (danos), cujos temas estão relacionados com a legislação civil e os procedimentos a serem seguidos em determinadas circunstâncias. Tratado Nezikin contém os ensinamentos de “Pirkei Avot” (Ética dos Pais), súmulas de cunho ético, moral e filosófico, expressas pelos sábios da Mishná, mas que não foram comentadas na forma de Guemará. É importante dizer que o Talmude tem dois componentes: a Mishná, primeiro compêndio escrito da lei oral judaica; e a Guemará, discussão da Mishná e dos escritos dos sábios tanaítas que frequentemente abordam outros tópicos.
Baba Batra 21a é um texto comentado por exegetas célebres como o rabino Shelomó ben Meir (Hameiri) de Perpignan (sul da França), e inclui um trecho que pode ser considerado uma pérola da literatura educacional. Há nele, uma série de normas e discussões exclusivas acerca da educação e cujo alcance surpreende pela atualidade, mesmo tratando-se de um texto antigo. O trecho em questão traz uma dúzia de sugestões pedagógicas feitas há 18 séculos, que ainda possuem enorme valor em nossa era globalizada e tecnológica.
De fato, a Torá (lei escrita no Judaísmo) aponta os pais biológicos como responsáveis principais pela educação dos filhos. Por isso, o Talmude levanta a questão das crianças órfãs, uma categoria de seres humanos desprotegidos, que teoricamente não teria acesso à educação.
Para resolver esta relevante questão, um rabino que exerceu a função de Sumo Sacerdote na época do Segundo Templo, o Rabino Yoshua Ben Gamla, criou a escola pública obrigatória em 64 d.e.c. O Talmude começa exaltando sua personalidade dizendo que “não fosse [Ben Gamla]. A Torá teria sido esquecida em Israel”.
Cabe salientar que, numa primeira etapa, as escolas e seus responsáveis (melamdei tinokot) se localizavam em Jerusalém. Porém, as crianças eram conduzidas à cidade de Davi somente pelos pais, ressurgindo novamente o problema dos órfãos. O rabino Yoshua Ben Gamla veio e resolveu esse impasse de forma tranquila: seriam construídas escolas em todas as cidades, sendo frequentadas por alunos de 6 e 7 anos. Essa disposição adotada permitiu, pois, superar dificuldades originadas pela “evasão escolar” de alunos desamparados.
A maioria dos estudiosos da cultura ocidental considera como início da escola primária os centros pedagógicos criados pela Igreja na Europa a partir do século 11. Estas entidades eram destinadas especialmente a crianças órfãs ou muito pobres. A proposta do sábio Ben Gamla antecede, em mais de um milênio, as medidas tomadas pela Igreja católica. E mesmo que não consideremos a versão do Talmude babilônico, e optemos pela versão que se encontra no Talmude de Jerusalém, o povo judeu se teria antecipado em mais dois séculos, pois segundo Ketuvot 8:11, a primeira escola pública para crianças foi atribuída ao mestre R. Simão Ben Shetach, irmão da rainha Shlomtzion, no século 1 a.e.c.
O Baba Batra 21a descreve também outros tópicos vinculados à educação fundamental e obrigatória. A mesma página do texto talmúdico estabelece três princípios básicos, dos quais dois deles são atribuídos ao sábio rabino Aba Arisha:
- O castigo escolar, caso seja necessário, deve ser brando.
- Estuda-se melhor em duplas (chavruta), pois a troca de informação é maior.
Segundo o Judaísmo talmúdico, para educar, às vezes é necessário punir os alunos. O castigo escolar adotado naqueles tempos era o que atualmente poderíamos denominar de palmatória, porém, diz o texto: “sempre deverá ser um açoite brando para os alertar” (maká kalá kedei lehaziram), mas jamais um golpe forte. As crianças jamais serão alertadas com chicote (shot), apenas com uma faixa (retzuá). Talvez seja o momento de evocar o velho ditado romano: “O tempora, o mores!”.
Para exercitar a aprendizagem, o estudo era realizado em duplas ou “chavrutot”. Tratava-se de uma técnica de debate que vigora até hoje nas academias de estudos religiosos ou “ieshivot” de todo o mundo. Há pesquisadores que acreditam que esta dinâmica de estudo tipicamente judaica foi uma das vertentes que inspiraram Freud a criar a psicanálise.
Um outro estatuto tem a ver com o número de alunos em sala de aula, e seu legislador foi o famoso rabino Raba bar Yosef. Segundo sua opinião, jamais uma sala de aula poderá abrigar mais de 25 alunos. Caso este número seja superior (até 40 alunos), o professor deverá ser ajudado por um “ajudante oficial” (reish duchna). Este último ensinamento foi adotado pela “Associação Nacional da Educação” (uma espécie de MEC) dos Estados Unidos, uns 18 séculos depois. Naturalmente, se uma determinação milenar como esta não fizesse sentido, não seria adotada.
Mas, o rico texto de Baba Batra 21ª não traz somente fórmulas prontas para atender a problemas educacionais. Há também polêmicas que ficam sem solução, tópicos que podem constituir-se em assuntos para serem debatidos em seminários ou congressos de Educação. Vejamos um exemplo.
Dois rabinos, Raba e Dimi, apresentam diferentes alternativas e dilemas pedagógicos, e o leitor deverá buscar sua própria resposta. Eis os dilemas:
1. Quer fazer diante de um professor novo, que é ótimo em conhecimento, no entanto, não possui suficiente experiência pedagógica? Por um lado, todo colégio pretende estimular uma concorrência saudável (positiva) na sua equipe docente, mas, por outro lado, sabemos que é sumamente importante criar uma escola cujos alicerces estejam sustentados na estabilidade. Devemos substitui-lo ou não?
2. Que fazer diante de uma situação em que temos um professor erudito, versado, um verdadeiro expert na matéria, e outro que conhece menos; porém é mais claro e mais didático nas suas explicações? Será que uma pessoa que domina perfeitamente certo assunto está automaticamente qualificada para ensinar?
Em termos meramente talmúdicos, a discussão se centra na seguinte pergunta: Será que a experiência em si mesmo poderá corrigir eventuais erros pedagógicos de um docente versado e conhecedor da disciplina, mas que jamais aprendeu didática?
É chegada a inexorável hora da escolha… com qual deles devemos ficar?
Pois bem, há aqueles que argumentarão que a experiência adquirida durante as aulas melhorará o desempenho do professor, e optarão pelo critério da erudição na escolha do docente. E, contrariamente, há aqueles que acharão que apenas erudição não é documento, e optarão pelo mestre menos conhecedor e menos profundo, porém mais claro e didático.
O Talmude, sempre fiel a seu estilo, não dá uma resposta a estas duas alternativas. É o próprio leitor quem deverá fazer a escolha. Não há dúvida de que os profissionais da educação acharão na leitura de Baba Batra 21a, um texto profundo de extremo valor para futuras reflexões.