A trivialidade dos atos nazistas durante o Holocausto

Em 1976 tive o privilégio de escutar pela primeira vez o jovem professor David Bankier (1947-2010), dos maiores especialistas da história do Holocausto. Extremamente polemico, ele explicava e legitimava determinados atos da política antijudaica do Terceiro Reich. Conforme sua teoria, nem toda a população alemã apoiava Hitler, Bankier inclusive inocentava os alemães; afirmando que esta sociedade não tinha forma de manifestar qualquer reação contra o que estava acontecendo.

Nas suas instigantes palestras, Bankier utilizava com frequência termos e expressões como a “normalidade aparente dos atos nazistas”, as “motivações econômicas justificadas” da cúpula nazista para reerguer o Estado pós 1ª Guerra Mundial, o uso de uma “propaganda sistemática direcionada”, e a criação de um “aparato tecnológico e jurídico” dentre outras expressões.

Neste artigo pretendo analisar alguns dos instrumentos estudados por Bankier e adotados pelos nazistas para concretizar o extermínio do povo judeu; instrumentos responsáveis por causar no povo alemão um aparente estado de normalidade.

  1. Em busca da dignidade perdida

A derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial chocou o mundo. Com a promessa de devolver aos alemães a dignidade perdida pela profunda crise econômica de 1929, Adolf Hitler ganhou as eleições democraticamente e tomou o poder em 31 de janeiro de 1933, tentando pouco a pouco de eliminar todos aqueles que fossem contrários ao seu governo nacional-socialista.

Motivado principalmente pelo antissemitismo europeu, o Führer incluiu entre seus inimigos o povo judeu, não poupando esforços para eliminá-los de seu caminho no rápido processo de restauração da Alemanha.  Sob o argumento que este povo representava a fonte de todo o mal pelo qual passavam os alemães, Hitler foi marginalizando e segregando paulatinamente a população judaica nas diversas cidades do país.

A propaganda publicitária e o direito vigente são apontados como armas eficazes para traduzir o sentimento geral do povo alemão. Determinadas condutas que outrora seriam reprováveis, tornaram-se aceitas pela maioria integrante daquele sistema social germânico.

Através de um resgate sintético das atrocidades cometidas pelo partido nacional-socialista contra os judeus, assim como a demonstração das principais ferramentas utilizadas por Hitler para difusão e execução do seu plano maquiavélico de extermínio; nosso olhar tem como objetivo entender se o aparente estado de normalidade criado pelo líder alemão era um fenômeno consciente ou inconsciente.

  1. A topografia do terror

No momento em que Hitler ascendeu ao poder, suas intenções de extermínio dos judeus não estavam ainda traçadas. Inicialmente, objetivava apenas retirar os entraves ao seu governo, que naquele momento estavam representados pelos ativistas comunistas e pelos socialdemocratas.

Adotando um discurso nacionalista e anticapitalista, com promessas de livrar a Alemanha da crise socioeconômica, Hitler foi conquistando dia-a-dia mais seguidores, parte através de seu carisma peculiar e parte pelo forte desespero da população em achar um líder que entenda as necessidades da hora. Segundo o linguista Victor Klemperer, a pobreza da linguagem do Terceiro Reich era gritante; “ela é pobre por princípio, como se cumprisse um voto de pobreza”.

A linguagem da Alemanha dos anos 30 possuía uma simplificação de estruturas sintáticas, substantivos e adjetivos com tendência a se confundir. Lê-se em Klemperer que os nazistas, com certa dose de sarcasmo e despudor, “afirmavam que só faziam o que a Constituição permitia, enquanto atacavam as instituições e as diretrizes do Estado e se lançavam furiosamente contra livros e jornais”.

A língua falada pelos nazistas, a LTI, era o idioma do fanatismo das massas e um instrumento de doutrinação, utilizada para fanatizar e sugestionar. Proliferam nela expressões que remetem à ideia de povo (volk), como festa popular, concidadão, compatriota, conterrâneo, próximo do povo, popular, estranho ao povo, provindo do povo. Para Klemperer, o discurso nazista não se dirigia ao intelecto, deixava de lado a inteligência, entorpecia a população. Segundo ele, a maior ferramenta do Reich era o fanatismo, buscando uma explicação racional e compreensível para fatos potencialmente explicáveis.

Valendo-se do incêndio do Reichstag (Parlamento) em 27 de fevereiro de 1933, acontecimento atribuído ao militante comunista holandês Martim Van der Lubbe (1909-1934), Hitler iniciou sua trajetória rumo ao poder. Assim, a partir deste momento conseguiu que o Presidente Paul von Hindenburg assinasse um Decreto denominado “Decreto para a Proteção do Povo e do Estado”, o qual cerceava liberdades fundamentais do povo alemão, notadamente a de imprensa e de agrupamento. Nesse mesmo “Decreto”, limitou-se o sigilo epistolar e a inviolabilidade do domicílio. Instruiu, para alguns casos, pena de morte bem como medidas de detenção preventiva contra os inimigos políticos, principalmente os comunistas. Também em 1933, ano em que Hitler foi nomeado Chanceler, estabeleceram-se medidas a fim de excluir os judeus da vida econômica e social alemã.

Em agosto de 1934, Hitler determinou que as Forças Armadas do país lhe jurassem lealdade e obediência total. Já no ano seguinte, impede que os judeus se alistem e sirvam ao Wehrmacht.

Em 15 de setembro de 1935, foram decretadas as “Leis de Nuremberg”. Neste conjunto de normas direcionadas ao povo judeu, foi determinada a privação de seus direitos políticos. As leis visam a “defesa e a honra do sangue alemã”, proibindo os casamentos entre judeus e arianos, as relações extramatrimoniais e o direito a usar símbolos do Reich. Além disso, os casamentos realizados no exterior foram considerados nulos.

Visando evitar a contaminação da raça ariana, os nazistas adotaram medidas que impedissem qualquer contato entre judeus e alemães. Por exemplo, mulheres alemãs com idade inferior a 45 anos eram proibidas de prestar serviços em casas de judeus. Os judeus também foram afastados de piscinas públicas, pois consideravam aqueles locais impróprios; permitindo uma aproximação indevida.

A partir de 1936, o ano das “Olimpíadas de Berlim” que consagraram o atleta norte-americano Jesse Owen, os médicos judeus foram impedidos de examinarem as partes íntimas das mulheres arianas.

Em 1938 foram confiscadas todas as carteiras de habilitação dos motoristas judeus, e no ano seguinte foram obrigados a permanecerem em casa após as oito horas da noite. Seguidamente, determinou-se a proibição de sair do distrito ou município em que eles estavam estabelecidos, assim como de utilizarem o transporte público em horários de movimento. Como testemunhou a jovem Anne Frank em seu “Diário”:

“A liberdade foi gravemente restringida com uma série de decretos antissemitas: os judeus devem usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carro, mesmo em seus próprios carros; os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde; os judeus só deveriam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietário judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de frequentar teatros, cinemas, ou ter outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de ir a piscinas, quadra de tênis, campos de hóquei ou a qualquer outro campo esportivo; os judeus eram proibidos de ficar em seus jardins ou nos de amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de visitar casas de cristãos; os judeus deveriam frequentar escolas judias, etc. Você não podia fazer isso nem aquilo, mas a vida continuava”.

Em 1939, com a conquista da Polônia, judeus foram obrigados a usar a estrela amarela para melhor identificação e posterior traslado aos guetos. Iniciava-se assim a fase da concentração, etapa preliminar à “Solução Final”. Com isso, a emigração da Alemanha que fora incentivada até 1939, passou a ser terminantemente proibida.

Uma vez estabelecidos nos guetos, os judeus foram proibidos de manter contatos com os que estavam fora dele. A falta de contato com o mundo externo, a escassez de comida para alimentar as pessoas ali confinadas; contribuíram para que a inanição, as doenças e morte por epidemias, sejam uma constante nas comunidades judaicas.

Durante o confinamento em guetos os judeus eram transferidos a campos de concentração, sendo obrigados a longas jornadas de trabalho em condições desumanas. Esses campos de concentração nazistas se assemelhavam ao regime militar, pois inicialmente fora imposto aos adversários políticos do nazismo, na intenção de reeducá-los. Mas, com o passar do tempo, o sistema de confinamento foi destinado também aos judeus, porém sem a finalidade de reeduca-los e sim para preparar este grupo para o extermínio que estaria por vir.

Como resultado das más condições a que eram expostos, muito trabalho e pouca alimentação, (além dos castigos físicos); muitos judeus pereceram nesse sistema antes mesmo de chegar aos campos de extermínio.

Para evitar qualquer tipo de reprovação por parte da população alemã, os campos de extermínio começaram a funcionar somente na Polônia, o verdadeiro “laboratório experimental” de Hitler e seus comparsas. Entre 1941-1942, foram estabelecidos pelos nazistas 6 campos de extermínio: Majdanek, Sobibor, Treblinka, Chelmno, Belzec e Auschwitz-Birkenau.

O extermínio dos judeus foi projetado e executado com a utilização das técnicas mais apuradas, nas mais variadas áreas do conhecimento. Conforme observa Morrison em sua obra “Filosofia do Direito”, técnicas sofisticadas de Engenharia, Administração e Química Industrial, tornaram mais eficientes e dinâmicas a produção da morte dos judeus nos campos de extermínio. Este autor ainda destaca acerca destes campos:

“Eram também uma extensão rotineira do sistema fabril moderno. Em vez de produzir bens, a matéria prima eram seres humanos e o produto final era a morte; o número de unidades diárias era cuidadosamente registrado nos gráficos de produção. As chaminés, símbolos do sistema fabril moderno, lançavam uma fumaça acre produzida por carne humana queimada”.

Segundo estatísticas, o Holocausto e a “Endlösung der Judenfrage” (solução final para a questão judaica), com sua política cruel e sistemática, burocraticamente organizada, foi responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus. Todos os números que existem são aproximados, visto que é impossível se chegar ao exato número do genocídio perpetrado pelos nazistas.

Além dos judeus a ira nazista também foi direcionada contra grupos de ciganos, homossexuais, Testemunhos de Jeová, deficientes e dissidentes políticos. Em concomitância com a “Solução Final”, Hitler implantou o programa T4, projeto destinado a fazer experimentos científicos, voltados ao extermínio imediato dos doentes mentais e portadores de deficiência, pessoas que, segundo a doutrina nazista, comprometiam a pureza da raça ariana.

  1. Instrumentos legitimadores do ideário nazista

Houve mecanismos essenciais para os nazistas alcançarem seus objetivos. A propaganda, o direito e a prática de desumanização, foram instrumentos fundamentais para o desfecho dos judeus na Alemanha. Afirma Wayne Morrison que “o Holocausto não poderia ter ocorrido sem a destruição das qualidades de solidariedade e empatia que Hume e outros entendiam como bases da vida moral” alemã.

A política antissemita, citando o pensamento de Daniel Goldhagen, continha um tríplice ataque à existência social do povo judeu. Ela destaca que todo ataque era sustentado primeiramente na poderosa propaganda nazista, estimulava maus-tratos físicos perpetrados contra os judeus e, finalmente, apoiava a separação legal em guetos e campos de concentração e extermínio. Com a implementação dessas condutas gradativas, os nazistas conseguiriam transformar os judeus em seres indignos da proteção do Estado, e desprezíveis aos olhos da população alemã.

Com campanhas publicitárias, os nazistas conseguiam desumanizar os judeus, tornando-os criaturas de menor importância social. Incutiam no imaginário alemão que os judeus eram a fonte da infelicidade (Die Juden sind unser üngluck), induzindo a população local a não cultivar em relação a eles qualquer sentimento de compaixão. Com isso, prepararam o campo fértil para a “Solução final”.

Para a transmissão da ideologia nazista, Hitler montou um ministério específico. Estabeleceu o “Ministério do Reich para esclarecimento Popular e Propaganda”, confiado a Joseph Goebbels, responsável por disseminar os ideais do Partido no poder.

A propaganda nazista teve um papel crucial no extermínio dos judeus: O regime utilizou até o final a propaganda de forma efetiva para mobilizar a população no apoio à sua guerra de conquistas. A propaganda era a alma do negócio, foi essencial para dar a motivação àqueles que executavam os extermínios em massa de judeus e de outras vítimas do regime nazista. Também serviu para obter o consentimento de milhões de pessoas a permanecerem como espectadoras frente à perseguição racial e ao extermínio em massa da qual eram testemunhas indiretas.

Em 12 de maio de 1933, o jurista Carl Schmitt (1888-1985), estimulava o afastamento dos judeus da vida pública:

“As novas determinações acerca de funcionários médicos e advogados, limpam a vida pública de elementos estrangeiros não arianos […] Neste grande e profundo processo de mudança […], nada heterogêneo deve intrometer-se. Perturba-nos de forma prejudicial e perigosa, mesmo com suas boas intenções. Nós (alemães) aprendemos acima de tudo, a diferenciar o amigo do inimigo”.

O direito foi o maior instrumento legitimador das ações do Nazismo. Com a “Lei de Restauração do Funcionalismo Público” de 7 de abril de 1933, os judeus foram afastados do serviço público. Em setembro desse mesmo ano, foram proibidos de participar das atividades culturais e da imprensa. Milhares de decretos administrativos foram editados com a finalidade de promover a degradação e exclusão dos judeus, e a população se sentia confortável diante da ação nazista, não se preocupando em questionar a legitimidade ou ilegitimidade daquelas condutas do seu governo. Afinal, questionar o que é legal implicaria pensar e questionar o que é moral e ético.

Certamente, as leis, regulamentos e medidas da década de 30 roubaram aos judeus seus meios de subsistência, empobrecendo, desmoralizando e isolando-os do ambiente social em cujo habitat agiam livremente até pouco tempo atrás. As leis tornaram os judeus socialmente mortos, transformando-os em material subumano; em cogumelos venenosos que devem ser arrancados urgentemente do jardim.

O efeito da legislação nazista sobre os judeus é demonstrado pelo professor argentino Daniel Rafecas na sua obra “A ciência del Derecho y el advenimiento del Nazismo: el perturbador ejemplo de Carl Schmidtt”. Lá ele afirma:

“De este modo, permitió a los nazis sentar las bases formales y materiales para los pasos posteriores del proceso de destrucción del colectivo judío, esto es, la cancelación sistemática de sus derechos; la expoliación económica; la concentración en zonas determinadas, o bien en guetos; la deportación fuera de los confines del territorio; y finalmente, el exterminio físico de millones de niños, hombres, mujeres y ancianos, por la sola condición de encajar en algunas de las categorías de “judío” diseñadas por Stuckart y Lösener, sancionadas por Frick y Hitler y legitimadas inmediatamente por Schmidtt y otros juristas fieles al nazismo”.

O Nazismo concebia o Estado nacional como um corpo orgânico detentor de uma hierarquia de estruturas autoritárias administradas por membros do partido, com um líder absoluto à frente. Por isso, a vontade desse líder é sempre soberana e o direito é o instrumento eficaz para exprimir essa vontade. Ao receber amplos poderes, o Reichstag transformou-se em mera peça decorativa, com a obrigação de apenas confirmar a vontade do ditador.

Impossível não destacar aqui o pensamento do Prof. Norberto Bobbio na sua obra “Teoria do ordenamento jurídico” acerca da norma fundamental. Segundo ele, a norma estabelece o que é preciso obedecer, como a norma é produto do conjunto de forças políticas de uma época, poderiam a seu critério, estabelecer um novo ordenamento, segundo ele; reduzindo o direito à força. Fato perceptível no que concerne ao Holocausto: a norma jurídica produziu a legitimidade da ação nazista.

  1. A normalidade aparente do sistema nazista

O carisma do ditador e a popularidade do partido, aliadas às mais altas técnicas publicitárias, bem como a edição de normas tendentes a obter a finalidade do Partido, levaram o povo alemão a aceitar, e muitas vezes cooperar com o ideal nazista.

Walter Funk, Ministro da Economia nazista, relata ao psiquiatra americano Leon Goldensohn em sua obra “As entrevistas de Nuremberg” (2006), quão envolventes eram as palavras do Führer e que “o magnetismo pessoal de Hitler atraía milhões de pessoas”. E nesse contexto era fácil acreditar que tudo o que dele partia era o melhor para o povo alemão. Hitler conduziu o Holocausto de tal forma que a maioria de seus “súditos” não percebia ou não queria perceber a extensão das barbaridades por ele cometidas. Parte de seus homens julgados em Nuremberg, ao confidenciar a Goldensohn, não se sentiam responsáveis pela ação nazista. Diziam, como se lê em muitos trechos da obra, “não conhecer ou não participar do assassinato dos judeus”.

Alguns dos entrevistados diziam-se meros cumpridores de ordens. A maioria deles ocupava altos cargos militares. E esses nazistas que comandavam as atitudes agressivas contra os judeus, justificavam que haviam feito juramento de bem servir à pátria e o povo alemão. E explicavam que “se as ordens eram aquelas, deveriam ser cumpridas”. Esta afirmação nos coloca diante do pensamento da filósofa Hannah Arendt, na sua obra “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal”. Neste texto ela comenta que Eichmann, quando questionado acerca do envio dos judeus aos campos, não se sentia culpado pela morte de nenhuma daquelas pessoas, e se qualificava, em todo momento, como um mero funcionário público; cumpridor de ordens legítimas emanadas de seus superiores.

Em vários trechos da obra de Arendt, Eichmann se posiciona como um burocrata cumpridor dos seus deveres e não como “um monstro”, como se tentava demonstrar naquela ocasião. Daí, a demonstração da “banalização do mal”, já que sequer os próprios executores do Holocausto estavam convictos do mal que praticaram. A partir dos vários depoimentos dos nazistas, percebe-se que o mal praticado durante a dominação do regime, muitas vezes, não era do conhecimento dos executores, pois não tinham consciência de que praticavam algo reprovável, mas tão somente executavam o que lhes era determinado.

Em vários trechos da obra de Arendt, destaca-se a convicção do acusado Eichmann de que, na realidade, não cometeu mal algum contra os judeus. Ao contrário, afirmava que trabalhou muito na preservação da vida deles, principalmente quando atuava no Departamento da Emigração do Reich. Cumpria as ordens que lhe eram determinadas e continuava a cumpri-las quando lhe mudaram de função. Fazia, portanto, o que deveria fazer.

O efeito de normalidade produzida no povo alemão bem como nos executores da obra de Hitler, pode também ser atribuída à forma como tudo foi arquitetado. O sistema fabril estabelecido pelo regime para a destruição do povo judeu facilitava a condição de não responsabilidade perante o resultado final do processo, pois cada um era responsável por apenas uma parte dele, não tomando conhecimento da totalidade do contexto, por isso, quem conduzia não poderia ser responsabilizado pelo resultado da morte. Mas, a rigor, a verdade é outra. Segundo Morrison: “A perfeita organização da moderna rede ferroviária europeia levava um tipo de matéria-prima para as fábricas. E o fazia como se transportasse outro tipo de carga. Nas câmaras de gás, as vítimas inalavam um gás venenoso que, em geral, provinha de cápsulas de ácido cianídrico produzidas pela indústria química alemã avançada. Engenheiros projetaram os crematórios; administradores conceberam o sistema burocrático que funcionava com um dinamismo e uma eficiência que deixaria com inveja as nações mais atrasadas. O próprio plano geral era um reflexo do moderno espírito científico às avessas. O que ali se via era nada menos que um gigantesco esquema de engenharia social”.

O pensador Zygmunt Bauman (1925-2017), afirma que todo o conteúdo do Holocausto provinha de um estado de normalidade, e que os caminhos utilizados pelos nazistas estavam em conformidade com tudo aquilo que se sabia da civilização até então. Para o famoso filósofo judeu polonês “cada ingrediente do Holocausto – todas as muitas coisas que o tornaram possível – era normal; normal não no sentido do conhecido, de mais um espécime numa grande classe de fenômenos há muito tempo descritos em todos os seus aspectos, explicados e conciliados (ao contrário, a experiência do Holocausto era nova e desconhecida), mas no sentido de estar em conformidade com tudo que sabemos sobre nossa civilização, seu espírito condutor, sua prioridade, sua visão de mundo imanente – e de observar as maneiras ideais de buscar a felicidade humana juntamente com uma sociedade perfeita”.

O conjunto de instrumentos utilizados pelos nazistas na consecução de seus objetivos principais, transformou suas ações ilegítimas em legítimas, ocasionando na população e nos integrantes do regime, um sentimento e consciência de que tudo o que foi feito visava a promoção de um bem maior: a restauração da dignidade do povo alemão. E, justamente nesse contexto, a eliminação de semelhantes não poderia ser considerada como reprovável, pois esses cidadãos eram a causa de todo sofrimento do povo alemão naquela ocasião.

Considerações finais

Com seu carisma, Hitler fez crer que as medidas tomadas durante seu governo, destinavam-se a fortalecer o povo alemão, através da eliminação de toda “decadência” representada pelos judeus, não se descuidando de destacar a necessidade de eliminação dos doentes mentais, como também dos portadores de enfermidades incuráveis, e de todos os elementos indesejáveis, reforçando a ideia da necessidade de uma purificação da raça alemã.

No cenário de terror criado pela Alemanha nazista, o direito, a imprensa e a tecnologia avançada foram áreas indispensáveis para a difusão e consecução da ideologia nazista. Eles se mostraram instrumentos essenciais para refletir a aparente normalidade experimentada pelo cidadão alemão ante as atrocidades cometidas pelo Partido.

Não se pode afirmar, se os instrumentos utilizados pelos nazistas refletiam também o desejo contido da população. Talvez o maior crime dos nazistas tenha sido apresentar aos alemães um “bode expiatório” pelos sofrimentos, no caso os judeus, e, diante disso, torturar e exterminar o que taxaram de “grande vilão”.

Naturalmente, isto fez que o pecado ou crime, fosse legitimado pelo poder vigente, poder que convence a todos que suas ideias deveriam ser encampadas ao pensamento coletivo. Sem poder de contestação e, ao contrário, com adesão a ponto de haver imediato e incontestável apoio às atrocidades como se normalidades fossem. É de fácil constatação, entretanto, que o sofrimento experimentado pelo povo alemão em decorrência da crise econômica, associado à poderosa propaganda estatal manipuladora, facilitaram a manipulação por parte dos nazistas, para que a população de bem aceitasse a “Solução final” para a questão do povo judeu, transparecendo uma normalidade presenciada por todo o mundo.

Bibliografia

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Faingold Reuven, Endlösung – Eufemismo para “Solução Final”. https://reuvenfaingold.com/endlosung-eufemismo-para-solucao-final/

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