ROSE VALLAND (1898 – 1980) – O RESGATE DO TREM DAS ARTES

Poucas pesquisas abordam o tratamento que tiveram as obras de arte durante o período da Segunda Guerra Mundial. Somente nos últimos anos o tema vem ganhando maior relevância. Dentre os tópicos que despertaram o interesse dos historiadores existe um que ganhou ainda maior destaque: os heróis do patrimônio artístico da Humanidade. Elas são pessoas que não pouparam esforços para resgatar obras de arte ou evitar que as tropas alemãs roubassem os acervos dos países conquistados, principalmente na hora em que a Whermacht invadia a Bélgica, Holanda, França e os países nórdicos.

A ESTUDANTE ROSE VALLAND

Segundo o pesquisador Robert M. Edsel, autor do livro “Caçadores de Obras Primas”, entre estes discretos heróis do patrimônio artístico da Humanidade estava a jovem Rose Valland; uma estudante francesa que estagiava no “Museu Jeu de Paume” em Paris.

Rose Antoine Marie Valland nasceu em 1898 e se criou na zona rural de Saint Étienne de Saint Geoirs. Estudou Belas Artes em Lyon e logo seguiu para Paris, onde se sustentava com dignidade dando aulas particulares, enquanto estudava para graduar-se na “École des Beaux Arts”, na “École du Louvre” e também na famosa Sorbonne, fundada em 1257.

Já em 1939, pouco antes de eclodir a Segunda Guerra, Rose aceitou trabalhar no “Museu Jeu de Paume” de graça. Eram tempos difíceis para achar trabalhos. A constante ameaça de guerra gerou um clima de recessão e desconfiança em relação ao futuro. Nesta época, Rose ajudou Jacques Jaujard, o Diretor dos Museus Nacionais, na retirada de objetos de arte (esculturas, cerâmicas e quadros), que pertenciam ao Estado francês. Ela fugiu de Paris quando os alemães entraram em maio de 1940, mas retornou à cidade e voltou a preencher seu posto voluntário.

Meses depois da divisão da França, Jacques Jaujard pediu para que Rose continuasse no “Jeu de Paume” observando as movimentações nazistas e “relatar tudo o que fosse importante”. Assim, ela começou uma amizade com o Conde alemão Wolff Metternich para tentar garantir que os objetos de arte pilhados pelos alemães ficassem em solo francês. No decorrer da ocupação da França, três salas do Louvre já estavam repletas deles, e outras obras de arte confiscadas aos judeus, foram encaminhadas para o Museu onde Rose estagiava.

Em 1 de novembro de 1940, os nazistas se apossaram do “Museu Jeu de Paume”. Na obra “Le Front de l´Art”, (texto inédito no Brasil); Rose Valland relata a pilhagem dos alemães ao museu: “Caminhões e mais caminhões carregados de objetos de arte chegavam, descarregavam, e tudo era levado pelos soldados”. Por espaço de quatro anos militares alemães aceitaram a presença diária de Rose no museu, apenas pelo fato que a funcionária francesa era uma grande conhecedora de arte.

Rose não se incomodou em trabalhar sob a vigilância dos alemães. Todas as noites ela anotava as peças que os nazistas estavam retirando do acervo com destino à Alemanha e à Áustria. Pegava documentos, os fotografava em casa e os devolvia no dia seguinte, sem levantar nenhuma suspeita. As informações eram repassadas a Jacques Jaujard, que mantinha contato com os membros da Resistência Francesa que combatia os alemães.

A FUGA DOS QUADROS

Com o passar do tempo, a frequente movimentação de Rose no “Museu Jeu de Paume”, ia despertando suspeitas. Ela havia flagrado oficiais alemães roubando obras para sim mesmos. O risco de ser pega era eminente e crescia a cada dia. Em fevereiro de 1944 o oficial alemão e colecionador de arte Bruno Lohse (1911-2007), a surpreendeu, tentando decifrar o endereço do documento de desembarque de um lote de peças que seria enviado ao exterior. Lohse a encarou dizendo: “Você poderia ser executada por indiscrição” e ela lhe respondeu que “ninguém aqui é idiota o bastante para ignorar o risco”.

Rose Valland sabia muito bem que Bruno Lohse amava e cobiçava obras de arte. Das 22.000 telas confiscadas pelos nazistas, ele escondera quatro quadros no porta-malas de seu veículo dois anos antes. Ele entendeu a indireta e ficou quieto, sem agir contra a jovem e astuta funcionária do museu.

Em 1 de agosto de 1944, com a guerra já começando a virar a favor dos Aliados, o coronel Kurt von Behr (1890-1945), ordenou a evacuação de todos os soldados alemães do “Museu Jeu de Paume”, como também todas as peças de arte que ainda estivessem em Paris. O plano era levá-las de trem. Os soldados jogavam as belas telas dentro de caixotes de madeira sem embalagem. Rose Valland comenta que “havia pânico em seus rostos”. O coronel von Behr estava escoltado por homens com metralhadoras quando a viu dentro do museu.

A funcionária francesa, fiel testemunha do saque, pensou que seu fim se aproximava. Desesperada, achou que seria fuzilada naquele instante. Mas, de repente um soldado alemão desviou a atenção de Kurt von Behr dizendo: “Todos os caminhões estão cheios, Senhor”. A resposta foi imediata: “Arrume mais, idiota”.

Quando o oficial von Behr voltou-se para falar com Rose, ela já tinha escapulido. Rapidamente, repassou as informações sobre o acontecido a Jacques Jaujard, que por sua vez as remeteu à Resistência Francesa. A partir daí seguiu-se uma persistente operação para bloquear a saída do trem com as respectivas obras de arte.

O TREM DAS ARTES

Na obra “Caçadores de Obras Primas”, Edsel conta que, no dia seguinte, em 2 de agosto de 1944, cinco vagões com 148 caixas de quadros foram seladas na estação de Aubervilliers, nos arredores da capital francesa. Rose dissera que o trem 40044 tinha como destino o Castelo de Kogl, perto de Vöcklabruck, na Áustria e o depósito Nikolsburg, na Moravia.

Porém, o enorme volume de bens carregados no trem e uma inesperada greve de ferroviários, impediram a partida. Desta vez, a sorte havia jogado do lado da França. Somente em 12 de agosto de 1944, exatamente 10 dias após a carga ter chegado à estação, os alemães conseguiram controlar as linhas dos trens. Mas, naquela hora, a greve já tinha feito seus estragos. Os trens interurbanos que conduziam cidadãos tinham prioridade àqueles de carga. Quando o carregamento das obras pode finalmente partir, não passou do aeroporto da capital. Um defeito na locomotiva gerou novo atraso de 48 horas.

Resolvido esse problema do atraso, surgiu outro obstáculo: uma sabotagem da Resistência Francesa provocou um engarrafamento no sistema ferroviário. Assim, o trem com as obras de arte não tinha como se locomover.

A 2ª Divisão Armada do Exército Livre Francês chegou ao local poucos dias depois, e o general Phillippe Leclerc de Hauteclocque (1902-1947), avisado pela Resistência, conseguiu enviar 36 dos 148 caixotes com obras de Renoir, Degas, Picasso e Gauguin para o “Museu de Louvre”. Somente dois meses depois, o restante dos caixotes foi devolvido ao “Museu Jeu de Paume”.

ROSE VALLAND COLABORACIONISTA?

No mesmo dia em que Paris foi libertada, uma multidão de franceses invadiu o “Museu Jeu de Paume”. A própria Rose Valland impediu que a turba entrasse no porão, onde as coleções eram guardadas, e consequentemente foi acusada de colaboracionista. Ao grito “ela está escondendo alemães”, teve que responder à altura. Ameaçada com uma arma nas costas, ela precisou mostrar à turba que “nada havia ali, além de caldeiras, tubos e obras de arte”.

Com as informações de Rose Valland e Jacques Jaujard, o curador do “Metropolitan Museum” de Nova York, James Rorimer (1905-1966), um ex 2º tenente do exército americano, foi um dos destaques na difícil tarefa de recuperar as obras de arte roubadas pelos nazistas. Seu grupo resgatou peças do Castelo de Neuschwanstein, na Baviera; e enfrentou bombas instaladas em minas de sal e carvão onde estavam escondidas peças nas cidades de Siegen, Merkers e Heilbronn, na Alemanha; e na mina de sal de Altaussee, na Áustria.

A árdua tarefa de recuperação de obras de arte durou de abril a julho de 1945. A operação salvou quadros clássicos como a “Madonna de Bruges” de Michelangelo e o “Autorretrato” de Rembrandt. Graças ao trabalho de Jaujard nos bastidores, também a “Mona Lisa” de Leonardo da Vinci escapou do exílio na Alemanha e na Áustria. Trocou seis vezes de lugar até ser devolvida ao “Museu de Louvre” onde atualmente se encontra.

Já no final da Segunda Guerra, a funcionária Rose Valland ganhou um cargo remunerado no “Museu Jeu de Paume”. O governo francês a condecorou com a “Legião de Honra” e a “Comanda da Ordem das Artes e Letras”. Pela sua bravura ainda recebeu a “Medalha da Resistência”. Rose Valland também foi agraciada com a “Cruz da Ordem ao Mérito” outorgada pela República Federal da Alemanha. Em 1951, os EUA a lembraram outorgando-lhe a cobiçada “Medalha da Liberdade”.

Em 1961, Rose Valland publicou um livro intitulado “Le front de l´art” sobre suas experiências em tempos de guerra. Sete anos depois, mesmo estando aposentada, continuou a trabalhar na restauração e recuperação de acervos e obras de arte, até falecer em 1980, aos 82 anos de idade.

BIBLIOGRAFIA

Rose Valland, Le Front de l’art 1939-1945. Éditions Plon 1961. Réédition 1997.

Rose Valland, La Résistance au musée de Corinne Bouchoux. Geste éditions, 2006.

Rose Valland, Capitaine Beaux-Arts, bande dessinée de Catel Muller, Emmanuelle Polack et Claire Bouihac. Éditions Dupuis, 2009.

La Mémoire spoliée, les archives des Français, butin de guerre nazi puis soviétique de Sophie Coeuré. Éditions Payot 2007.

L’exode des musées, histoire des œuvres d’art sous l’occupation de Michel Rayssac. Éditions Payot 2007.

Le Pillage des œuvres d’art en Europe de Lynn H Nicholas, Survival de James Rorimer, Abelard Press, 1950.