No livro “Gustav Mahler – Um Coração Angustiado” publicado em Belo Horizonte em 2010, o psicanalista Arnoldo Liberman procura achar um eixo literário despreocupado com a ordem cronológica ou a enumeração de dados biográficos do grande maestro. Nesta obra, o também musicólogo visa conduzir seu leitor, (conhecedor ou não de música clássica); a aprofundar-se na alma do homem, do músico, no seu modo de enxergar o mundo, seus questionamentos e dúvidas, suas paixões e explosões de humor, seu processo criativo de sinfonias, sua conturbada vida familiar, suas posições políticas e seu caminho até o almejado cargo de diretor da famosa “Ópera de Viena”.
É justamente através das citações de trechos de cartas trocadas entre Mahler e seus amigos, mestres e, principalmente, de sua jovem esposa Alma (20 anos mais nova), que o universo mahleriano é apresentado como uma realidade tangível, focada na busca permanente de respostas a questões filosóficas, psicológicas, comportamentais, sociais e políticas do século 19.
Sem dúvida alguma, o movimento da alma humana em busca do universal e absoluto, tem a música de Gustav Mahler como um de seus melhores veículos e representações. Para Liberman, “suas idas e vindas, suas harmonias e dissonâncias representam as almas daqueles que, num mundo marcado pelas contingências e passagens, escutam a mudez do mundo, mas também suas plenas possibilidades. Pensando assim, a música é a imagem de um homem que grita. Que desespera. Que rejubila. Enfim, que vive”. Dessa forma, a música de Mahler que reflete a expressão de um homem curioso, escorrega nos mais recônditos limites da experiência humana.
Gustav Mahler (1860-1911) encarna o homem corajoso e audaz que, partir de sua obra monumental, exprime a face humana regozijando-se frente à beleza e, quase ao mesmo tempo, se dilacera ao enxergar a impossibilidade de um desfecho completo.
Na obra “Gustav Mahler. Um coração angustiado”, Liberman consegue construir a trajetória do músico vienense, traçando o seu perfil espiritual, sua alma atormentada. Dividida em “quatro movimentos” o autor faz pequenas reflexões sobre as fontes orais utilizadas para a escrita de cada capítulo. Liberman apresenta a Mahler tendo em vista seus caminhos e descaminhos espirituais, colocando como pano de fundo a Viena do início do século 20 e suas personagens mais ilustres como o escritor Thomas Mann, o psicanalista Sigmund Freud, o músico Arnold Schönberg, os artistas Gustav Klimt e Oskar Kokoschka, o poeta Rainer Maria von Rilke, entre outros, com quem Mahler teve diversos encontros.
Mahler não sofreu jamais o antissemitismo vivenciado por Arnold Schönberg. Em 1921, quando este último decidiu passar o verão em Mattsee, perto de Salzburg, lhe foi negado hospedagem por serem os judeus, pessoas indesejáveis: “Tive que cancelar minhas primeiras férias de verão após cinco anos trabalhando, abandonei o lugar em que pretendia encontrar paz para trabalhar; depois fui incapaz de recobrar a paz mental”, comentou Schönberg. Meses depois escreveu a Wassily Kandinsky: “Finalmente, este ano [1921] tenho aprendido uma lição que jamais olvidarei: Não sou alemão nem europeu, de fato, a duras penas sou um ser humano (ao menos os europeus preferem o pior de sua raça a mim), pois sou um judeu”. Em 1932 Schönberg irá compor a oratória “Moses und Aron” proclamando sua crença monoteísta e, finalmente, após retorno oficial ao Judaísmo em Paris em 1933, assumirá seu compromisso de salvar os judeus europeus deportados a campos, vítimas do Nazismo.
Liberman apresenta a trajetória de Gustav Mahler sob uma ótica judaica, partindo da relação do músico com o “mysterium tremendum” da existência. Assim, a música, para o grande compositor, relaciona-se com as possibilidades de sua própria redenção. Caminhando pelas margens de um abismo existencial, Mahler é o que poderíamos chamar de um homem trágico. Essa realidade trágica relaciona-se também com sua origem, com seu “ser judeu” e sua vocação ao exílio e a experiência do deserto. Como afirmou o renomado ensaísta argentino Santiago Kovadloff, num ensaio sobre Moisés e o espírito trágico do Judaísmo: “Trágico é o homem que, sentindo-se inocente, se sabe sentenciado”.
A condição trágica de Mahler aparece em uma de suas tantas cartas: “Mas se o homem sofre em silêncio, um Deus me deu o dom de expressar minha dor” (Liberman, pág. 22). Porém, Liberman chama a atenção para o fato de que o músico não era um “religioso no sentido tradicional”. O Deus de Mahler é um deus silencioso, como é aquele dos personagens do escritor Franz Kafka (1883-1924), sempre um “destinatário do lamento que não dá respostas concretas” (Liberman, pág. 23).
Numa de suas cartas a sua esposa Alma, o músico dizia: “os homens razoáveis são insuportáveis. Eu não amo mais que àqueles que exageram […]”; nesse exagero “está meu sincero desejo de colocar Deus no lugar dos ídolos de barro” (Liberman, pág. 24).
Mahler compreende a música como uma celebração mística, “talvez parcialmente em reação à tradição pré-romântica da música como um espetáculo hedonista” (Liberman, pág. 28), e deixa tal aspecto de sua obra vir à tona numa carta que escreve ao músico Max Marschalk (1863-1940) em 1896: “Sei que enquanto eu não puder dar forma a uma experiência interior por meio de palavras, certamente não a escreveria de maneira musical. A necessidade de se expressar musicalmente, sinfonicamente, não começa senão com as emoções nebulosas que se abrem ‘ao outro mundo’, ao mundo em que as coisas já não estão separadas pelo tempo e o lugar” (Liberman, pág. 28).
Arnoldo Liberman sugere que é com sua Oitava Sinfonia, o “Veni Creator Spiritu”, que Mahler chega a uma sublime manifestação do sagrado (hierofania): “o absoluto: tão ansiado – se revela a ele, mas ao mesmo tempo, continua inacessível, distante, sempre misterioso” (Liberman, pág. 38). Para o biógrafo, Gustav Mahler faz música para poder neutralizar o silêncio, algo que para sua alma parece ser insuportável, e também, para vislumbrar o Absoluto. Mas “embora toda sensação de Absoluto seja religiosa (Novalis), talvez nada seja mais Absoluto – juntamente ao desejo – que esse silêncio […] Mahler mantêm o olhar ao desejo, ao silêncio e à morte” (Liberman, pág. 39).
“Mahler é o músico dos existencialistas”, escreve Liberman, “porque o que eles, desde Kierkegaard a Kafka, buscaram em Mozart – a mais pungente melancolia, a exata descrição do ‘paraíso perdido’ –, Mahler encarnou” (Liberman, pág. 40).
Numa carta à sua esposa Alma datada em 1909, Mahler deixa entrever seus encantos místicos: “Tudo aponta, a princípio obscuramente e depois passo a passo, para esse momento supremo que, embora além da expressão e mesmo apenas suspeitado, toca o próprio centro do sentimento […]. porém, o que sentimos e suspeitamos, mas nunca alcançamos, é indecifrável. Àquilo que nos leva com sua força mística, o que todo aquele que veio ao mundo sente com absoluta certeza como centro de seu ser, ao que Goethe chama ‘o eterno feminino’, ou seja, o lugar de repouso, a meta, em oposição ao esforço e à luta para alcançar tal meta (o eterno masculino), tens muita razão de chamá-lo de a força do amor” (Liberman, págs. 40-41).
A eterna sensação de exílio vivido por Gustav Mahler leva-o à conversão religiosa ao Catolicismo em 1897. Segundo Arnold Liberman, sua conversão se deu por “múltiplas razões de busca individual e de estratégia profissional” (Liberman, pág. 63). Além de ser conveniente para sua ascensão profissional, o Cristianismo atraía Mahler pelo fato de oferecer uma promessa de redenção, após uma profunda fase de sofrimentos.
É importante lembrar que a Europa do século 19 convivia com permanentes surtos antissemitas. Contudo, sua esposa Alma, escrevia: “Mahler nunca negou sua origem judia. Ao contrário, destacou-a. Era um crente no cristianismo, um judeu cristão, e arcou com as consequências. Eu era uma pagã cristã e saía imune” (Liberman, pág. 58).
Mesmo sendo um judeu convertido ao Catolicismo, Mahler continuava sendo um homem marcado pelos “porquês” da existência. E eram exatamente estes “porquês” que possibilitavam ao músico seus maiores estímulos criativos. Como diz o autor, “para Mahler, qualquer resposta era sempre provisória, qualquer plenitude estava submetida ao cruel espelho da fugacidade, qualquer estremecimento era tudo isso e nada mais que isso: um estremecimento” (Liberman, pág. 67). Com Mahler “é preciso aprender a tolerar a explosiva mescla de angústias e beleza, da vida e da morte, que são seus pentagramas” (Liberman, pág. 70).
Arnoldo Liberman não pretende esgotar o tema, ele apresenta a trajetória musical de Gustav Mahler aproximando-a do percurso da alma do compositor austríaco, sempre errante e à procura de sentido profundo. A obra de Liberman é uma contribuição para o limitado campo das biografias de músicos eruditos, e um marcante testemunho de que por trás de um grande homem, há sempre uma sede infinita de conhecimento.
Bibliografia
Liberman, Arnold, “Gustav Mahler – Um Coração Angustiado”, Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2010.