“Meu nome é Francisco Wichter, Feiwel, era meu nome em iídiche. Fui o prisioneiro número 69.218. Sou judeu e acredito nos dez mandamentos. Porém, os horrores vividos me ensinaram que existe um mandamento a mais: Sobreviverás! Essa foi a minha palavra de ordem e a de todos os que sobreviveram. Essa foi a força que nos manteve e que sustenta tudo aquilo que irei contar”.
Com estas palavras, o único judeu vivo da “Lista de Schindler” que mora, hoje, na Argentina, começa seu relato autobiográfico. O sobrevivente Feiwel Wichter leva ainda um número tatuado no braço. É o número da sorte – acredita. Mas, talvez o destino reservado para Francisco Wichter fosse estar sempre à prova; essas providências da vida que se revelam somente naqueles momentos de extrema pressão, de longas tribulações e dos piores augúrios.
Sobrevivente de meia dúzia de campos de concentração, Wichter é um homem de sólidos princípios. Depois de perder toda sua família na guerra e se salvar por instintos milagrosos, entrou com o número 371 na famosa “Lista de Schindler”, mundialmente conhecida através do filme de Steven Spielberg.
Nascido no vilarejo de Marski, na Polônia, em 1926, era o filho mais velho de um sapateiro judeu. Tinha quatro irmãs – Hanka, Rosa, Zlota e Sara – e um irmão de nome Elias. Quando a Alemanha do Terceiro Reich invadiu Varsóvia, em 1 de setembro de 1939, a família Wichter fugiu rumo à zona rural, escondendo-se e resistindo até 1943. Durante a operação-relâmpago na cidade de Varsóvia, o pai de Francisco foi preso e enforcado pelos nazistas. Dias depois deste trágico episódio, a família decidiu reunir-se com outros judeus da região de Belzitz, no centro do país.
Num encontro familiar de tios, primos e amigos, foi decidido que Feiwel e outros nove jovens se esconderiam para tentar sobreviver à guerra. Os demais, a maioria crianças pequenas, adultos e velhos, não se esconderam e foram deportados, desaparecendo nas câmaras de gás. Ele interpretou esta decisão de caráter familiar como uma espécie de décimo-primeiro mandamento, o mandamento de permanecer vivo.
Francisco (Feiwel) Wichter passou meses vagando pelos bosques e florestas da Europa. Foi uma época terrível. Guiado por um sexto sentido e, para não morrer na grande prisão que era a Polônia, decidiu entregar-se aos alemães, sendo deportado para os campos de Belzitz, Poniatov, Budzin, Mieletz, Wieliczka, até ser enviado para o campo de Plaszow, na Cracóvia. A vida de Feiwel Witchter iria se cruzar com a de Schindler.
Plaszow era um pequeno povoado nos arredores de Cracóvia. Em dezembro de 1941 os nazistas construíram ali um campo de trabalho e de concentração. Por ser próximo, fazia parte de um futuro plano de evacuação do gueto de Cracóvia. Em 13 de março de 1943, este plano foi implementado com extrema crueldade e todos aqueles judeus que não pereceram na evacuação foram confinados em Plaszow.
Quando, em setembro de 1944, os administradores de Plaszow receberam ordens de desativar o campo devido ao avanço das tropas russas (o que significava mandar os seus habitantes para outros campos de concentração onde seriam mortos), Oskar Schindler convenceu-os, através de subornos, que necessitava desses operários especializados. No mesmo ano, o American Jewish Joint Distribution Committee, junto com a comunidade judaica da então Palestina e a comunidade judaica da Hungria, conseguiram constituir um Comitê em Istambul, que, por sua vez, abriu também outro escritório em Budapeste. Segundo Wichter, foi desse escritório de Budapeste que partiu uma comitiva de judeus para fazer uma proposta concreta a Oskar Schindler: ele receberia “dinheiro, bastante dinheiro, como também garantias e promessas”, caso ajudasse os judeus a fugir dos alemães”. Assim nasceu a “Lista de Schindler”.
Quem era Oskar Schindler? Alemão filiado ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores, ele era um ex-membro da Inteligência e do serviço de espionagem do Wermacht (exército alemão) para os territórios da Polônia e Checoslováquia. Experiente militar de carreira e homem de negócios, estava sempre presente nos encontros promovidos pela cúpula nazista. Casado com Emilie Pelzl, ele protegeu 1.200 judeus da Cracóvia ao “adotá-los” como operários em sua fábrica de panelas de metal, localizada à Rua Lipowa 4, bem perto do gueto da cidade.
Oskar Schindler havia assumido o controle de uma fábrica de panelas confiscada de judeus da Cracóvia, na qual prisioneiros judeus do campo de Plaszow eram enviados pelos nazistas para trabalhar sem nenhuma remuneração.
Em relação a seu trabalho na fábrica dos Schindler, Wichter comenta: “A rigor, entre os 1.200 que estávamos na fábrica (1.000 homens e 200 mulheres), muitos não tinham o que fazer. Eu mesmo não tinha trabalho e tive que inventar um. A fábrica poderia funcionar perfeitamente com 500 operários. As 200 mulheres nunca trabalharam, não tinham nada para fazer. Formamos um grupo de 12 pessoas para limpar o lugar e fazer tarefas de carga e descarga. Encomendaram-nos também outra tarefa: levar carvão até a usina. A fábrica possuía usina própria muito bem montada, era uma enorme antiga fábrica de judeus que tinha calefação no inverno. Então, alguém levava batatas à cozinha, escolhia duas bem grandes e as amarrava a meus joelhos por baixo das calças. Assim, sem passar fome, poderíamos reparti-las com os demais”. Witcher ainda explica: “Como Schindler não tinha nenhum preparo, três judeus se ocuparam de administrar a fábrica em seu lugar. Porém, o grupo de operários que trabalhava mudava constantemente. Os assassinatos e as deportações começaram a dizimar as pessoas. Schindler não gostou disso…”.
Sem nenhum conhecimento prévio na área industrial, longe de ser assessorado por algum empresário polonês e ciente da falta total de experiência para poder administrar sua fábrica, Schindler convenceu o sanguinário oficial Amon Goth (1908-1946), comandante de Plaszow e um dos mais temidos membros da Schutzstaffel (SS), a manter “permanentemente” seus operários na fábrica. Este pedido possibilitou a salvação de várias vidas judias. Goth e Schindler haviam desenvolvido um tipo de amizade que permitiu ao empresário alemão colocar os judeus que trabalhavam para ele fora do alcance letal de Goth, num subcampo à parte, dentro de Plaszow.
Com a rápida aproximação das tropas soviéticas em setembro de 1944, este subcampo foi interditado e todos recolhidos ao campo principal, mas Schindler subornava Goth com dinheiro e produtos do mercado negro para que seus operários continuassem vivos. E, quando o campo propriamente dito foi fechado, ele não mediu esforços para que os “Schindlerjuden” fossem transportados a uma fábrica de serviços básicos de guerra na Checoslováquia, para não serem brutalmente assassinados.
Amon Goth se tornou famoso ao ser retratado no filme “A Lista de Schindler” pelo ator Ralph Fiennes. Uma das cenas mostra algumas de suas crueldades, como o hobby de matar judeus do campo atirando com um rifle da varanda de sua casa. Em outra cena no mesmo local, depois que o campo é libertado, Goth é empurrado de cima de uma cadeira para ser enforcado pelos soldados russos. Na verdade, ele seria enforcado num local próximo dali, após julgamento por um tribunal militar de crimes de guerra na Polônia, em 1946.
Em 1945, já encerrada a 2ª Guerra, ainda enfrentando dificuldades, mas, com a ajuda de uma organização sionista, Wichterconseguiu fugir e chegar à Itália. De lá embarcaria junto com sua esposa rumo à Argentina, um lugar promissor, porém distante, onde tinha parentes vivos. Importante lembrar que o Consulado argentino em Roma lhe havia negado o visto por ser judeu. Sem grandes alternativas, decidiu tentar entrar ao país via Paraguai.
Wichter mora na Argentina desde 1947. Sempre agradeceu ao casal Schindler, em especial a Emilie, por lhe ter salvado a vida. Emilie e Oskar moravam juntos em Buenos Aires até 1957, ano em que se separaram. Ele deixou a Argentina rumo à Alemanha, onde faleceu em 1974. Emilie lá continuou, mesmo em precária situação econômica.
A repercussão obtida pelo filme “A Lista de Schindler” de Spielberg, grande sucesso de bilheteria lançado em 1993 e ganhador de sete Oscars, motivou Wichter a registrar por escrito sua história pessoal na obra Undécimo Mandamiento, publicada na Argentina pela editora Emecé, em 1998.
Em 11 de agosto de 2001, em longa entrevista concedida ao jornal La Nación, Francisco Wichter revelou detalhes ocultos da “Lista de Schindler. Nela, ele lamenta a partida de Emilie Schindler para a Alemanha, onde acabou sendo hospitalizada após sofrer um derrame cerebral. Wichter desabafa: “Lá ela ficará sozinha novamente; aqui (na Argentina) pelo menos tinha a mim; tinha mais pessoas, tinha seu ambiente, estava contente. Para que fazer uma viagem tão longa?” E cita as diferenças entre o filme de Spielberg e a realidade retratada em seu livro, acima citado. Em sua opinião, por não ser um documentário, o filme não está obrigado a ser totalmente fiel à realidade. Mas afirma que o maior objetivo do filme é contar a história da “Lista” e isso o faz com riqueza de detalhes.
Ao ser lançado em circuito comercial, o filme lhe causou uma comoção pessoal enorme. Todos os que o assistiram choravam copiosamente, chegando a soluçar. Wichter confessa: ‘Depois de ter assistido à película, uma noite saí de casa e fui tomar um pouco de ar, pois não conseguia dormir. O filme estava ainda fresco na minha memória, repetia-se e repetia-se, sem parar”.
Já em idade avançada, Francisco Wichter optou por escrever sua história pessoal. Teve dois filhos e netos, na Argentina. Seu filho mais velho já faleceu. No livro revela que, até a projeção do filme de Spielberg, ele não falava dos judeus da Lista. Era um episódio oculto, doído, que muito envergonhava aos judeus. Ninguém gostava de falar nem ouvir sobre o tema. O tempo foi passando. O enorme sucesso obtido pela obra do cineasta judeu americano foi responsável direto pelas homenagens recebidas pelo casal Schindler.
O verdadeiro papel de Emilie Schindler (1907-2001) foi muito mais central do que aquele que o filme transmite. Ela se empenhou muito para obter alimentos, resgatou judeus abandonados em vagões de trem e lutou bravamente para que os operários do marido tivessem o necessário para sobreviver.
Wichter conheceu Emilie nas conferências e eventos organizados em torno do filme. Inicialmente, ela aparecia junto a Enrique Sapoznick, um sobrevivente do campo de concentração e extermínio de Auschwitz. Pouco tempo depois, uma denúncia da televisão israelense o acusou de haver colaborado com o “Anjo da Morte”, o Dr. Joseph Mengele. O médico nazista foi responsável pelas experiências médicas praticadas em Auschwitz com prisioneiros judeus. A Sherit Hapleitá expulsou Sapoznick da associação, e ele faleceu pouco tempo depois.
Francisco Wichter se reencontrou com Emilie Schindler diversas vezes, presentando-a com presentes e dinheiro. Ele sempre a contatava por telefone ou a visitava na sua casa. Quando em novembro de 2000 Emilie sofreu o derrame, a mídia argentina, tendenciosa e antissemita, chegou a acusar a comunidade judaica de tê-la esquecido.
Isto não era verdade. O Hospital Israelita de Buenos Aires já tinha atendido Emilie em algumas oportunidades antes do incidente de forma gratuita. A B’nai B’rith da Argentina, uma entidade central da comunidade judaica, pagava as despesas de moradia e um subsídio em dinheiro para viver. O Estado de Israel também ajudava Emilie a se manter, tendo-lhe outorgado uma pensão vitalícia e a Alemanha contribuía, por sua vez, com US$ 650 mensais. No final de sua vida, aos 93 anos de idade, Emilie não mais falava espanhol e se comunicava somente em alemão, sua língua-materna.
Emilie foi homenageada por várias organizações judaicas pelos seus esforços durante a 2ª Guerra Mundial. Em maio de 1994, ela recebeu a condecoração dos “Justos entre as Nações”, outorgada pelo Yad Vashem – Museu de Holocausto, em Jerusalém, juntamente com Miep Gies, a mulher que escondeu Anne Frank e sua família em Amsterdã durante a guerra. No final do filme “A Lista de Schindler’, Emilie coloca uma pequena pedra sobre o túmulo de seu marido, Oskar Schindler, juntamente com muitos dos “Schindlerjuden”.
Emilie Schindler morreu num hospital em Berlim, em 5 de outubro de 2001. Ela está enterrada no cemitério de Waldkraiburg, na Alemanha, próximo a Munique. Em sua lápide estão gravadas as datas de nascimento e óbito, uma cruz e as seguintes palavras: “Wer einen Menschen Rettet, Rettet die Ganze Welt”, ou seja, “Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”, um ensinamento extraído do Talmud. Como prova da sua gratidão, Francisco Wichter sonhava em preparar uma festa de aniversário para Emilie, alguns meses antes que ela completasse 94 anos. Infelizmente, seu desejo não pôde ser realizado.
Bibliografia:
Bruschtein, Luis, Sobrevivir para contar la historia. Página 12. Lunes 11 de noviembre de 2002. Internet: www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-12612-2002-11-11.html
Crowe, D. M., Oskar Schindler: The Untold Account of His Life, Wartime Activities, and the True Story Behind the List. Cambridge, MA: Westview Press, 2004.
Keneally, Thomas, Schindler´s Ark. Published as Schindler List. Hodder & Stoughton Australia 1982.
Pasquini, Gabriel, El hombre que se salvó gracias a la lista de Schindler. La Nación, 11 de agosto de 2001, pág. 1 e cont. na pág. 17.
Wichter, Francisco, Undecimo mandamiento: Testimonio del sobreviviente de la Lista de Schindler. Editorial Emecé. Buenos Aires 1998.