Curador, colecionador e amigo de banqueiros numa frança contaminada pelo vírus do antissemitismo, Charles Ephrussi promoveu pintores impressionistas, como Renoir e Degas.
Edição 82 – Dezembro de 2013
Verdadeiro ícone da Europa do século 19, era assíduo frequentador dos salões parisienses, amigo do pintor Paul Baudry e do poeta Jules Laforgue. Inspirou Swann e Proust e foi também pioneiro na difusão da arte japonesa. Além disso, Charles Ephrussi foi autor da biografia de Dürer e editor da Gazette des Beaux-Arts.
Ephrussi – o “Rei do trigo”
A saga da família Ephrussi tem suas raízes em Odessa, na Rússia czarista. O lugar era famoso por suas escolas rabínicas e sinagogas, ricas em literatura e música, que constituíam um verdadeiro imã para judeus empobrecidos dos shtetlach1 da Galícia.
Charles Joaquim Ephrussi (1793-1864) tinha dois filhos do primeiro casamento: Leon e Ignace; e mais quatro do segundo: Michel, Maurice, Thérèse e Marie. Ao crescerem, as seis crianças trabalhariam como financistas ou se casariam em dinastias judias. Na década de 1850, Charles Joaquim planejou sua expansão a partir de Odessa, convertendo seu comércio de grãos em um empreendimento considerável, que monopolizaria o mercado de trigo.
Em 1860 a família Ephrussi se tornara a maior exportadora de grãos do mundo. Num paralelo à família de James de Rotschild, que, em Paris, era tido como Le Roi des Juifs (O Rei dos Judeus), os Ephrussi eram vistos como Les Rois du Blé (Os Reis do Trigo). Eram judeus com seu próprio brasão de armas: uma espiga e um barco heráldico, com três mastros e velas enfunadas. A meta dos Ephrussi era fechar uma rede de contratos e financiar projetos enormes: pontes sobre o Danúbio, ferrovias através da Rússia e da França e docas e canais para escoar as águas. Ephrussi & Company se transformaria, de uma casa comercial bem sucedida, em uma empresa internacional de finanças. Cada acordo obtido com um governo, cada novo negócio com algum arquiduque, cada cliente obrigado a se comprometer gerava uma respeitabilidade crescente, era um passo à frente para progredir nos negócios da época.
Por volta de 1857, dois filhos de Ephrussi, Leon (1826-1871) e Ignace (1829-1899), foram enviados de Odessa para Viena, a capital do Império Habsburgo. Estabelecidos numa imensa casa no centro da cidade, lá permaneceram por 10 anos, indo e vindo entre as duas cidades. Seguidamente, coube a Ignace cuidar dos negócios dos Ephrussi, no Império Austro-húngaro, a partir de Viena. Ao filho mais velho, Leon, foi incumbida a condução dos negócios desde Paris.
O ano de 1871 foi terrível para a família de Leon Ephrussi, que morre do coração. Casado com Mina Lindau (1824-1888), deixou quatro filhos: Jules, Ignace, Charles e Betty. Esta última, a filha menor, já casada com o jovem banqueiro judeu, Max Hirsch Kahn, também morreria no parto da filha Fanny naquele ano fatídico.
Charles Ephrussi em Paris
Charles (1849-1905), um dos filhos de Leon Ephrussi, tinha 21 anos quando foi morar à Rue Monceau, uma artéria principal na qual viviam abastados parisienses. Nessa rua moravam também vários judeus, formando uma colônia de imigrantes, um verdadeiro complexo de casamento endógamos, com seus serviços comunitários e afinidades religiosas. Além dos Ephrussi moravam na Rue Monceau, entre outros, Adolphe de Rothschild, os Camondo, os Cattaui, todos financistas como os Ephrussi, e Émile Justin Menier, experiente político membro da Assembleia Nacional da França. ,
O número 81 da Rue Monceau abrigava o Hotel Ephrussi. Foi precisamente lá que os netsuquês, miniaturas japonesas entalhadas em madeira e marfim, citados na obra de Edmund de Waal, “A lebre com olhos de âmbar”, começaram sua jornada. Foi lá, também, que Charles Ephrussi iniciou sua carreira de curador, editor e crítico de arte, bem como de marchand e mecenas dos maiores artistas impressionistas.
Paris asfixiava Charles. Fica em Viena durante dez anos com seus pais, irmãos, o tio Ignace e a tia Emilie e seus três primos. Todos eles aprendem vários idiomas, mas em casa falam francês, nunca iídiche. Sabem que precisam desses idiomas para viajar a Odessa, São Petersburgo, Berlim, Frankfurt e Paris. Frequentam galerias de arte e montam a cavalo. Os meninos aprendem esgrima e os primos fazem dança. Charles Ephrussi, desde os 18 anos, possui o apelido de Le Polonais, o “pé-de-valsa”.
Em seu livro, Edmund de Waal descreve Charles, ao voltar de Viena para Paris: “É bonito, de estatura mediana, com uma barba escura bem aparada, que tem algo de ruivo… Ele tem o nariz dos Ephrussi, grande e curvo, e a testa alta de todos os primos. Seus olhos são de um cinza escuro, bem vivos, e ele é encantador. Vê-se como se veste bem, com uma gravata bem arrumada, e então, ouve-se sua voz: ele conversa tão bem quanto dança”.
A família sabe que Charles não foi talhado para a Bolsa. Há muitos primos nos escritórios da Ephrussi & Company. Ele é um leitor voraz que tem aptidão para longas conversas com intelectuais e homens cultos.
Charles tem seu próprio apartamento na casa da família, em Paris. Ele sabe falar, tem dinheiro e tempo de sobra e vai à Itália para conhecer a cultura do Renascimento.
A obra Rosa e Azul foi realizada na bela casa dos Cahen d´Anvers, no número 66 da Avenue Montaigne, em Paris. Foram agendadas inúmeras sessões de minucioso trabalho até final de fevereiro de 1881, quando o retrato estivesse completo. Em 4 de março, Renoir escreveu a Théodore Duret: “Parti imediatamente após terminar o retrato das meninas Cahen, tão cansado que nem lhe sei dizer se a pintura é boa ou ruim”.Os dois quadros encomendados a Renoir, de Irène e das meninas menores, foram expostos no Salão de 1881. Mesmo assim, o retrato Rosa e Azul não foi do agrado dos Cahen, que demoraram a pagar modestos 1.500 francos, e colocaram a obra numa área secundária e menos transitada da casa.
Dez anos depois, em 1891, em depoimento de Alice (a filha menor), já casada com o general Towsend of Kut, a mesma relembraria: “O tédio das sessões era compensado pelo prazer de vestir o elegante vestido de renda”.Alice viveu até os 89 anos e morreu em Nice, em 1965. Elizabeth teve um fim trágico: divorciada duas vezes, converteu-se ao cristianismo. Mesmo assim, foi enviada pelos nazistas para Auschwitz, morrendo a caminho do campo de extermínio, em 1944, aos 69 anos de idade.
As encomendas a Renoir fizeram com que outros artistas, amigos de Charles, ficassem desconfiados. Degas foi severo, chegando a desabafar: “Monsier Renoir, o senhor não tem integridade. É inaceitável que pinte por encomenda. Agora o senhor trabalha para financistas, passeia com Monsieur Ephrussi; o próximo passo será expor na Mirlitons com Monsieur Bouguereau!”.
A aflição cresceu ainda mais quando Charles Ephrussi começou a comprar quadros de outros artistas, como Gustave Moreau. O marchand judeu havia mudado de artista em busca de novas sensações. Paralelamente, Charles vai encontrando seu lugar naquela imensa, complexa e esnobe cidade, Paris.
Antissemitismo em Paris
Na década 1880-1890, na França, escândalos financeiros eram atribuídos aos judeus. Chegaram até a circular boatos de que o colapso de 1882 da Union Générale (um banco vinculado à Igreja) tivesse ocorrido por causa das maquinações judaicas.
O clã dos Ephrussi foi um dos alvos preferidos. A Ephrussi & Company exercia um poder extraordinário na Europa. Durante uma crise, a ausência dos irmãos Ephrussi era sinal de pânico na Bolsa. Para fazer recuar as perseguições, a família ameaçava inundar o mercado com grãos em reação aos pogroms na Rússia.
O jornalista francês, Édouard Drumont (1844-1917),antissemita declarado e virulento, registrou em seu livro, La France Juive: “A audácia com que esses homens tratam essas enormes operações, que para eles são meras brincadeiras, é algo incrível. Com uma simples assinatura, Michel Ephrussi compra ou vende 15 milhões em petróleo ou trigo”. Nessa obra, considerado o livro de cabeceira dos antissemitas franceses, que vendeu 100.000 cópias no primeiro ano de publicação, Drumont “ensinava” os franceses a identificar um judeu e a se proteger da “ameaça iminente” que eles supostamente representavam.
Os Ephrussi se consideravam totalmente parisienses, mas Drumont não pensava assim. Ele desabafava: “Judeus, vindos dos guetos da Europa, agora estão instalados como senhores, em residências históricas que evocam as lembranças mais gloriosas da antiga França...”.
De acordo com Drumont, Charles e seus irmãos, cidadãos de Odessa, Viena e Paris, “sugavam” o sangue da França. Charles é visto por Drumont como um especulador no mundo da literatura e das artes.
Seus irmãos e tios também são duramente criticados, e suas tias (todas casadas com aristocratas franceses), ferozmente ridicularizadas.
O “Affaire Dreyfus” (1894-1895), cuja história e detalhes são amplamente conhecidos, convulsionou a França e polarizou Paris durante doze anos. Alfred Dreyfus, oficial judeu do Estado Maior francês, foi acusado de espionar para os alemães com base numa evidência forjada. Ele foi levado à Corte Marcial e considerado culpado, embora fosse evidente que a prova era falsa. Dreyfus foi expulso do exército diante de uma multidão enfurecida que exigia sua execução aos gritos de “Mort aux juifs” e foi enviado à Ilha do Diabo para cumprir prisão perpétua em uma solitária.
A campanha para rever o caso e solicitar novo julgamento de Dreyfus começou imediatamente, provocando uma violenta reação antissemita. Os jornais da França declaravam abertamente que os judeus desrespeitavam a justiça. Seu patriotismo fora impugnado: ao apoiar Dreyfus, estavam provando que eram judeus em primeiro lugar e franceses por circunstância.
Em 1895, pouco tempo depois do caso Dreyfus, o coronel Picquart descobriu que outro oficial francês, o major Walsin Esterhazy, estava por trás da falsificação da prova. Quando a informação chega à imprensa, o exército não tem outra saída a não ser levar Esterhazy à Corte Marcial. Mas os juízes militares exoneram Esterhazy já no segundo dia. Acreditavam que as dúvidas levantadas contra a sentença imposta a Dreyfus atingiriam em cheio as Forças Armadas.
Há mais denúncias de que as “provas” secretas contra Dreyfus eram um embuste. Após apelo apaixonado do escritor Émile Zola ao Presidente da República, em seu famoso artigo, J´accuse, publicado no jornal L´Aurore, em janeiro de 1898, Dreyfus foi trazido de volta a Paris para novo julgamento. Em 1899, na ocasião do segundo julgamento do oficial – uma farsa total – Charles Ephrussi recém completara 50 anos.
Émile Zola também foi perseguido na França. A polícia parisiense achava que poderia estar escondido na casa dos Ephrussi, até que finalmente foi detido através de mandato judicial e condenado por seu libelo “criminoso”. Sem hesitar, Zola foge para Londres. Alfred Dreyfus somente seria finalmente inocentado em 1906.
Em Paris, houve rupturas nas relações entre os pró e os contra Dreyfus, amizades rompidas e famílias separadas trocando hostilidades. Entre os amigos artistas de Charles Ephrussi, Edgar Degas se tornou o mais selvagem antidreyfusista, e parou de falar com Charles e com o pintor judeu, Pissarro. Paul Cézanne estava convencido da culpa de Dreyfus, e Renoir, já magoado, continuou a se manifestar hostil a Charles e seu apoio à “sua arte judia”.
Os Ephrussi eram, obviamente, dreyfusistas. A sobrinha de Charles, Fanny, filha da irmã caçula, Betty, se casara com Theodore Reinach, historiador de uma proeminente família de intelectuais franceses.
O irmão de Theodore, Joseph Reinach, era o principal proponente na defesa de Dreyfus. Portanto, parte da ira de Drumont estava dirigida ao “judeu Reinach”, a personificação do francês indesejado. Joseph Reinach também havia sido destituído de sua patente militar por uma Corte Marcial, espancado na saída do julgamento de Émile Zola e se tornado alvo de uma campanha nacional de difamação extremamente violenta.
A morte do Marchand
Charles Ephrussi tinha o coração fraco como seu pai. Numa gravura feita por Jean Patricot em 1899, ele olha cabisbaixo, introspectivo, barba bem aparada, vestindo uma gravata presa por uma pérola. Vive envolvido com a música e é patrono da Société des Grandes Auditions Musicales. Vai diminuindo o ritmo de seus escritos, embora fosse extremamente minucioso quanto ao que devia ser publicado. Na virada do século 19 parou de comprar quadros, exceto a bela pintura de Monet, “Estrada para Pourville”, feita na costa da Normandia.
Faleceu em 30 de setembro de 1905, em Paris, aos 55 anos. Carregando o caixão estão seus irmãos, seu sobrinho Theodore Reinach e o marquês de Cheveniers. Todos os obituários elogiam sua delicadeza e retidão de caráter.
Encerramos com as palavras do filósofo Marcel Proust, contemporâneo de Charles. Ao ler o obituário na Gazette, afirmou: “Quem não conheceu M. Ephrussi passa a amá-lo, e quem o conheceu fica cheio de recordações”.
Bibliografia
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Ephrussi, Charles, Étude sur le Songe de Poliphile (Venise 1499 et 155, Paris 1546). Paris: L. Techener, 1888.
Ephrussi, Charles, Le Vicomte Both de Tauzia. Gazette des Beaux-Arts 38 (1888): 158-160.
Marguillier, Auguste. “Charles Ephrussi.” Gazette des Beaux-Arts 34 (1905): 353-360.
Marques, Luiz (org), Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand: Arte Francesa e Escola de Paris. São Paulo: Prêmio, 1998, págs. 124-141.
Waal, Edmund de, The hare with amber eyes: A Family’s Century of Art and Loss. New York: Farrar, Straus & Giroux 2010. [A lebre com olhos de âmbar. Editora Intrínseca. Rio de Janeiro, 2011].