Os judeus de Lisboa e a “Lioneira da corte”

Acompanhando a moda das dinastias reais europeias, as cortes dos monarcas portugueses D. João I (1384-1433), D. Duarte (1433-1438) e D. Affonso V (1438-1481) eram luxuosas, coloridas e extravagantes. Peças de teatro, cancioneiros, competições esportivas, música trovadoresca, astronomia, medicina, ciências, caça, jogos e lazer em geral, faziam parte das várias atividades oferecidas pela corte à aristocracia, uma elite que girava ao redor do rei e seu círculo íntimo.

Sem dúvida, a vida atrativa dos cortesãos portugueses era usufruída apenas por uma pequena parcela da população que determinava o estilo de vida no decorrer da Idade Média e no início dos tempos modernos. Dentre os diversos episódios vinculados à vida da corte, abordaremos apenas dois em que notamos a participação direta dos judeus.

Uma “Lioneira” na corte

Não sabemos qual teria sido o percurso percorrido pelos judeus para ocupar-se da manutenção dos leões da corte e desdobramentos: alimentação dos felinos, limpeza das jaulas e traslado dos animais de um lugar a outro. É bem possível que fossem tarefas de responsabilidade de poucas famílias judaicas.

Através das descobertas do Prof. Itzhak Baer, sabemos que estas ocupações existiam na Espanha entre 1340-1370, pois em Saragoça “o rei outorgava privilégios a judeus sapateiros, joalheiros e até a um cuidador de leões”. No Reino de Aragão a profissão de cuidador e domesticador de leões existia, e inclusive após pogroms de 1391, o filho do cuidador de leões da comunidade de Barcelona foi nomeado conselheiro. A pesquisadora Amada Lopez de Meneses, descobriu um documento, no qual “o judeu Jucef Coni serviu à corte real como cuidador de leões na corte de Aragão”.   

Em Portugal, não há documentos específicos citando tarefas similares àquelas desempenhados pelos judeus. Os documentos que explicarei preenchem um espaço vazio na história dos judeus de Portugal. São dois documentos guardados no ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo) em Lisboa, e neles presenciamos uma forte discussão entre os reis de Portugal e a comunidade judaica por conta da manutenção da “Lioneira da Corte”.

Manutenção da “Lioneira”

O primeiro documento é um documento de chancelaria do rei Affonso V (1438-1481). O texto nos conta que vários judeus lisboetas foram até o rei para reclamar que a tributação imposta à comunidade pela manutenção da “Lioneira da Corte” é alta. Inconformados, argumentam que além de ser uma tarefa humilhante para o judeu, é injusto o monarca impor aos membros da comunidade a obrigação de arcar com as despesas da Lioneira (ANTT, Chancellaria de Affonso V, Liv. 2, fol. 15v).

A primeira pergunta que formulamos é a seguinte: Que parte da tributação imposta aos judeus é destinada à manutenção da “Lioneira”? Resposta difícil, principalmente por falta de fontes. A tributação não determina um valor fixo de manutenção. Ela devia mudar de tempos em tempos, conforme as circunstâncias. A leitura do texto ensina que essa manutenção não era uma tarefa fácil, pois atingia um custo diário de 25 reais. Comparando, uns 25 reais era o salário diário de um alfaiate ou um ferreiro, já um barbeiro tirava 21,6 reais.

Não é possível saber qual era o tipo de carne utilizado para alimentar os leões. Apenas sabemos que o pedido dos judeus de diminuir a tributação foi atendido pelo rei, embora ele tivesse delegado o tema para seu “paaçeiro” (homem do Paço) Álvaro Pires, o responsável pelos gastos de alimentação da “Lioneira”. A negociação de fato aconteceu e ambas as partes teriam ficado satisfeitas diante do novo valor determinado, 3.000 reais por ano.

Segundo o texto, os judeus pagariam anualmente a Álvaro Pires 3.000 reais pela manutenção da “Lioneira”, certamente um valor mais baixo que o anterior. Lembremos que uma manutenção diária de 25 reais em 30 dias atingiria 750 reais mensais e 9.000 reais ao ano. A rigor, estamos falando de 1/3 menos do valor inicial. Que seria possível comprar em Lisboa com 3.000 reais? Segundo o historiador Oliveira Marques, autor de “A sociedade medieval portuguesa” (Lisboa, 1981), pág. 150, na capital lusa era possível comprar 40 pares de botas (80 reais o par) e 30 arreios completos para cavalos (100 reais cada arreio).

Outra pergunta que não quer calar é acerca do motivo pelo qual o rei derivou o problema da “Lioneira” para Álvaro Pires? Uma hipótese seria que Pires, o homem responsável pela Lioneira conhecia perfeitamente as condições econômicas da comunidade judaica lisboeta e com ele seria mais tranquila qualquer negociação. O valor cobriria somente gastos de alimentação de uma leoa, sem incluir custos de adestradores e seguranças destes valiosos felinos. A decisão de ser Álvaro Pires quem negocie com os judeus, demostra a confiança que tinha o rei em seu fiel “paaceiro”. O acordo foi assinado entre as partes no palácio real em 12 de fevereiro de 1452.

A “Lioneira” em 1497

O episódio da “Lioneira da Corte” não encerrou de vez. Um segundo documento da Chancellaria emitido pela corte de D. Manuel I, testemunha a existência de animais exóticos na corte do “Rei Venturoso” (ANTT, Chancellaria de D. Manuel I, Liv. 32, fol. 30v). D. Manuel “O Venturoso”, o responsável pela conversão forçada dos judeus em 1497, impôs aos cristãos novos o pagamento anual de 7.200 reais ou 600 reais mensais, para manutenção de duas leoas que se encontravam no Paço.

Nos dias de D. Manuel I (1495-1521), sabemos que o valor de 7.200 reais, imposto pela coroa; não foi negociado, ficou inalterável. A determinação de tributar “conversos” dará início a partir do primeiro dia do mês de janeiro de 1497 em diante, e também no mês da Quaresma. Os 600 reais mensais serão arrecadados impreterivelmente no início de cada mês, sempre e quando as leoas continuem nas dependências do palácio real.

As perguntas relevantes aqui são duas: Que força detém esta imposição real e de que maneira teria reagido a população cristã nova a esta ordenação?  Certamente, o decreto que impõe uma tributação para manutenção da “Lioneira” demonstra uma total falta de consideração por parte da corte lusitana em relação aos cristãos novos de Lisboa.

Interessante observar que, mesmo o documento de chancelaria estar datado em 28 de março de 1498, a comunidade dos cristãos novos (judeus no passado), foi tributada desde janeiro de 1498, portanto três meses de pagamentos retroativos. Esse pagamento deverá ser efetuado sem demora, permanentemente, à corte lisboeta.

Em relação à reação dos cristãos novos face à imposição do tributo à “Lioneira”, a impressão é que desta vez os judeus ignoraram por completo o decreto régio. Esta postura é compreensível, à luz das conversões e batismos forçados, as humilhações e perseguições que foram submetidos nesta época. Em outras palavras, problemas financeiros não preocupavam à comunidade dos conversos de Lisboa. Nesta hora, a dor e o sofrimento da violência religiosa; pesava muito mais na balança de cada judeu convertido.

Palavras finais

Ao estudarmos estes documentos de chancelaria real portuguesa, fica perfeitamente claro que há uma correlação entre judeus e cristãos novos face à tributação imposta para manutenção da “Lioneira”.

A documentação permite entender que, aos olhos da sociedade cristã, existe uma continuidade entre comunidades judaicas e congregações de conversos ou cristãos novos. Sem dúvida, cristãos novos viraram herdeiros de uma tributação imposta no passado a judeus.

Outra lição extraída da análise destas fontes é que aos olhos do rei e seu seleto círculo, os cristãos novos eram considerados integramente “judeus”, não havendo distinção entre ambos na hora de pagar seus tributos à coroa. Neste sentido, a forma de lidar da corte no caso da “Lioneira”, sempre de olho no dinheiro dos judeus portugueses, ficou inalterável.

Bibliografia

ANTT, Chancellaria de Affonso V, Liv. 2, fol. 15v

ANTT, Chancellaria de D. Manuel I, Liv. 32, fol. 30v

Faingold, R., The responsibility of the Lisbon Jews for keeping the “Lioneira da Corte”. ZION 54, fasc. 1, 1989, págs. 118-124.

Oliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa. Lisboa, 1981, pág. 150.