Desencavar, transcrever e comentar o Diário de Viagem à Terra Santa (Diários 18-19, maço 37, doc. 1057) redigido por D. Pedro II, nos permite revelar a curiosidade intelectual, a sensibilidade artística e o empenho do monarca em desvendar a humanidade em toda sua extensão. Escrito em 1876 o “Diário” retrata um homem despojado de mordomias que, apesar de rei, dormiu em barracas, hospedou-se em hotéis de 5ª categoria, cavalgou por espaço de sete horas diárias, arriscou-se a enfrentar beduínos, frequentou banhos turcos e colecionou souvenires.
O “Diário” -guardado no Museu Imperial de Petrópolis- faz parte da 2ª viagem internacional na qual D. Pedro II visitaria em 18 meses mais de 100 cidades em quatro continentes. Na ocasião, anotou impressões dos 24 dias no Líbano, Síria e Palestina otomana, percorrendo quase 500 quilômetros; marca significativa para uma comitiva com mais de 200 pessoas. Providenciar água, comida, hospedagem e segurança para tanta gente era uma operação de guerra. Na época D. Pedro não era jovem, tinha 50 anos. Mesmo assim, não reclamou do cansaço, aproveitando cada minuto de sua peregrinação.
Em 29 de novembro de 1876, a comitiva brasileira passou por uma experiência única: o grupo visitou o imponente monastério de Saint Sabbas (456 d.e.c), localizado nas montanhas de Moab, próximo de Jerusalém. Para chegar, caminha-se ao longo das ribanceiras secas do rio Cedron. O convento é um labirinto de cavernas, câmaras e galerias no meio do deserto. O padre Samuel Manning (1822-1881) quem o visitou em 1873 afirmou: ‘only an inmate of the convent can find his way from one part to another’ [somente um morador do convento pode achar o caminho de um lugar a outro].
Para fazer o tour por Saint Sabbás, a comitiva dividiu-se temporariamente, pois o percurso seria difícil e o regimento do lugar proibia a entrada de mulheres. A imperatriz D. Teresa Cristina e as suas aias ficariam fora do passeio. Mais um obstáculo: Ninguém seria recebido ali sem a permissão oficial do Patriarca de Jerusalém.
O “Diário de Viagem à Palestina” relata a solene entrada da comitiva no recinto, recebida com repiques e duas tochas acesas. O encontro de Pedro II com os monges foi tranquilo. O cheiro de incenso impregnava os corredores, e ali 60 frades gregos esperavam-no com impaciência. O soberano apreciou bandos de melros, cujos ninhos ocupavam os buracos das ribanceiras e comiam nas mãos de monges gregos. Rezavam numa bela capela minuciosamente examinada pelo monarca, e aproveitavam espaços do rochedo para construir suas casas de madeira e plantar flores e arbustos.
Num outro canto do convento, D. Pedro II distinguiu um dos símbolos do monastério: a histórica palmeira de Saint Sabbas, que segundo o imperador ‘é uma palmeira bastante alta que se curva para trás como que precisando do encosto da parede’.
Já dentro do convento, D. Pedro II pediu para conhecer a biblioteca. Sob um silencio constrangedor por parte dos monges que nada explicavam; revistou alguns textos dos Evangelhos, Sermões e outros tantos livros sagrados guardados numa pequena sala. Sua Majestade desejava mais informações sobre os manuscritos, porém nada obteve dos anfitriões. Depois de muita insistência, o único frade que falava o francês, permitiu que Karl Henning (3º mestre de hebraico de Pedro II) examinasse outra coleção de livros. Garimpou manuscritos que o frade afirmou existirem só impressos. Segundo o “Diário” ‘tal repugnância poder-se-á explicar pela vergonha que eles [monges] tinham de não haverem aproveitado, por ignorância, as riquezas literárias que possuam’.
As palavras do monarca ecoavam com força e indignação. Embora o Oriente Médio fosse francófono, apenas um dos 60 monges falava o francês, serviu de intérprete e se convenceu que ele como os demais, não conheciam as valiosas coleções de manuscritos, passando por momentos de constrangimento intelectual. Através de Samuel Manning, um religioso inglês que visitou Saint Sabbás três anos antes da comitiva brasileira; sabemos que os frades eram pouco hospitaleiros. Acerca o acervo, Manning, na obra “The Holy Fields: Palestine”, disse:
‘Apesar de existir uma valiosa biblioteca ela me parece completamente inútil, pois a maioria dos ascetas é incapaz de ler; e o seu único passatempo consiste em beber raki e alimentar pássaros (melros) e chacais que são muito numerosos’.
A escritora britânica Harriet Martineau (1802-1876), fez também entre 1846 e 1847 uma viagem ao Oriente Médio. Estudiosa do antigo Egito e dos lugares bíblicos, foi das poucas mulheres a burlar o regulamento e visitar o convento, expressando desapontamento com seus moradores. Num trecho da obra “Eastern Life” (1848) chegou a dizer: ‘the monks are too holy to be hospitable’ [os monges são muito sagrados para ser hospitaleiros].
Concluindo, observamos aqui que as opiniões de D. Pedro II, Harriet Martineau e Samuel Manning, coincidem: a ignorância e o despreparo cultural dos monges de Saint Sabbas eram gritantes. Após a visita a Saint Sabbas, a comitiva brasileira rumou até Jerusalém.
BIBLIOGRAFIA
Faingold, Reuven, D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem – 1876. Editora e Livraria Sêfer. São Paulo 1999.
Manning, Samuel, Those Holy Fields: Palestine. Illustred by pen and pencil, 1st edition London 1874. Reprinted with an introduction by Zeev Vilnay. Jerusalem 1976, págs. 54-55.
Martineau, Harriet, Eastern Life. London 1848.
Oncken, G., História Universal Antiga. Casa Bertrand. Lisboa, vol. III, pág. 57 e 464.
The Oxford Dictionary of the Christian Church, edited by F.L. Cross. Oxford University Press, 2nd edition 1974, pág. 748-749; with bibliography.
Wilson, Ch., Picturesque Palestine. Paris 1880.