D. Pedro II visita o emir Abd-El-Kader: 1876

Resumo: Durante a viagem de D. Pedro II à Terra Santa em 1876, o Imperador do Brasil teve a oportunidade de conhecer uma das figuras mais exóticas do Oriente Médio: o Emir Abd-El-Kader. Num clima totalmente descontraído e repleto de hospitalidade, com direito inclusive a uma xícara de chá de hortelã, ao “harém” e a tradicional troca de lembranças e fotografias; surge um episódio inédito na vida do monarca brasileiro.

Abstract: During D. Pedro II’s journey to the Holy Land in 1876, the Brazilian Emperor had the opportunity to encounter one of the most exotic personalities of the Middle East: the Emir Abd-El-Kader. In a relaxed atmosphere of the Harem, full of hospitality; where a cup of mint tea was served; there was the traditional exchange of memories and photographs. This event opens a new episode in the Brazilian monarch’s life.

Palavras chave: D. Pedro II, Peregrinação à Terra Santa, Diário de Viagem à Palestina sob domínio turco-otomano, Oriente Médio, Emir Abd-El-Kader.

Keywords: D. Pedro II (Peter II, Emperor of Brazil), Pilgrimage, Journey to Holy Land, Palestine under the Otoman Empire, Middle East, Abd-El-Kader.

 

Brasil rumo a Terra Santa

Em 14 de novembro de 1876, às 4 horas da madrugada, com tempo chuvoso, D. Pedro II e sua comitiva imperial de 200 passageiros ancoravam no pequeno porto comercial de Beirute, no coração do Oriente Médio, para uma visita de 24 dias na Terra Santa.

Nas palavras do Diário de Viagem à Palestina, o percurso programado “seria longo, [toda] a marcha realizada a pé, e apenas as mulheres e os nobres da corte seriam transportados em tarantuas”, um tipo de camas carregadas pelos mucres ou criados da caravana. Um clima de forte ansiedade, curiosidade e devoção pairavam no ar; afinal, visitar-se-ia um dos cantos mais exóticos e fascinantes do mundo (FAINGOLD, 1999, p. 17).

Longe da sofisticada mordomia de Petrópolis e Rio de Janeiro, os participantes da expedição, dentre eles a Imperatriz Tereza Cristina, o Sr. Luiz Pedreira de Couto Ferraz (Visconde de Bom Retiro), o Dr. Ribeiro de Souza Fontes, a aia da Imperatriz Dona Josefina, e a criada de quarto, Joaninha; fariam um percurso difícil em trilhas de relevos acidentados e montanhosos, impróprias para pessoas despreparadas. O Diário à Palestina nos conta também que, durante essa aventura, as pessoas transportadas caíam das liteiras, criando-se situações engraçadas e constrangedoras. No décimo dia da chegada a Beirute o Visconde de Bom Retiro e o Dr. Souza Fontes adoeceram: o primeiro sofria de gota no joelho (morreu no Rio de Janeiro em 1886) e o segundo sentia dores atrozes no abdome, mas não sendo algo grave logo se restabeleceu (FAINGOLD, 1999, p. 63, notas 52-53).

Para os cavalos era difícil galopar. D. Pedro II cavalgava uma égua branca, que não gostava de tomar chuva, espantava-se com extrema facilidade e por pouco o Imperador não caiu do cavalo. Nas proximidades do Monte Tabor na Galiléia, três criados de caravana, Pedro, Lamare e Romão caíram dos seus respectivos cavalos sem machucar-se.

Durante a viagem, a comitiva fez várias paradas. No século 20, a locomoção de 200 pessoas não era tarefa fácil, e o itinerário requeria um minucioso esquema de logística. No entanto, se o cansaço era grande maior ainda era a vontade de continuar com a programação. Um sentimento misturado de saudade, entusiasmo e alegria se apoderavam da delegação real em pleno acampamento.

Festa à noite – um “charivari

Noite estrelada com belas melodias. Um momento apropriado para organizar um charivari, espécie de comemoração campestre com direito a fantasias, som de flautas e cornetas, “jogo do alforje” (jogo da cabra cega), dança e uma fogueira com sapateado. Nesse clima festivo os criados sapateavam, pulavam e brincavam, enquanto o Imperador se aquecia perto da fogueira.

O monarca brasileiro não conseguia entender de onde seus homens tiravam forças para tais brincadeiras depois de carregarem liteiras durante um dia inteiro. Já cansado, após traduzir passagens bíblicas com seu mestre de hebraico Karl Henning, deitava-se e dormia (FAINGOLD, 1999, p. 68).

Em determinados trechos da viagem, percebe-se que a comitiva brasileira dependia da orientação de condutores de caravanas locais, familiarizados com a topografia do lugar. Os melhores eram os beduínos, que tiravam o sustento como guias de peregrinos. O Diário à Palestina cita dois deles: Antônio e Mulhelm Uardi, irmãos maronitas libaneses que viviam diariamente do turismo europeu que peregrinava à Terra Santa (FAINGOLD, 1999, p. 69).

Porém, nem sempre se acampava ao ar livre. Em Jerusalém, lugar em que a delegação esteve entre 26 de novembro e 5 de dezembro 1876, o Imperador e sua comitiva se recolheram na Casa Austríaca, uma hospedaria para peregrinos, próxima à Porta de Damasco, na cidade velha. Eles pediram aos franciscanos, guardiões do Santo Sepulcro, que os orientassem no roteiro. Certamente, era preciso receber os peregrinos brasileiros com extrema cordialidade, dedicação e devoção (FAINGOLD, 1999, págs. 100-146).

Passeio arqueológico em Baalbeck

Em Beirute, o Imperador hospedou-se no Hotel Belle Vue. Parte do séquito (entre famulagem e escolta) ficou nesta cidade e uma outra teria acompanhado o monarca até Baalbeck. Já no 1º dia da viagem a chuva cessara e o tempo começava a clarear. Cavalgando pela planície de Bekaa, a comitiva rumou para este complexo arquitetônico, antigo e bem preservado. O monarca, eufórico, confessou que “à luz de fogaréus e lanternas atravessando por longa abóbada, a entrada nas ruínas foi triunfal, e as colunas tomavam dimensões colossais” (FAINGOLD, 1999, págs. 47-52 e notas 6-11). 

Em Baalbeck a visita foi rápida e proveitosa. D. Pedro II, sem contar com a companhia da Imperatriz Teresa Cristina, revelou sua paixão pela arqueologia, pela mitologia e pela história. Mesmo sem ter dormido suficiente, acordou bem disposto para correr as ruas da cidade que abrigavam um pequeno templo, nove colunas coríntias, o grande templo e um edifício hexagonal.

Segundo estudos, os templos teriam sido construídos por ciclopes gigantes. Segundo uma lenda árabe, eles existiam desde os primórdios da criação, na época de Caim. Lendas da Mesopotâmia, dentre elas hebraicas, atribuem sua construção ao sábio rei Salomão. Seja como for, nas ruínas de Baalbeck D. Pedro II, acompanhado por um guia local, mediu templos, decifrou símbolos em baixos-relevos, subiu e desceu tímpanos, capitéis e colunas deitados no chão molhado. Examinou a pedreira e deixou seu nome gravado para a posteridade numa rocha na qual estava escrito: “Comme le monde est bête!” [Como o mundo é ignorante], uma mensagem atual nos dias de hoje (FAINGOLD, 111, p. 52).

O Imperador do Brasil ficou maravilhado com a antiga Baalbeck, a ponto de afirmar que nunca viu monumentos tão majestosos como aqueles. Como lembrança do passeio, e para aumentar seus conhecimentos numismáticos, D. Pedro comprou moedas locais, encerrando assim a curta estadia no lugar. A viagem continuaria pelas margens do rio Orontes, no eixo da estrada Beirute-Damasco. Um episódio muito curioso ainda estava para acontecer.

Chá com gostinho de hortelã

Na passagem por Damasco, D. Pedro II visitou um dos descendentes do profeta Maomé, o emir Sidi-El-Hadj-El Kader Uled Muhi Ad-Din, mencionado no Diário de Viagem à Palestina apenas como Abd-El-Kader (1807-1883). Este verdadeiro ícone da resistência islâmica na África do Norte contra o domínio francês, era visto como um herói. Liderou a luta armada da Argélia contra a França (1840) e do Marrocos contra esta mesma potência (1844) e; mesmo que derrotado, é grande o respeito de Napoleão III (1808-1873) por Abd-El-Kader (Enciclopédia Universal ilustrada Espasa-Calpe, vol. 1, págs. 254-256).

Abd-El-Kader vivia em Damasco desde 1852, após passar parte da vida num presídio. No Diário a descrição física do guerreiro de 70 anos é minuciosa: “…É baixo, pouco cheio de corpo, testa arredondada, nariz ligeiramente aquilino, olhos pequenos, porém vivos às vezes, ainda que pouco encarem, [com] beiços de homem enérgico. Parece ter cabeça rapada sob o turbante. Traja simplesmente, e tinha chinelos de marroquim amarelo; o cabelo é preto e a barba não é grande, mas creio que a pinta assim como as sobrancelhas” (FAINGOLD, 1999, págs. 56-57 ).

O depoimento do cônsul britânico em Damasco Sir Richard Francis Burton (1821-1890) sob o perfil de Abd-El-Kader é revelador: “Ele era um homem de aparência majestosa, cujos finos traços escuros eram realçados pelas roupas alvíssimas que sempre usava, era um sufi [seita filosófica racionalista] dos qadiris, um muçulmano conscientemente religioso, filiado também a uma outra irmandade sufi denominada shazlis, ordem que se encontrava em toda a África do Norte e Damasco, era um estudioso nato e dedicava o tempo à teologia e à filosofia” (RICE, 1991, págs. 413-414 e FAINGOLD, 1999, anexo 7, pág. 161).

O encontro entre o Imperador e o emir foi marcado pela simplicidade. D. Pedro II tinha excelente motivo para visitá-lo: Abd-El-Kader foi o protetor dos cristãos perseguidos e assassinados por árabes e drusos. Durante a conversa, o emir manifestou sua estima e admiração pelo Imperador. A hospitalidade foi além das limitações da época.

Pedro II confessou ser tratado amavelmente, e através de intérprete, afirmou que o visitava em retribuição aos serviços prestados em 1860 aos cristãos. O emir Abd-El-Kader serviu chá com gostinho de hortelã-pimenta, mostrou-lhe sua casa e convidou-o a conhecer seu harém particular (RICE, 1991, p. 416 e FAINGOLD, 1999, anexo 10, p. 164).

O chá de hortelã pimenta (mentha piperita), apreciado na região, era produzido a partir de uma erva antiga usada para combater parasitas e cólicas, melhorar a digestão, eliminar gases, e acima de tudo, possui o mágico efeito de aumentar a virilidade. Revelando costumes do Levante, Pedro II fez questão de registrar no Diário de Viagem que bebeu o excelente chá, mas rejeitou o convite de relaxar na companhia do harém. Segundo textuais palavras de Sua Majestade: “Abd-El-Kader mostrou-me parte de sua casa, oferecendo-me até levar-me ao harém, o que não aceitei…” (FAINGOLD, 1999, p. 57).

A hospitalidade não acabou ali. O emir que como bom muçulmano tinha cinco mulheres e 25 filhos, deles 18 homens; convidou o monarca a visitar o lar de seu filho primogênito. A grande família ou clã (hamula) morava junta, e as casas, com seus amplos pátios internos; acomodavam a todos seus membros. O líder árabe era rico, com terras cultivadas em Dumah (ao norte de Damasco), e costumava cavalgar 500 km até Jerusalém, caçando gazelas e outros animais.

O bate-papo foi extremamente agradável, pois falaram de religião, clima e botânica como uma forma de aproximar a misteriosa Síria do desconhecido Brasil. Na casa de Abd-El-Kader estavam expostas medalhas de ouro e prata que a França mandara cunhar por sua heroica atuação na África e nas quais se lia a frase: “La France qu’il combattue l’aime et l’admire” [A França que o combateu lhe ama e admira].

Havia ainda no recinto um retrato do emir sendo condecorado em 1870 com a Grã-Cruz da Legião de Honra de São Lázaro de Sardenha, uma prestigiada condecoração do exército francês. O emérito historiador Pedro Calmon, publicou versos escritos anonimamente em homenagem ao emir condecorado (CALMON, 1975, vol. III, p. 1120). Eis os versos:

Lui, lê Sultan né sous lês palmes,                                          Ele, o Sultão nascido vitorioso,

Le compagnon des lions roux,                                                O companheiro dos leões ruivos,

Le hadgi farouchee aux yeus calmes,                                     O bravo peregrino de olhos calmos,

L´ Emir pensif, féroce et doux                                                 O Emir pensativo, feroz e doce.

 A despedida

O encontro foi encerrado com um costume tipicamente ocidental: uma troca de pequenas lembranças e fotografias. Abd-El-Kader entregou ao rei brasileiro um texto filosófico escrito em árabe intitulado Apelo aos inteligentes e advertência aos indiferentes. Havia pouco tempo esta importante obra tinha sido traduzida e publicada em francês por Dugat sob o título “Rappel à l´intelligent, avis à l´indiferent” (FAINGOLD, 1999, p. 57, nota 29).

Retornado ao Brasil, D. Pedro II não esqueceu este emocionante encontro. Afinal, Abd-El-Kader era uma figura exótica do Oriente Médio e, sem dúvida, uma personalidade muito desconhecida nos distantes trópicos.

Referências bibliográficas

Abd-El-Kader, em: Enciclopédia Universal Ilustrada Espasa–Calpe, vol. 1, pág. 254-256, com bibliografia.

Calmon, Pedro, História de D. Pedro II, vol. III, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio 1975.

Faingold, Reuven, D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem – 1876. São Paulo. Editora e Livraria Sêfer 1999. [Edição crítica do Diário de Viagem à Palestina pelo Imperador do Brasil D. Pedro II. Museu Imperial de Petrópolis. Diários 18-19, maço 37, doc. 1057].

Rice, E., Sir Richard Burton, 2ª edição revista. São Paulo 1991.