Filosemitismo na Terra Santa: 1876

Ao publicar meu livro “D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem – 1876” costumam me perguntar qual era o tamanho da população judaica durante a visita da comitiva imperial brasileira ao Oriente Médio. Naquele momento poucos dados existiam. Passadas mais de duas décadas, em virtude de novas descobertas, o panorama socioeconômico da Terra Santa ficou um pouco mais elucidado. A seguir, um rápido olhar das novas descobertas sobre o tema.

INTRODUÇÃO

Nos anos trinta do século 19, sob o corrupto governo turco-otomano, houve um aumento considerável do interesse da Grã Bretanha pela Terra de Israel e pela forma em que lá vivia a população judaica. Esse interesse esteve sustentado em motivações políticas, pois o “Leão Britânico” desejava impor seu domínio na região do Oriente Médio; e ao mesmo tempo apresentava uma forte dose de filosemitismo ao admirar a Bíblia, ao investir de forma pesada em escavações arqueológicas na Terra Santa e ao valorizar o heroísmo do povo judeu através das épocas.

Os diferentes contatos sócio-culturais entre missionários anglicanos e judeus da Palestina foram suficientes para que o governo de Sua Majestade -a Rainha Vitória- preparasse o terreno para estabelecer-se com maior intensidade na Terra Santa.

Entre os anos 1831-1840 dominaram a Terra de Israel governantes egípcios, e em 1839 foi enviado a Jerusalém o primeiro cônsul britânico, Mr. William Tanner Young, quem ficaria no cargo até 1841. Entre os anos 1841-1914 (início da Primeira Guerra) a Inglaterra enviou a Terra Santa os seguintes cônsules:

1839 – 1845: William Tanner Young.

1845 – 1863: James Finn.

1863 – 1890: Noel Temple Moore.

1890 – 1906: John Dickson.

1906 – 1909: Edward C. Blech.

1909 – 1912: Peter J.C. McGregor.

Entre 1914-1918 acontece a Primeira Guerra Mundial, a Grã Bretanha publica a famosa “Declaração Balfour” sugerindo o estabelecimento de um lar nacional judaico (jewish homeland) na Palestina, dando início ao Mandato Britânico na região do Oriente Médio. Após dois anos de rígido governo militar, a Inglaterra enviaria os seguintes “comissários-mores” para organizar a colônia Palestina:

1918-1920: General Edmond H. Allenby (Governo militar).

1920-1925: Herbert Samuel (Primeiro Governador-geral).

1925-1928: Charles Plummer (Segundo Governador-geral).

1928-1931: John Robert Chenslor (Terceiro Governador-geral).

1931-1935: Arthur Walkop (Quarto Governador-geral).

O CASAL FINN EM JERUSALÉM

O cônsul James Finn e sua esposa Elizabeth Ann chegaram a Jerusalém em 1845 e lá ficaram 17 anos ajudando à comunidade judaica da Palestina. Ambos sabiam o hebraico e o cônsul chegara a escrever sua história do povo judeu, pelo qual sempre teve grande simpatia. Era filiado à “Fraternidade Londrina para a Propagação do Cristianismo entre os Judeus”, mas pelo que se sabe não se ocupou diretamente da atividade missionária durante sua estada em Jerusalém.

O cônsul Finn e sua esposa acreditavam piamente que o retorno dos judeus a sua pátria ancestral aceleraria a redenção do mundo. Mais de uma vez este cônsul defendeu os judeus de Jerusalém das arbitrariedades dos governantes turcos. Ele sabia da necessidade de recuperar a “produtividade da vida judaica” e se propunha a ajudar todos aqueles judeus interessados em trabalhar na área da construção ou em agricultura. Para isso, Finn comprou no ano de 1853, ao preço de 250 libras esterlinas, uma colina isolada, com algumas rochas esparsas pelas encostas, a alguns quilômetros ao noroeste de Jerusalém, que na época era habitada apenas no interior das muralhas da cidade velha.

A colina era um espaço abandonado, chamado pelos árabes de Karm-Al-Halil. O cônsul traduziu o nome para o hebraico como Kerem Abraham (A vinha de Abraão) e ali desenvolveu seu empreendimento, a Moshavá Charoshet (Colônia Industrial), destinado a oferecer trabalho aos judeus pobres e os qualificar para a vida produtiva. Essa fazenda ocupava uma área aproximada de 40 dunas (quatro hectares). No topo da colina, James Finn e Elizabeth Ann construíram sua própria casa e em volta dela implantaram a fazenda: o empreendimento agrícola, as oficinas e as benfeitorias. Atrás da casa, no pátio protegido por um muro, cavaram-se poços de água e foram construídos um estábulo e um curral, um celeiro, depósitos, uma prensa de uvas para a fabricação de vinhos e uma prensa de azeite.

A Colônia industrial empregava uns 200 judeus em trabalhos tais como retirar pedras das encostas das estradas, construir cercas, plantar árvores frutíferas, trabalhar na horta, no pomar e também em ofícios ligados à construção civil. Com o passar dos anos, depois da morte do cônsul Finn, sua viúva construiu uma fábrica de sabão, na qual também empregava trabalhadores judeus.

O escritor israelense Amós Oz conta em sua obra autobiográfica “De amor e trevas” que em 1920, sobre a propriedade dos Finn, foi fundado o bairro de Kerem Avraham. Segundo Oz “suas casinhas pequenas foram construídas entre os pomares da fazenda, os vinhedos e os renques de árvores frutíferas e, assim, pouco a pouco foram ocupando toda a área original da propriedade”.

Após a morte da viúva Elizabeth-Ann Finn, a mansão do cônsul passou por inúmeras transformações – primeiro se tornou uma instituição britânica para delinquentes juvenis, depois abrigou uma seção administrativa do governo britânico e mais tarde funcionou como sede do comando militar”.

Perto do fim da Segunda Guerra Mundial, o jardim da mansão Finn estava rodeado por uma alta cerca de arame farpado. A propriedade inteira havia sido transformada em prisão para abrigar oficiais italianos capturados em combate. Após a fundação do Estado de Israel em 1948, a casa do cônsul e a consulesa Finn serviu sucessivamente de sede para a guarda civil (mishmar ezrachi), para a patrulha de fronteiras (mishmar hagvul) e a Gadná (Gdudei Noar= Batalhões Juvenis), espécie de movimentos paramilitares, antes de tornar-se uma escola para moças ortodoxas, chamada Beit Brachá, que significa a Casa da Benção.

Resumindo, a casa do cônsul Finn era o coração do bairro Kerem Abraham.

O RELATÓRIO YOUNG

Mas voltemos a William Young. Este diplomata britânico acatou literalmente as ordens da metrópole de pesquisar a situação sócioeconômica dos judeus na Palestina. O governo, representado naquela época pelo Ministro de Relações Exteriores Palmerstone; recebeu seu “Relatório” e decidiu ajudá-los.

Qual era, pois, o conteúdo do “Relatório Young”?

Inicialmente, o cônsul Young registra dados estatísticos sobre a população judaica na Terra Santa; acentuando sempre que os números fornecidos a ele são aproximados, já que não há possibilidade “por motivos religiosos” de realizar um recenseamento exato dos judeus da Palestina.

Segundo o relatório enviado em 1839 a Londres pelo próprio William Young a totalidade da população judaica da Palestina turco-otomana estava espalhada nas principais cidades da seguinte maneira:

Jerusalém.         5.500 judeus.

Safed.                1.500 judeus.

Hebron.                750 judeus.

Tiberíades.           600 judeus.

Acre.                     200 judeus.

     Nablus.                 150 judeus.

Yaffo.                      60 judeus.

Haifa.                    150 judeus.

Outras aldeias.     400 judeus.

                                                                                                           ___________

Total                    9.310 judeus.

Adicionando a este número de 9.310 os 380 judeus que moravam nas cidades libanesas de Tiro e Sidon, Young registrava em seu “Relatório” 9.690 judeus.

A SITUAÇÃO DOS JUDEUS

O cônsul William Tunner Young escreve numa parte do “Relatório”:

“Os judeus de Jerusalém são geralmente muito pobres, e poucos são aqueles que podem sobreviver honestamente sem ajuda de contribuições e donativos vindos da Europa. As contribuições diminuíram muito em relação ao aumento dos gastos com sustento. Por isso, aqueles que dependem destas quantias se encontram em estado de miséria absoluta”.

E continua dizendo no “Relatório”:

“No último ano (1838) e neste momento em que escrevo ao Lord Palmerstone (1839) a totalidade da população judaica sofre enormemente. Se seus irmãos judeus na Europa não colaborarem com ajuda financeira, famílias inteiras irão morrer de fome no próximo inverno… “.

Dentre as profissões judaicas registraremos algumas citadas no “Relatório”:

“Há judeus nas aldeias trabalhando com comércio ou como mascates, e assim sobrevivem com extrema dificuldade. As chances das atividades comerciais vingarem são ínfimas, já que o país apresenta pobreza e carece totalmente de recursos próprios”.  

E o cônsul compartilha sua opinião sobre o futuro da Palestina: “Acredito que a falta de união entre a população, consequência direta do estado de pobreza encontrado na região, leva a uma situação ainda mais grave de miséria”.          

Para Young, não há na Palestina turco-otomana um clima de tolerância em relação aos judeus como existe na Europa. No entanto, a permissão concedida aos habitantes judeus de morar nos bairros muçulmanos das cidades, é um claro sinal que o desejo de “convivência” vem prevalecendo cada vez mais.

Porém, para o cônsul britânico a situação de aparente tolerância é mascarado, pois os judeus pagam valores de aluguel mais altos que os árabes. Tudo indica que essas quantias incluem o direito de aceitação num território de domínio turco e de absoluta maioria árabe.

William Young é ainda mais contundente ao descrever o valor dado ao judeu. Ele comenta: “Aos olhos da população o judeu não tem muito mais valor que um cachorro, e não existe dia sem alguma brutalidade ou crueldade para com os judeus, principalmente acontecimentos em que soldados entram nas moradias e tomam emprestados objetos sem autorização”. Às vezes os objetos roubados são devolvidos, mas outras vezes isto não acontece.

Em duas ocasiões Young diz haver presenciado judeus em perigo: na primeira um judeu tentou entrar no Santo Sepulcro e quase foi linchado (mesmo sendo  Jesus judeu), e na segunda, também ao ser perseguido; um judeu preferiu refugiar-se na casa de um muçulmano e não na de um cristão.

A MORTE DE UM MENINO

O “Relatório Young” relata acerca de um menino judeu que estava com febre alta. Diante desta situação, as autoridades municipais responsáveis pela saúde e bem-estar diagnosticaram cólera e determinaram que a criança não entrasse em contato com o resto da população.

O hospital informou também que, por tratar-se de uma doença extremamente contagiosa, não receberia a criança para tratamento médico e que ela deveria ser afastada do contato cotidiano.

Sua casa foi isolada, mas o menino convalescente não resistiu à temperatura e faleceu. Mas, o trágico episódio do jovem judeu morto pelo surto de cólera não acabou facilmente. As autoridades turcas solicitaram da família enlutada uma quantia de bakshish (propina) pelo valor de 4.000 piastres (moeda do Império turco) pelo tratamento oferecido à vítima. Diante da negativa da família em pagar os altos honorários, os otomanos ameaçaram queimar a casa judaica. Naturalmente, para não sofrer represálias nem ver sua casa queimada, a família pagou a quantia solicitada.

E com as palavras a seguir encerra Mr. William Young seu “Relatório” enviado a Londres ao Ministro de Relações Exteriores da Grã Bretanha:

“Aprendi, Meu Senhor, que os judeus possuem boas qualidades, e uma delas é o reconhecimento e o agradecimento. Aqui não só devemos dar proteção aos judeus, tal como Sua Majestade solicita; mas estou plenamente convencido que, num futuro, poderemos demonstrar que o judeu merece o maior respeito. Em cidades menores os judeus trabalham em pequenas profissões. Já em Jerusalém encontram-se poucos atuando em profissões menores, e não tenho conhecimento da existência de judeus na Palestina arando a terra. E mesmo com todas as dificuldades daqui, o seu número aumenta constantemente”.

No ano de 1840, um ano depois da publicação do “Relatório Young”, a idéia difundida pelo Ministro do Exterior Palmerstone é que “chegará o dia em que os judeus voltarão a sua pátria milenar, a Terra de Israel”.

O caminho rumo a um lar nacional judaico, prometido na “Declaração Balfour” de 02 de novembro de 1917, estava sendo anunciado uns 80 anos antes, no desconhecido “Relatório Young” de 1839.   

BIBLIOGRAFIA

A Topographical-Historical Encyclopaedia of Palestine. Jerusalem 1948-1955.

Bonfils, F., Fotografias da Terra Santa. Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Coleção Tereza Christina Maria. Caixa II (Caixas avulsas).

Eban, Abba, A História do Povo de Israel. 1ª edição brasileira. Edições Bloch. Rio de Janeiro 1971, cap. 19, págs. 307-328.

Faingold, R., D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem -1876. Editora e Livraria Sêfer. São Paulo 1999, especialmente págs. 158-159 (anexos 2-3-4-5).

Katz, David, Philo-Semitism and the Readmission of the Jews to England, 1603-1655. Oxford 1982.

Katz, David, The Phenomenon of Philo-Semitism. STUDIES IN CHURCH HISTORY XXIX (1992), pág, 327-361.

Oz Amós, De Amor e Trevas. Companhia das Letras. 1ª edição. São Paulo 2005, 624 págs.

Rivlin, Avraham, Doch Hashagrir – 1839. ET-MÔL 9, FASC.2 (52), Kislev 5744,, novembro 1983, págs. 20-21.

Stein, L., The Balfour Declaration. London 1961.