A seita dos Doenmeh: Judeus islamizados

O “Messias de Esmirna” Shabetai Tzvi (1626-1676), pouco antes de morrer, converteu-se ao Islamismo. Mas seus descendentes mantiveram as tradições judaicas, fundando uma seita híbrida: os Doenmeh. Eles eram fervorosos muçulmanos que secretamente observavam um judaísmo messiânico.

Grupos Doenmeh

Ao estudar os Doenmeh, podem ser detectadas três seitas diferentes:

1. Os “izmirlis” ou “izmirim”: constituída por membros da primeira comunidade (o grupo original). Estes aristocratas da seita eram chamados “Cavalleros” em ladino ou “Kapanjilar” em turco. Incluíam os grandes comerciantes e a classe média, bem como a maioria da intelectualidade Doenmeh. Foram também os primeiros a mostrar, a partir do século 19, uma acentuada tendência para assimilação com os turcos.

2. O grupo dos “jacobitas” ou “jakoblar” era constituído por rabinos e seguidores de Jacob Querido. Esta pequena seita de aproximadamente 43 famílias incluía um grande número de funcionários turcos de classe média e baixa. Depois de 1700, um novo líder de nome Baruchiah Russo, apareceu entre os adeptos de Querido, e foi proclamado por seus discípulos como sendo a reencarnação do messias Shabetai Tzvi. Russo era filho de um velho seguidor do “Messias de Smirna”. Depois de sua conversão, Baruchiah Russo foi chamado em turco “Osman Baba”. Então, uma terceira seita organizou-se em torno dele.

3. Os “konyosos” ou “karakashlar” foram considerados o núcleo mais afastado dos Doenmeh. Estava composto por um proletariado e por classes de artesãos, proclamavam uma espécie de niilismo religioso. Além disso, os konyosos conservavam os nomes sefaraditas originais, frequentemente mencionados em poemas dedicados aos mortos.

Alguns dos membros “konyosos” foram enviados como representantes da seita à Polônia, Alemanha e Áustria, onde despertaram uma forte efervescência messiânica entre 1720 e 1726. Ramificações desta seita missionária, da qual mais tarde surgiram os “frankistas” (a seita de Jacob Frank), estabeleceram-se em vários lugares da Diáspora.

Ainda muito, em 1720 o jovem Baruchiah Russo morreu, sendo seu túmulo alvo de peregrinação de discípulos e admiradores. Seu filho também foi um líder espiritual dessa comunidade. Durante o período da Revolução Francesa, um poderoso líder da seita ganhou destaque. Ele era conhecido como “Dervixe Efendi”, e talvez seja identificado como o poeta Juda Levi Tovah, um cabalista que escrevia belíssimos sermões em ladino.

Doenmeh: Judeus ou não?

Sem dúvida, ficou evidente para os governantes e autoridades turcos que estes apóstatas, (de quem se especulava incentivariam judeus a converter-se ao Islamismo), não tinham a mínima intenção de se assimilar na fé de Maomé. Ao contrário, eles estavam determinados a observar uma vida sectária, semiclandestina; guardando externamente as práticas islâmicas e sendo politicamente cidadãos fiéis às leis do país.

O termo Doenmeh, surgido no século XVIII, é complexo. É difícil saber se ele faz referencia à conversão de judeus shabetaístas ao Islamismo, ou ao fato destes não serem muçulmanos autênticos. Por sua parte, os judeus chamavam os Doenmeh de “minim”, que em hebraico significa “sectário”; obviamente carregando uma forte conotação pejorativa de “apóstatas hereges”. Entre os diversos textos dos rabinos de Salônica, há numerosos escritos que abordam a questão de como deviam ser tratados os Doenmeh, se deveriam ser considerados judeus ou não.

Os Doenmeh moravam em bairros separados em Salônica, e seus líderes conviviam amistosamente com vários grupos sufistas, e com as ordens de “Dervixes” turcos, mais conhecidos como “Baktashi”. Da mesma forma, os Doenmeh mantinham contatos com shabetaístas que não se haviam convertido ao Islamismo, e com vários rabinos de Salônica que, quando necessário, dirimiam questões da lei mosaica para a seita. Estas relações foram rompidas somente em meados do século XIX.

O comportamento dos Doenmeh perante o Judaísmo é ambivalente. Em um primeiro momento, demonstravam uma atitude ambígua em relação ao Judaísmo tradicional, encarando-o como nulo, sendo seu lugar tomado por uma Torah mais elevada, mais espiritual, chamada “Torah da Emanação” ou “Torat Ha-Atzilut”. Entretanto, num segundo momento, procuraram conduzir-se segundo a Torah da tradição talmúdica, denominada “Torah da Criação” ou “Torat Ha-Beriah”.

Costumes e ritos Doenmeh

Os livros de liturgia dos Doenmeh eram escritos em formato muito pequeno, para que pudessem ser facilmente ocultados. Todas as sub seitas ocultavam seus assuntos tanto dos judeus como dos turcos, e durante muito tempo o que se conhecia dos “Doenmeh” baseava-se apenas em relatos e comentários de viajantes estrangeiros.

No início, o conhecimento do hebraico era comum entre os Doenmeh, e sua liturgia era produzida nesta língua. Isto pode ser visto nos seus livros de orações. No entanto, com o correr do tempo, o uso do ladino foi aumentando, e tanto a literatura poética como os sermões eram escritos nesta língua.

Os manuscritos dos Doenmeh revelavam informações sobre suas ideias shabetaístas, e foram traduzidos e examinados depois que várias famílias decidiram assimilar-se por completo à sociedade turca.

Até 1870, os Doenmeh falavam entre si o ladino, somente depois desta data, o turco tornou-se a língua de uso cotidiano. Os cemitérios Doenmeh eram usados pelas três seitas. Em compensação, como sempre aconteceu nas diferentes épocas históricas, cada subgrupo tinha sua sinagoga chamada “kahal” ou “congregação”. Ela estava localizada no centro do bairro, escondida dos estranhos.

Os Doenmeh na atualidade

A força numérica dos Doenmeh é conhecida parcialmente. Segundo registra o viajante dinamarquês Karsten Niebuhr (1733-1815), umas 600 famílias viviam em Salônica em 1774, e os casamentos realizados por estes eram endogâmicos, ou seja, consagrados no seio das famílias da congregação.

Durante o longo período em que os Doenmeh ficaram em Salônica, a estrutura da seita permaneceu intacta, vários membros atuaram no movimento político dos “Jovens Turcos”. Três deles chegaram a ministros no gabinete turco: um deles, o ministro das finanças Mehmet Cavit Bey (1875-1926) descendia da família do próprio Baruchiah Russo, um dos mais importantes líderes da seita.

Antes da Primeira Guerra Mundial, o número de Doenmeh era estimado entre 10.000 e 15.000 pessoas, divididos nas três seitas acima mencionadas. A troca de populações ocasionada pela guerra greco-turca, fez com que os Doenmeh tivessem que abandonar Salônica. A maioria deles se estabeleceu em Istambul, e poucos estariam em outras cidades turcas como Esmirna e Ancara.

Na imprensa otomana moderna, houve um polêmico debate sobre o caráter judaico dos Doenmeh e sua assimilação. Quando saíram de Salônica, ainda no século passado, a assimilação começou a expandir-se. Há evidências de que a seita dos “konyosos” tenha sobrevivido até 1970, pois algumas famílias continuavam pertencendo a esta organização.

Entre intelectuais turcos havia descendentes Doenmeh, tais como Kemal Ataturk, o idealizador e fundador da República Turca moderna. O turco Hamdi Bey, dos principais reconstrutores de Salônica após o incêndio de 1890 seria descendente dos Doenmeh.

Por meados do século 20 houve tentativas de persuadi-los para retornar ao Judaísmo e imigrar para o Estado de Israel. Tudo isto foi em vão. Poucas famílias dos Doenmeh imigraram para o novo Estado judeu.

Palavras Finais

Parece não existir diferença religiosa entre os Doenmeh e outras seitas que também acreditavam em Shabetai Tzvi. Em sua literatura, dificilmente se faz menção ao fato de pertencerem ao Islamismo. Os membros das três subseitas Doenmeh afirmavam ser a verdadeira comunidade judaica, mesmo preservando a sua fé em Shabetai Tzvi, que havia abdicado dos mandamentos práticos da Torah, admitindo uma “Torah de Emanação” superior, como sua substituta.

O princípio de divindade de Shabetai Tzvi desenvolveu-se firmemente e foi aceito sem restrições pela seita. Além de sua abdicação dos mandamentos práticos e sua crença trinitária mística, um fator despertava grande oposição entre seus contemporâneos: a inclinação em permitir casamentos proibidos pela “halachá” (lei judaica) e realizar bacanais que envolviam a troca de mulheres, atos que certamente degradavam a meta final da lei judaica.

Desde o século 18, começaram a haver acusações de licenciosidade, o que teria dado origem a uma promiscuidade sexual durante algumas gerações. De fato, ocorreram orgias, principalmente na festa de “Chag Ha-Keves” (A Festa do Cordeiro) celebrada pelos Doenmeh em 22 de Adar, perto da festa de Purim.

Entre os Doenmeh era costume ainda comemorar outras datas sagradas relacionadas à vida de Shabetai Tzvi e acontecimentos particulares ligados a sua apostasia. A célebre liturgia Doenmeh para o 9 de Av, aniversário dele, chamada “Chag Ha-Semachot” (Festa do Júbilo), ainda existe nas festividades dos Doenmeh.

Fonte: GERAÇÕES / BRASIL, Revista da Sociedade Genealógica judaica do Brasil, junho 1998, vol. 4, nº 2 – matéria de capa.