Baseado no meu artigo “Judeus na Guerra de Malvinas – 1982”, publicado na revista MORASHA, Edição 101, setembro de 2018, (http://www.morasha.com.br/antissemitismo/judeus-na-guerra-de-malvinas-1982.html#q=reuven%20faingold)
As cicatrizes ainda continuam abertas e as controvérsias sobre Malvinas entre argentinos e britânicos seguem marcadas por provocações e tensões; basicamente pela importância econômica e a relevância territorial para cada governo. A seguir, um breve estudo sobre a repercussão deste conflito na vida de toda uma comunidade judaica.
A procura da soberania
Malvinas eram ilhas desabitadas quando foram descobertas pelos holandeses no século 18. Nas lutas travadas entre as potências colonialistas acabaram sendo primeiramente da Espanha e depois da Argentina. Por 1833, estas terras foram invadidas pelo império britânico, com o objetivo de servir de apoio para abrir rotas de navegação no Atlântico Sul.
Os governos argentinos nunca abandonaram a ideia de manter sua soberania sobre Malvinas, e sempre contaram com apoio da diplomacia brasileira. Mas era uma luta pelo nacionalismo e a integridade do território, fortalecida a partir de 1930-1940, quando a aliança com os britânicos começou a ser questionada na Argentina. Durante a guerra, a principal atividade econômica das ilhas era a criação de carneiros.
Argentina e Inglaterra cortaram suas relações diplomáticas durante a década de 1980. Elas foram retomadas durante a presidência de Carlos Menem. Sua política para Malvinas foi denominada “guarda-chuva da soberania”, pela qual esse tema não era discutido, outorgando-se apenas permissão para veteranos de guerra e seus parentes poderem visitar as ilhas e chorar seus mortos em cemitérios militares. Esta situação foi mostrada no filme “Iluminados por el fuego” (Argentina-Espanha, 2005): O jornalista Esteban Leguizamón recebe a informação de que seu amigo Alberto tentou matar-se. Esteban vai até o hospital e encontra Alberto em coma. Em flashbacks, o espectador vê que os dois soldados lutaram juntos, 20 anos antes, na Guerra das Malvinas. Ambos voltaram do front carregando cicatrizes, a lembrança do horror e do inferno. Alberto, de personalidade frágil, nunca se recuperou. A depressão que o levou à tentativa de suicídio é mais um crime da ditadura militar argentina. Em 1982 a ditadura tentou perpetuar-se no poder apelando ao patriotismo dos argentinos: enviaram milhares de jovens para lutar contra o poderio militar britânico nas Malvinas.
A ascensão dos Kirchner na década de 2000 significou o retorno do nacionalismo à vida política argentina. Encontrou expressão em conflitos territoriais e na exploração de recursos naturais. Isso levou ao recrudescimento das disputas pela soberania argentina em Malvinas.
A descoberta de reservas de petróleo e gás nas ilhas e a alta no preço dos hidrocarbonetos aguçaram ainda mais os embates com os britânicos. Assim, a importância das Malvinas para a exploração da Antártida crescia em relevância. Os britânicos reagiram pela mídia: enviaram o príncipe William (2º na sucessão do trono), para passar semanas nas ilhas e despertar a atenção da imprensa. O Reino Unido despachou um navio de guerra e um submarino armados com mísseis nucleares. São gestos simbólicos para demonstrar a capacidade de poder global que, dificilmente a combalida economia britânica teria como sustentar.
A estratégia argentina foi criar obstáculos para os britânicos na ONU, denunciando a permanência destes últimos em Malvinas como uma situação colonial, criticando o que chamaram de “militarização dos recursos naturais do Atlântico Sul”. Já o Reino Unido afirma que não se pode abandonar o direito de autodeterminação dos kelpers e o primeiro-ministro David Cameron chegou a afirmar: “colonialistas são os argentinos”.
Humilhações e maus tratos
Em 11/04/1982, o jovem judeu Silvio Katz chegou a Malvinas junto com seus companheiros do “Regimento de Infantería Mecanizada 3” (RIMec 3), localizado na localidade de Tablada. Havia poucos dias tomou conhecimento que Argentina havia retomado as ilhas, mas nunca imaginou ser transportado num avião sem assentos desde a base aérea de Palomar, apenas com roupa de verão e um fuzil que não funcionava.
Ainda sem acostumar-se ao frio, Silvio foi trazido por seu subtenente Eduardo Flores Ardoino à dura realidade militar. Mias de trinta anos depois de encerrado o conflito, Silvio lembra as torturas impostas por este subtenente: “Me castigou todos os dias da minha vida por ser judeu. Ele me congelava as mãos na água, me jogava a comida dentro do lixo… e lá tinha que buscá-la com a boca…. Dizia que os judeus são medrosos e outras mil palavras ofensivas. O cara curtia, era feliz me vendo sofrer. Eu falei aos demais soldados que eles experimentariam o mesmo (sofrimento) se fossem judeus como eu”.
Nem os bombardeios ingleses em 01/05/1982, fizeram que Flores Ardoino deixasse de tratar Sílvio Katz como seu inimigo. Pelo contrário, com o passar dos dias, descarregava todas suas tensões; intensificando os maus tratos. O jovem judeu de 19 anos passava noites inteiras sem dormir pelo intenso ruído das bombas, acumulando-se também dias e dias sem comer; uma vez que seu superior lhe negava alimentos.
Enquanto preparava o grupo para o combate, Flores Ardoino conseguia uma garrafa de whisky e colocava todos os soldados enfileirados. Seguidamente, lhes dava um trago a cada um deles, mas ao chegar até Katz ele dizia: “Você não vai beber, você será morto”. O soldado judeu lembra que chegou a pensar que “seria melhor morrer e tomara [que] isso aconteça logo”. Encerrada a guerra, Katz não duvidou e denunciou o militar à justiça.
‘Hitler’ nas Ilhas Malvinas
Por mais terrível que pareça, a de Silvio Katz não é a única história que descreve a raiva dos oficiais perante os soldados judeus de Malvinas. Relatos e denuncias fazem parte do livro do jornalista judeu Hernán Dobry “Los Rabinos de Malvinas”, publicado no 30º aniversário do conflito. Mesmo sem saber o número exato de combatentes judeus, Dobry conseguiu localizar 25 deles, sendo que 10 deram depoimentos reveladores.
No meio aos bombardeios, enquanto ingleses destruíam as defesas antiaéreas argentinas; um suboficial argentino ficou surpreso ao saber que Pablo Macharowski do “Grupo de Artilharia Aerotransportado 4” lutara até cair ferido. Numa ocasião diz: “É estranho que vós, um judeu, estes combatendo aqui”. O jovem Macharowski, engolindo saliva, respondeu: “Sou argentino e nada tem a ver minha condição de judeu ou não”.
A poucos quilômetros de Macharowski, Claudio Alejandro Szpin, do “Regimento de Infantaria Mecanizada 3” (RIMec 3), vivia situação similar enquanto fazia guarda com seu amigo Vainroj. A condição de argentino era essencial para os militares. Os acontecimentos pioravam se a pessoa professava a fé judaica. Como se isto fosse excludente, pois para alguns ser judeu impossibilitava ser totalmente argentino.
No continente, grupos de soldados se alistavam para cruzar até Malvinas e combater. Alguns viajavam durante a noite, voando perto das águas para não serem detectados e derrubados pelos radares britânicos. Em 03/06/1982, Marcelo Eddi, do “Regimento de Infantaria Patrícios” (RIP 1) já estava em Comodoro Rivadavia. Nesta pequena cidade, seu superior lhe ordenou que fizesse guarda frente ao galpão dormitório. Ali anunciaram aos soldados que nesse dia, a seção de morteiros sairia rumo às ilhas. Já prestes a partir, o chefe da unidade afastou Marcelo Eddi do grupo, dizendo-lhe que “não partiria por ser judeu”.
Eddi fez tudo o que estava ao alcance para viajar a Malvinas trocando o lugar de outro soldado tremendo de medo de embarcar. Em 06 de junho chegou ao cerro Dos Hermanas (Duas Irmãs) na primeira linha de fogo. Ele comenta que “o tenente primeiro que nos acompanhava parecia o filho de Adolf Hitler, era um nazista, se vestia igual e se penteava o cabelo com gel igual a Hitler”. Eddi foi colocado de lado. Então, este tenente se colocou de seu lado e disse: “Vou levar todos os soldados crioulos, mas jamais um judeu”. Então Eddi lhe respondeu: “Não há problema. Acontece que por aqui todos são valentes como o senhor”. O tenente o repreendeu forte por ter dito aquilo, dizendo: “Não me conteste, soldado”. Eddi, sem nada a perder, lhe replicou: “Que vai me acontecer? O senhor vai me bater o me colocar na cadeia?” O tenente, irritado, o ofendeu com palavrões. Desta forma acabou uma das conversas mais agressivas entre um soldado judeu e seu superior.
Uma situação parecida experimentou Sigrid Kogan, também do Regimento 1 de Infantaria. Sua unidade estava ainda em formação em Palermo e os oficiais passavam com listas selecionando os soldados que iriam a Malvinas. Mais uma vez, o ser judeu foi motivo de deboche e ódio por parte dos superiores. Os oficiais confinaram todos os soldados num lugar de agrupamento e de repente perguntaram: “E os judeus não virão? Quem são aqui judeus? Soldado Kogan, um passo ao frente… e quando mencione o nome Fernandez, diga presente”. Assim, o judeu Kogan foi obrigado a emprestar seu sobrenome e substituir outro soldado que sequer havia chegado até o grupo. Fernandez não estava na lista original dos que viajariam a Malvinas, e o judeu Kogan acabou sendo seu substituto.
Sua sorte não mudou ao chegar as Ilhas Malvinas, e muito menos depois de começarem os bombardeios. Ao sentir-se mal ficava na sua trincheira e evitava ir à enfermaria para não ser maltratado. Num depoimento do diário pessoal registrou: “Mesmo nas horas de maior dor evitei ir à enfermaria para não ouvir a fala agressiva de meu superior”.
Agressões absurdas
Muitas vezes, as ofensas beiravam o absurdo. Adrián Hasse, um soldado do “6º Regimento de Infantaria Mecanizada” (RIMec 6), localizado na cidade de Mercedes, comenta que, em meio aos bombardeios ingleses sobre o Monte Goat Ridge, chamou a seu superior e lhe confessou: “Certo dia me chamou o subtenente Frinko e me disse: Sabe uma coisa? Eu odeio judeus”. Adrián, ainda estupefato pela observação, ousou lhe perguntar: “Por que?”. E o oficial argentino lhe retrucou: “Não sei, mas os odeio”.
O antissemitismo não era dissimulado, e, por momentos se manifestava abertamente com extrema violência e desprezo. Essa postura antijudaica se intensificava com o passar dos dias, acentuando-se ainda mais quando começaram os bombardeios britânicos. Era como se os bombardeios legitimassem as agressões contra soldados judeus. O soldado Claudio Alejandro Szpin, citado anteriormente, apanhou por intervir e querer defender seu amigo Vainroj.
Receber encomendas de casa era excelente pretexto para despertar a ira dos oficiais. Sergio Vainroj comenta que em junho de 1982, recebeu uma encomenda e o sargento lhe ordenou: “Traga isso para cá”. Olhou o pacote e desabafou: “Judeu maldito, te enviam encomendas, ne? Como pode ser que teu sargento não receba nada?” O sargento gritava palavras de baixo calão, e fervendo de ódio, acusou Vainroj de insubordinação perante o capitão. Ele ainda “chegou a solicitar que o enviassem ao front, na primeira fileira de combatentes”. Sua história teve um final feliz, pois através da intervenção de outro superior foi deixado longe do front.
Torturas e “bailes”
Alguns soldados judeus que receberam maus tratos em Malvinas não estavam surpresos com a violência, a intolerância e os abusos de poder reinantes nas fileiras do exército argentino. A descriminação contra judeus não era diferente para os soldados nascidos em 62 e 63. Desde décadas anteriores, havia um comportamento hostil entre os membros das Forças Armadas. Não podemos afirmar que se trate de um fenômeno institucional, mas certamente esta postura existiu com bastante frequência.
As hostilidades incluíam insultos e maus-tratos físicos, sobrecarga de tarefas, especialmente aquelas que eram insalubres. Jorge Carlos Sztaynberg, soldado da Companhia de Engenheiros Mecanizada 10, situada na província de Buenos Aires; lembra haver suboficiais especialmente nomeados para chutar e maltratar judeus.
Havia soldados judeus que eram convocados para as sessões de “baile” (tortura), as vezes em terrenos pedregosos ou sob baixas temperaturas. “Éramos cinco soldados judeus e sofríamos de persecução. Às 2h da manhã nos acordavam e nos tiravam a bailar apenas de cuecas, ceroulas e camisetas. Isto se realizava em lugares inóspitos, no campo, obrigando-nos a aplaudir com cactos nas mãos, arrastar-nos na lama e no chão pedregoso de granito. Todos nós estávamos com cotovelos e pés sangrando”, lembra Gustavo Guinsburg, soldado judeu da Brigada da Infantaria Mecanizada 11, em Rio Gallegos. Sílvio Katz também concorda: “Durante o serviço militar (colimba) nos bailavam a todos os judeus, uma ou duas vezes por semana”.
Parte dos castigos aplicados aos judeus encontravam explicações na religião, vinculando-os à acusação de que eles haviam crucificado Cristo. “Recebíamos maus-tratos, nos chamavam judeus malditos, e falavam que havia que matar-nos a todos. O oficial Kauffmann, dizia que nós (judeus) havíamos matado Jesus, e que tínhamos toda a culpa nesta vida, que éramos traidores e que ele (Kauffmann) iria me converter ao Cristianismo. Ele me ordenara ir à missa. Eu ficava do lado de fora da capela e escutava. Certa vez me diz: Você será um coroinha”. Eu aceitei e se surpreendeu. Colocou em mim a túnica e fui ao lado do padre. Muito bem, a você farei um bom cristão, e eu lhe respondi: “O único que fiz é ajudar um padre, mas continuarei sendo judeu”, afirma Cláudio Alejandro Szpin.
O antissemitismo que pairava no exército argentino era intenso, inclusive com fortes ameaças de morte e lembranças dos nazistas e de Hitler. “Realmente não entendo como vocês (judeus) ainda estão aqui, pois os nazistas já deveriam ter matado a todos”, lembra o soldado Marcelo Laufer do Regimento de Infantaria No. 1.
Pablo Kreimer fez um discurso similar: “Havia um cabo que, ao fazermos a instrução militar básica, passava o dia inteiro cantando a seguinte estrofe: “Aí vem Hitler pelo paredão, matando judeus para fazer sabão”. Certo dia esse cabo comentou com muito orgulho: “Sabia que Hitler também foi cabo?” E Laufer lhe respondeu: “Isso não é coincidência, pois ele [Hitler] não daria para nada melhor, como o senhor”.
O retorno de Malvinas
O general Mario Benjamín Menendez assinou a rendição de Malvinas em 14/06/1982. No fim do conflito o clima entre os soldados judeus era de ódio e dor pela morte de companheiros, e sossego e alivio pelo encerramento de três meses de sofrimento.
Porém, poucos imaginavam que o sofrimento dos soldados estava apenas começando: judeus argentinos os tratavam de loucos, e pouco fizeram para reintegra-los à vida cotidiana. Vários podiam ser vistos procurando retomar estudos ou buscando trabalho. Muitos entraram em depressão. Atualmente, estatísticas demostram que, entre 1982 e 2012, o número de suicídios de ex-combatentes superou àquele de soldados mortos em combate na própria guerra.
As instituições da comunidade judaica não se preocuparam pelo estado psicológico-emocional dos soldados israelitas. Entidades como DAIA e AMIA nem tomaram conhecimento do delicado momento ao voltarem para casa; muito menos da forma em que cada um deles continuou sua vida particular. O desinteresse comunitário provocou uma forte dor entre os ex-combatentes judeus. Diante desta situação, o jornalista Hernan Dobry propôs ao então Presidente da DAIA, Aldo Donzis, organizar um ato oficial em que os combatentes judeus sejam homenageados, reconhecendo-lhes sua bravura em Malvinas. Na ocasião, uma lista nominal com os dados de cada soldado foi entregue. Mas, de nada adiantou, pois esse ato nunca aconteceu. A campanha comunitária foi retomada somente em 17/11/2011, quando os soldados Szpin, Vainroj e Katz foram até Donzis a “cobrar” suas homenagens, solicitando também realizar visitas nas escolas judaicas e contar suas histórias no front.
Passaram-se vários anos e somente em 20 de abril de 2012, estes soldados foram finalmente reconhecidos por seus atos de bravura e heroísmo. A comunidade judaica argentina pode estar orgulhosa por ter em suas fileiras pessoas deste quilate.
Bibliografia
Alonso Piñeiro, A., Historia de la Guerra de Malvinas. Editora Planeta. Buenos Aires 1992.
Ben Dor, Graciela, Católicos, nazis y judíos. La Iglesia argentina en los tiempos del Tercer Reich. Editora Lumière. Buenos Aires 2003.
Dobry, Hernan, Los Rabinos de Malvinas. Editora Vergara. 1ª edición. Buenos Aires 2012.
Lotersztain, Gabriela, Los judíos bajo el terror: 1976-1983. Ejercitar la Memoria. Buenos Aires 2008.
Lvovich, Daniel, Nacionalismo y antisemitismo en la Argentina. Editora Vergara. Buenos Aires 2003.