Abracadabra e Shabriri no Judaísmo

(Abracadabra e Shabriri no Judaísmo, GERAÇÕES BRASIL No 9, maio 2000, págs. 14-15).

A enigmática palavra “Abracadabra”, vulgarmente utilizada pelos mágicos em suas apresentações públicas, é uma antiga fórmula aramaica (hebraico antigo) extraída do misticismo judaico e da Cabala prática, aceita também nas diferentes culturas da Mesopotâmia. No antigo Oriente, berço da civilização, era comum acreditar que esta estranha palavra possuía poderes superiores, celestiais, capazes de curar todo tipo de doenças, especificamente as chamadas doenças de quarentena.

São várias as possíveis origens da fórmula Abracadabra e a maior parte delas se remonta ao nome aramaico de um demônio. Outros acreditam que o nome deriva da palavra Abraxas, uma pedra utilizada no mundo antigo para rituais religiosos. Que eram Abraxas? Qual a função dos abraxas nos rituais mesopotâmicos? Estudando a etimologia do termo, vemos que se refere a uma palavra composta: em grego “abrós” significa “belo” e “são” representa o “Salvador”.

Uma segunda leitura, pouco verossímil, vincula o termo aramaico “ab” que significa “pai” ao verbo “bará” (Gen.1:1) que significa “criar”. Há nestas duas etimologias o fator divino personalizado num “pai-salvador”, e o fator humano representado na própria “beleza da criação”.

A primeira menção da palavra Abracadabra em textos, aparece num documento do século II atribuído ao médico romano Severus Sammonicus. Ele redigiu um tratado terapêutico de versos hexâmetros intitulado “Preceitos da Medicina”, onde ensina o modo correto de colocar os caracteres da palavra ABRACADABRA.

As formas seriam as seguintes:

A B R A C A D A B R A

B R A C A D A B R A

R A C A D A B R A

A C A D A B R A

C A D A B R A

A D A B R A

D A B R A

A B R A

B R A

R A

A

 

A B R A C A D A B R A                                                       ABRACADABRA

B R A C A D A B R A                                                              BRACADABR

R A C A D A B R A                                                                     RACADAB

A C A D A B RA                                                                             ACADA

C A D A B R A                                                                                    CAD

A D A BRA                                                                                             A

D A B R A

A BRA

B R A

R A

A

Todas as letras escritas devem estar colocadas num pergaminho e dobradas em triângulo, de forma tal que, da parte externa não seja possível decifrar as letras. Esta fórmula de letras Abracadabra era amarrada por meio de um fio branco ao pescoço do enfermo durante nove dias. Encerrado deste período, o convalescente levanta de sua cama vagarosamente, e caminha até as margens de um rio; e naquelas águas ele atira o pergaminho com sua fórmula mágica. Durante o tempo em que o paciente tinha contato com a fórmula, ele repetia, diariamente, as palavras: “que sejam combatidas as febres intermináveis, as fraquezas existentes e que todas as doenças mortais sejam afastadas com seu maravilhoso poder de cura”.

Também era comum usar pergaminhos com acrósticos em forma de pirâmide invertida (triângulo), em geral de palavras incompreensíveis, arrumadas segundo o modelo do Abracadabra. Citarei como exemplo:

AKRABOKUS

KRABOKUS

RABOKUS

ABOKUS

BOKUS

OKUS

KUS

US

S

Assim, da mesma forma que existem as fórmulas Abracadabra e Akrabokus, existem outras tantas enunciações de origem judaica, que aparecem em inscrições e lápides, em encarnações e até em pequenos amuletos. Uma dessas fórmulas é Shabriri, que assinala o nome do demônio da cegueira. A palavra Shabriri foi utilizada frequentemente pelos judeus sefaraditas, tanto iemenitas e persas como também por judeus ibéricos (espanhóis e portugueses), em belos anéis, pendentes ou amuletos. A curiosa fórmula shabriri aparece registrada desde tempos antigos em alguns tratados do Talmude, como em Pesachim 112a e Avodá Zará 12b da seguinte forma:

S H A B R I R I

A B R I R I

R I R I

R I

 

S H A B R I R I                                                                                        SHABRIRI

H A B R I R I                                                                                               HABRIR

A B R I R I                                                                                                     ABRI

B R I RI                                                                                                             BR

R I R I

I R I

RI

I

A escrita mágica desta fórmula talmúdica estava disposta de forma tal que, em cada linha ia-se perdendo uma ou mais letras. Qual seria, então, o significado oculto da gradual diminuição das letras? Segundo os sábios, assim como se perdem as letras (o fator terapêutico), da mesma forma sumiram (quase que por completo) a febre intermitente, as terríveis convulsões, e as numerosas doenças que afetam o corpo da pessoa.

Existe outra fórmula alternativa, utilizada pelos judeus, similar em seus efeitos mágicos e terapêuticos, à palavra “Abracadabra” e a fórmula hebraica “shabriri”. Trata-se da expressão Vatishka Esh, ou seja “e o fogo foi contido”. A febre que afetava o paciente era o fogo. A prece alcançava a doença e desta forma ela seria estirpada. Esta comparação, as vezes afastada da própria realidade, tem suas origens num episódio bíblico (Números 11: 1-2) onde o relato diz que quando o Povo de Israel começou a reclamar amargamente perante Deus, o Todopoderoso ouviu isto, irou-se, e ascendeu entre eles um fogo que devorou a extremidade do acampamento no deserto. O povo judeuimplorou a Moisés, Moisés orou ao Senhor e finalmente o fogo extinguiu-se [Vatishka Esh]. Conjugando-se o verbo hebraico “shin-kof-ain” (inf. lishkoa), que significa “apagar”, “extinguir”, “afundar” ou “aplacar”, a fórmula redentora seria a seguinte:

V A T I S H K A E S H

T I S H K A E S H

S H K A E S H

O teólogo cristão Wendelin de Tournay acreditava que as quatro primeiras letras do termo “Abracadabra” seriam as iniciais de AV, BEN, RUACH AKODESH, que na língua hebraica significa “Pai, Filho, Espírito Santo”.

AV

BEN

RUACH

AKODESH

Em outras palavras, segundo Wendelin, estaríamos na presença das Três Pessoas da Sagrada Trindade. Obviamente, os rabinos e talmudistas da época jamais aceitaram esta interpretação provocativa de cunho cristológico.

Outros exegetas interpretaram de modo diferente a fórmula Abracadabra. Estes acharam que a forma seria uma corruptela da palavra Bracha ou Bircat ou Bracha . Seja como for, esta última possibilidade aparece como uma hipótese forçada, sem fundamento e um tanto especulativa.

Resumindo, podemos afirmar que não há certeza acerca da verdadeira origem da fórmula Abracadabra, no entanto um fato resulta indiscutível: um número bastante considerável de expressões de raiz aramaica-hebraica, era utilizado pelos judeus de formas similares, para obter uma cura ou qualquer outro objetivo superior de caráter terapêutico. Os reais efeitos da cura ao pronunciar-se a palavra Abracadabra são difíceis de avaliar, ficando esta enigmática questão em aberto para outra oportunidade.

Bibliografia

Barzilai, Gli Abraxas, Trieste 1873.

Bellerman, A., Tres programas sobre las piedras abraxas, Madrid 1820.

Dietrich, A., Abraxas , Berlin 1891.

Enciclopedia Judaica, vol. 2, pág. 111

Fernandez Valbuena, Egipto y Asíria resucitados, Madrid 1879.

Kircher, P., Prodromus coptus sive aegyptiacus, Amsterdam 1672.

Laurent-Delille, Les Superstitions des sectaires aux premièrs siècles, Paris 1859.

Rosenbach, E., Idolatría y Cabala, traducción española, 1ªed. Berlin 1906.

Trachtenberg, J., Jewish Magic and Superstition, New York 1939.