Em 1938, quando o regime de Benito Mussolini publicou leis racistas, uns 10.000 judeus italianos militavam nas fileiras do Partido Nacional Fascista. Na época, quase um de cada quatro membros da comunidade judaica idolatrava o Ducce, participava de comícios, entoava canções partidárias, usava símbolos fascistas em suas vestimentas, se engalanava para os momentos de grande júbilo, defendendo incondicionalmente o regime estabelecido. Eram profissionais liberais, comerciantes, juizes, docentes, cientistas e pessoas ligadas à cultura que amavam sua condição de italianos.
Com as proibições de 1938, estes judeus demoraram em reagir, em tomar consciência de que o abismo que se abria a seus pés seria bem profundo, ignorando uma realidade hostil que começava a pressioná-los; enfrentando grandes obstáculos, por vezes intransponíveis. Muitos preferiram emigrar, enquanto outros ficaram no país. Estes últimos se viram obrigados a deixar seus trabalhos assumindo uma condição de parias e marginalizados. A partir de 1943 os judeus que moravam ao norte da Itália, foram levados a campos de extermínio nazista, principalmente diante do desembarque das forças aliadas na Sicília.
Cabe perguntar: Como foi possível um grau tão grande de adesão judaica ao partido fascista sem prever eventuais perigos? Que fatores os converteram em ativos militantes “camisas pretas”? Por acaso os judeus não imaginavam que mesmo militando seriam acusados pelas desgraças mundiais? Eles não liam jornais locais e internacionais, não escutavam rádios nem se informavam nas salas de cinema para saber o que acontecia no restante da Europa sob a bandeira da extrema direita? Profissionais e universitários não tinham acesso a livros ou participavam de palestras em seus círculos de trabalho? A aliança política Roma-Berlim entre Hitler e Mussolini não era um claro sinal que nuvens carregadas sondavam os céus da Europa?
Como entender tamanha cegueira coletiva por parte dos judeus italianos?
A rigor, tal qual aconteceu na Alemanha do Terceiro Reich, os judeus italianos se sentiam mais italianos que judeus. Isto por não ter experimentado perseguições, assassinatos e pogroms. Viviam de costas à Europa, principalmente desconhecendo toda a dor e o sofrimento dos judeus do leste europeu. Os judeus italianos também desprezavam a extrema pobreza e a religiosidade desmedida dos “outros judeus”, aqueles que não eram como eles, aceitos como verdadeiros italianos.
Alguns pesquisadores acreditam que o Ducce estava longe de defender uma postura antijudaica e padrões abertamente antissemitas; e que os líderes das comunidades judaicas costumavam elogiar o movimento fascista dentro e fora da sinagoga. Naturalmente, existem também outras opiniões e interpretações acerca da identificação dos judeus italianos face ao movimento fascista. Para estes estudiosos havia uma real necessidade de que os ebrei fossem tratados primeiramente como italianos e logo como judeus. Assim, toda mobilização de judeus em favor de Mussolini seria uma forma de expressarem seu extremo nacionalismo e suas reivindicações cívicas. Talvez seja por isto que os judeus consideravam o fascismo como uma volta ao Risorgimento, a luta incansável do século 19 pela consolidação da unidade nacional e cristalização da identidade italiana.
Numa reportagem feita ao escritor judeu-alemão Emil Ludwig (23 de março de 1932), menos de um ano de Hitler assumir o poder, Benito Mussolini afirmava: “Os judeus italianos sempre tem se comportado como bons cidadãos e tem combatido valentemente como soldados”. Não obstante, o Ducce também costumava dizer que “os judeus são meus piores inimigos”. É sabido que Mussolini impediu a sua filha Edda de casar com um judeu, finalmente consolidando sua união com o Conde Galeano Ciano, a quem lhe ofereceu poderes absolutos na política exterior do país.
Por inícios do século 20, para grande parte dos dirigentes políticos da Itália, os augúrios de Marx não se haviam cumprido: o capitalismo avançava rapidamente, o empobrecimento ganhava novos setores da população italiana e os operários se integravam política e culturalmente às sociedades ocidentais. O socialismo italiano, igual ao Partido Social-Democrata alemão, virava cada vez mais reformista e crítico. Ambos aceitavam o liberalismo político e pregavam fidelidade aos princípios marxistas. Em meio deste turbilhão de ideias nasceu a proposta do fascismo.
O Ducce teve considerável colaboração de judeus em sua Marcha sobre Roma. Ele mantinha ministros judeus em seus gabinetes de governo e convivia com conhecidas mulheres judias. Tudo isto parece entrar em choque com o impulso que tomava o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães; o segundo partido em votos nas eleições de 1930, força que tinha forte admiração pela figura do Ducce Benito Mussolini. Desde 1922, ano da ascensão dos fascistas, Mussolini era o ídolo mais respeitado e louvado pelos dirigentes nazistas. Fascistas italianos e fascistas alemães se consideravam irmãos políticos na empreitada modernista contra os fundamentos do comunismo e os fetiches liberais que acompanhavam historicamente o Ocidente. O propósito era acabar com um passado decadente originado na Rússia.
Em 1939, sete anos após a entrevista de Ludwig, foi editado em Buenos Aires o livro “La última voltereta de Mussolini” do judeu-italiano Eli Rubin, um ex-agente do Ministro de Propaganda do Ducce. Nessa obra seu autor afirma: “Na Itália o antissemitismo foi uma criação absolutamente artificial, uma descoberta realizada por decreto do dia para a noite”. Rubin acha também que o fracasso da invasão a Abissínia (1935-1936) e o envio de pessoas a campos de trabalho forçado, represálias e inclusive uso de gás mostarda; fez o regime italiano procurar um “bode expiatório” que respondesse pelos erros do governo. A aliança Roma-Berlim foi certamente responsável pela luta contra o comunismo e contra o judeu internacional.
Os judeus italianos
Judeus habitam Itália desde tempos remotos. Eles povoavam os territórios do Império romano e a bacia do Mediterrâneo desde antes do ano 70 d.C; data da destruição do Templo de Jerusalém. Chegaram desde o norte atravessando os Alpes, desde a Germânia, migrando da Gália e da Hispânia, desde tempos dos Reis Católicos em 1492. Comunidades judaicas surgiram ao norte e sul do território italiano. Em Apúlia e Calábria os judeus protestaram pela perda de direitos, em Pompéia havia ricas comunidades devastadas pelo vulcão Vesúvio e em Salerno a Universidade de medicina contava com numerosos docentes judeus. Ultimamente, vem sendo comprovada a presença judaica na Sicília, especificamente em Brindisi, Cápua, Venosa, Lavello, Matera, Siracussa, Caserta, Sessa, Sorrento, Alife, Sanseverino, Eboli Cosenza, Reggio e Catanzaro. Foram achados restos arqueológicos de sinagogas dentro de igrejas e monastérios.
Judeus italianos atuaram no comércio, exportando para o Oriente algodão, queijos e couros. Importavam também produtos como arroz, índigo e linho para a indústria têxtil. A comunidade de Palermo tinha rabinos que mantinham contatos com os de Babilônia. Como Sicília pertencia ao Reino de Aragão, seus judeus sofreram o desterro como seus irmãos espanhóis. Fizeram parte da dispersão hispana que se dirigiu a Nápoles, Roma, Bálcãs e o Império turco-otomano. Nem todos abandonaram o país, alguns adotaram a conversão para seguir vivos, mas despertaram suspeitas das autoridades por manter suas práticas judaicas. Eles usavam apelidos de judaizantes freqüentes nos arquivos da Inquisição, como por exemplo: Barone, Amato, Campagna, Mazza, Bruno, Bonfiglio, Bonanno e Moncada.
A presença de Napoleão em 1797 levou à Itália os ideais da “Declaração dos Direitos do Homem”. Os judeus italianos ingressaram na modernidade deixando de lado mentalidades e comportamentos típicos do gueto; adotando o forte impulso doutrinário imposto pela Revolução Francesa. A queda de Bonaparte e o Congresso de Viena de 1815 -responsável pela divisão da Itália- retornaram novos ares discriminatórios contra os judeus. Em Toscana lhes confiscaram seus direitos políticos, em Piedemonte foram confinados em guetos sendo-lhes proibido entrar após 9 horas da noite, perderam suas vagas nas universidades, foram expulsos das escolas, negando-lhes também a possibilidade de empregar cristãos. Nos Estados do Vaticano e em Módena os judeus pagavam impostos especiais para serem tolerados.
Durante o Risorgimento de 1848, movimento de afirmação nacionalista italiano, os judeus obtiveram uma participação destacada, encontrando-se líderes como os irmãos Ciro e Giuseppe Finzi. Por 1870 havia na Itália aproximadamente 35.000 judeus, e a maioria atuava na vida política do país. Eles se consideravam cidadãos italianos em igualdade de direitos com outros cidadãos.
Em 1920 Itália contava com 350 senadores dos quais 19 eram judeus. A integração era total e definitiva. Enquanto a maioria da população era analfabeta, os judeus sabiam ler e escrever. Em 1930, um 8% dos professores universitários eram judeus. Nesta lista encontramos sobrenomes como Levi, Beppo, Salvatori, Atílio, Ezio, Giuseppe, Alessandro, Teodoro, Camilo e Renato. Outros sobrenomes achados são: Segré, Ângelo, Giorgio, Gino, Vittorio, Beniamino, Tedeschi, Volterra, Ruggero, Fabrio, Luzzatto, Vico, Mantovani, Ottolenghi, Ascarelli, Rabenne, Cassuto, Castelnuevo, Castiglione e Sermonetta. Entre sobrenomes de intelectuais judeus achamos: Sabatini, Pollitzer, Liuzzi, Loria, Lattes, Sacardoti, Olivetti, Rabean, Toscano, Pollaco, Treves, Diena, Salemi, Sarzoti, Leone, Siracusa, Ara, Monterossi, Bevilacqua, Bolaffio, del Vecchio, Sanguinetti, Colombo, Barzilai, Mondolfo, Schiff e Falcó. O médico César Lombroso, ícone do positivismo e estudioso da antropologia criminal, nunca negou sua origem judaica. Por 1935 dentre 2.525 personalidades notáveis do país, 169 eram judeus.
Judeus foram o novelista Alberto Moravia (pseudônimo de Alberto Pincherle 1907-1990), o fundador do impressionismo italiano Serafino da Tívoli (1826-1892), o compositor e músico Alberto Franchetti (1860-1941), o escritor e filólogo Alessandro d´ Ancona (1835-1914), o diretor das bibliotecas de Florência e Veneza Salomone Morpurgo (1860-1942), o violinista e compositor Federico Consolo (1841-1906), o matemático Túlio Levi Civittá (1873-1941), Ernesto Nathan (1848-1921) o prefeito de Roma entre 1907-1913 e o Primeiro Ministro Luigi Luzzatti (1841-1927), deputado três vezes e organizador dos Bancos Populares na Itália.
Os judeus de Mussolini
Mussolini nunca atuou sozinho. Ele contava com a permanente cooperação de militares, polícia, juízes, funcionários públicos, tecnocratas nacionalistas e forças conservadoras. Quinze anos após a pomposa Marcha sobre Roma, o Ducce continuava dominando uma administração pública cuja estrutura liberal foi herdada da 1ª Guerra Mundial.
Desde um primeiro momento o chefe de estado contou com colaboradores judeus. Alguns surgiram como ele das fileiras socialistas, mas abandonaram o internacionalismo na 1ª Guerra. Dentre eles podemos mencionar a militante política Margherita Sarfatti, filha de uma rica família judaica fundadora da linha de “vaporettos” que circulava pelos canais de Veneza. A Sarfatti possuía vasta cultura e forte versatilidade para os idiomas, convertendo-se rapidamente numa embaixatriz do fascismo nas mais importantes capitais do mundo. Ela freqüentava salões de pintura e embaixadas sendo considerada uma “rainha das artes”. Ministrava palestra em universidades dos EUA e escreveu o livro de maior exaltação fascista intitulado “Dux” conhecido no mundo inteiro.
Outros judeus que apoiaram Benito Mussolini foram Aldo Finzi, grande repressor dos antifascistas; e Carlos Foá, um renomado fisiologista que publicou a revista “Gerarchia” aprimorando as opiniões do pensamento fascista. Finzi participou na 1ª Guerra, liderou a Marcha sobre Roma e ocupou a função de Vice-ministro do Interior e membro do Conselho Gerali do Partido Fascista. Em 1943 ele se uniu ao movimento socialista, sendo expulso do partido e assassinado em 1944.
Na Marcha sobre Roma se destacaram aproximadamente 300 judeus italianos. Dita manifestação contou ainda com a ajuda econômica de vários industriais da aristocracia do norte do país. Ali Mussolini tinha amigos e simpatizantes como Giovanni Agnelli da Fiat, Carlo Esterle, Mario e Pio Perrone que apoiavam o jornal “Pópulo Italia”. Desde sempre o Ducce solicitou ajuda de empresários, em especial da “Confederazione Generale dell´ Industria Italiana”, liderada entre 1919 e 1934 pelo judeu Gino Olivetti, um reconhecido administrador. Durante a crise política que se apoderou da Itália em 10 de junho de 1924, Olivetti saiu em defesa de Mussolini, alertando à população que qualquer insurreição política acarretaria desordem social e a interrupção de uma vida econômica produtiva.
A crise financeira de 1929 e a queda de Wall Street nos Estados Unidos levaram o governo fascista a manifestar-se em prol de grupos industriais como forma de reduzir a fragmentação das propriedades e da administração. Industriais judeus apoiavam o governo, criando-se bases legais para motivar iniciativas privadas de produção.
Ao elencar as principais figuras do judaísmo italiano entre 1850-1950, devemos relacionar os seguintes nomes: Guido Jung (1876-1949), Gino Arias (1879-1940), Giorgio del Vecchio (1878-1940), H. Ancona, A. Luria e T. Meyer (todos assessores econômicos e banqueiros), L. Toeplitz (banqueiro) e Otto Hernan Kahan (filantropo), Maurício Rava, Isaías Levi (1863-1949), Ugo Ancona (1867-1936), Theodoro Meyer (1860-1942), Achille Loria (1857-1943), Ettore Ovazza (1890-1943), Ítalo Balbo (1896-1940) e Pietro Badoglio (1871-1945).
Mussolini e o Sionismo
No decorrer dos anos 30, por meros interesses políticos, Mussolini apoiava tanto aos nacionalistas árabes da Palestina como aos sionistas. Esta ambivalência se manteve até ele assinar com Adolf Hitler um acordo de defesa mutua; momento em que o Ducce se posicionou abertamente “contra o perigo judaico”. Diante desta realidade o líder da Itália navegou por distintas águas: mantinha contatos e afetos compartidos com Vladimir Zeev Jabotinsky (1880-1940), virtuoso orador sionista, soldado e político fundador do movimento revisionista. A agência de noticias fascista “Avanti” comemorou em 1935 a celebração do Congresso dos Sionistas Revisionistas pelo apoio oferecido a Itália durante a campanha a Abissínia. Na ocasião Mussolini comentou com o Rabino de Roma o seguinte: “As condições necessárias para o êxito do movimento sionista dependem da criação de um Estado judeu, de içar uma bandeira e deter uma língua. Há uma pessoa que conhece isto muito bem, é o cidadão fascista Jabotinsky”.
Jabotinsky foi influenciado por Theodor Herzl e adotou o sionismo como bandeira. Durante a 1ª Guerra Mundial criou a “Legião Judaica” e lutou pela libertação da Palestina sob Mandato Britânico (1917-1947). Foi oficial do 38º Regimento de Fuzileiros do Rei, combatendo às ordens do general Allenby. Em 1918 Jabotinsky se estabeleceu na Terra de Israel criando milícias judaicas para enfrentar os árabes. Fundou também o Betar, um movimento juvenil sionista cujos membros vestiam camisas pardas como os “squadristi” ou jovens fascistas. Este sionista de direita que já admirava Mussolini encontrou-se com o polonês Jozef Pilsudski; mas pressionou o Congresso Sionista para repudiar a política do Terceiro Reich.
Após a rápida adoção e instauração de leis racistas por parte do Estado italiano em 1938, os fascistas iniciaram uma campanha aberta contra o sionismo. A rigor, foram os sionistas aqueles que entenderam que a derrota militar na África levaria Benito Mussolini a entrar em oposição com a Inglaterra e França, buscando uma aproximação com a Alemanha de Adolf Hitler. Esta aliança -baseada em políticas antissemitas- obrigava os judeus-sionistas italianos a buscar uma fuga rumo à Palestina.
A publicação das “Leis de Nüremberg” em 15 de setembro de 1935 atingiu os judeus alemães, mas não gerou uma ameaça para os judeus italianos. Somente os sionistas alertavam sobre o inicio de uma ação antijudaica que não conheceria fronteiras. E eles não se enganavam. A campanha antissemita na Itália iniciada em agosto de 1936, tinha como responsável a Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda do Terceiro Reich. A partir deste momento, cinco jornais bancados pelo Ducce, se encarregariam das campanhas de desprestigio aos sionistas; acusando-os de importar uma “conspiração bolchevique”.
Por 1934 se comentava publicamente a existência de um complô judaico para tirar Mussolini do poder. Quando a policia do Ducce prendeu um grupo antifascista denominado “Giustizia e Liberta”, a imprensa local destacou a origem judaica de seus membros. Vários deles foram julgados e condenados como Carlo Levi, Vittorio Foá, Leone Guinzburg e Sione Segre.
Os judeus italianos conheciam o significado do perigo ocasionado pela publicação das Leis de Proteção e Pureza do Sangue em Alemanha. Mesmo assim, poucos conseguiram enxergar o futuro. Enquanto Primo Levi fazia progressos em seus estudos e participava de encontros da Juventude Fascista (sem ser militante fascista), um colega seu de turma, Ennio Artom, acreditava que os judeus sofreriam diante da crise iminente. As derrotas das forças italianas e a pressão das potencias ocidentais sobre Itália recaiam em especial na França, Inglaterra, nos bolcheviques e nos judeus. A discriminação do Estado ficou clara quando o Ministério do Interior realizou o censo de 14 e 15 de fevereiro de 1938, solicitando pela primeira vez que os cidadãos colocassem sua religião. Poucos meios de comunicação repudiaram esta medida oportunista, intolerante e fascista.
A perseguição italiana
O antissemita Roberto Farinacci (1892-1945), ministro de Estado de Mussolini, foi o responsável por fazer obedecer a aplicação das leis racistas na Itália. Em pouco tempo, diretores de teatro receberam ordens de não exibir peças de teatro de autores judeus; donos de livrarias não poderiam vender livros obras de judeus, sempre alertando do perigo nacional. Os decretos do Conselho Fascista congregado em 07 de outubro de 1938 levaram a vida judaica a sua condição na Idade Média. Aqueles judeus que apoiavam o partido fascista experimentaram um sentimento de tristeza, dor e desapontamento. Suas vidas ficaram sem sentido ao serem expulsos das universidades, dos cargos públicos e do exército.
O coronel Segre mandou todos seus soldados fazer uma formação e diante deles se disparou um tiro na cabeça. O general Ascoli fez o mesmo na sua própria casa. O editor judeu Ângelo Formiggiani se suicidou jogando-se de uma das torres da catedral de Modena. Nenhum deles teve direito a avisos fúnebres nos jornais por serem judeus. O governo italiano decidiu aumentar a pressão por meio de uma programada operação policial na qual se obteria maiores informações sobre os judeus do país: perfil de cada família, tipo de lar, status econômico, etc. A burocracia fez que decretos antijudaicos se convertessem em leis.
Jornais como “La stampa” acusavam diariamente os judeus. Num editorial podemos ler: “Se o Estado fascista é totalitário, não pode permitir que a cultura italiana se veja contaminada pelo Judaísmo”. A palavra “contaminada” era algo novo na Itália, porém bem conhecido na Alemanha. Mussolini sabia que essa onda antissemita seria do gosto de Hitler com quem se uniria no pacto Roma-Berlim-Tokio.
Desde 1934, Benito Mussolini e seu Ministro Roberto Farinacci; se empenhavam em esclarecer a seus cidadãos; que os italianos pertencem a uma raça ariana etnicamente homogênea e superior àquela dos espanhóis, romenos, gregos e levantinos. Odiado pela esquerda italiana, Farinacci caiu prisioneiro dos partisanos que o executaram sem muita cerimônia em 1945.
Em tempos da Kristallnacht (9-10 de novembro de 1938) na Alemanha; os italianos que pretendiam sair da Itália não podiam extrair mais de 2.5000 liras. Segundo estatísticas, nesse período abandonaram o país 6.000 cidadãos, e alguns pagavam para obter passaportes falsos. A família de Primo Levi preferiu ficar. Cesare, seu pai, afetado por um devastador câncer de estomago, sugeriu a conversão ao Cristianismo; mas todos se negaram. Nos cafés era comum um cartaz: “Judeus não são bem-vindos”. Judeus que não se cadastravam na policia eram tomados prisioneiros e encarcerados.
Em menos de um ano, até meados de 1939, aproximadamente 550 judeus destacados nas ciências, letras, artes, comercio e indústria, conseguiram sair da Itália. Dos 42.000 judeus existentes durante a 2ª Guerra, 5.000 foram deportados para campos de concentração e extermínio alemães. Destes, poucos retornaram com vida. Durante o Holocausto foram assassinados 17% do total dos judeus italianos. Em Trieste, de um total de 6.000 judeus, ao finalizar a guerra não haviam sobrado mais de 900. A blitz mais importante de judeus aconteceu em Roma em 16 de outubro de 1943. Foi uma parceria entre alemães e italianos, na qual 1.000 homens, mulheres e crianças foram obrigados a abandonar suas casas, sendo transportados ao gueto e levados em trens a Birkenau. Como é de público conhecimento, o Papa Pio XII não se pronunciou oficialmente contra a perseguição aos judeus da Europa.
O regime fascista jamais demonstrou compaixão com seus inimigos. Entre 1930-1934 foram detidos e encarcerados 6.000 comunistas e antifascistas, todos sem julgamento. Em abril de 1940 Hitler ocupou a Dinamarca, em maio invadiu os Países Baixos e Paris. Em 26 de maio de 1940, um subsecretário do Ministro do Interior de Mussolini escreveu ao chefe da Polícia Arturo Bocchini: “O Ducce deseja que se preparem campos de concentração para prisioneiros, inclusive judeus”.
Por 1941 o numero de detidos havia aumentado para 11.000 pessoas, e em 1943, Itália já contava com 51 campos de concentração, quase todos localizados ao sul. Não eram campos de barracas com arame farpado, eram escolas, conventos, fortalezas, castelos abandonados e edifícios improvisados. Havia ainda lugares especialmente destinados para judeus e outros mistos. Não encontramos campos de extermínio como Auschwitz nem tampouco campos de trabalho forçado.
As vezes fica difícil julgar a pessoas que viveram uma guerra há mais de 70 anos atrás. Mas, é preciso perguntar-se que cegueira tomou conta dos judeus fascistas italianos que não avistaram o futuro negro que lhes estava reservado? Será que negando a realidade conseguiriam fugir dela mesma? Acaso era uma verdadeira necessidade de não serem enquadrados como estranhos para poderem reivindicar uma igualdade desejada? Difícil prognosticar. Aqueles que conseguiram vistos fugiram. Porém, uma maioria decidiu continuar na Itália amarrada aos governos de turno. Alguns seguiram seus estudos, outros acharam trabalhos ocultando seu Judaísmo, e um terceiro grupo se uniu aos partisanos combatendo nas fileiras da resistência.
Primo Levi e Dan Vittorio Segre
Depois do assassinato de vários membros de sua família, Primo Levi se incorporou à luta guerrilheira organizada contra os alemães ao norte da Itália. Após a queda de Mussolini em julho de 1943, estava prestes a combater; mas foi denunciado e feito prisioneiro em dezembro. Enviado primeiramente ao campo de detenção de Rosoli di Capri, dois meses depois seria levado a Auschwitz. Como é sabido, sobreviveu por seus conhecimentos de química.
Ao ser liberado Auschwitz pelos russos, Levi percorreu quase toda a Europa destruída, retornando a Turin, sua cidade natal. Nunca mais se afastou da casa paterna nem da cidade amada, dedicando sua vida profissional a uma fábrica de tintas, especializando-se na produção de esmaltes sintéticos.
Em 1946 Primo Levi entregou ao professor de sua escola secundária Cesare Pavese os manuscritos de “É isso um Homem”. Pavese entendeu que aquele não era o momento ideal para publicar a obra, pois não era conveniente ler uma publicação que transmita dor. Havia que olhar para o futuro e esquecer o sofrimento. Não obstante, Levi conseguiu colocar as descrições dilacerantes da obra nas prateleiras das livrarias. Seu belo texto passou inadvertido na crítica italiana como também na opinião publica em geral. Ganhou notoriedade somente quando a editora Einaudi o publicou. Até 1955 não era prudente nem de bom senso falar do Holocausto. Em 1960 esta obra reflexiva sobre o comportamento psíquico e humano apareceria na Alemanha e Inglaterra. Na França virá à luz depois do suicídio do autor.
Primo Levi teve vergonha e culpa por ter sobrevivido à guerra. Sobreviver era em certa forma um ato de automutilação. Ele faz parte daqueles escritores que presenciaram a queda da natureza humana em todas suas vertentes; tocando o fundo do poço, enxergando passivamente a humilhação e a decadência do homem. Certamente, seu suicídio tem tudo a ver com a depressão que o acometeu ao ver em livros e discursos a negação do Holocausto.
Outro escritor italiano que narra suas experiências em tempos de guerra é Dan Vittorio Segre, um judeu de família rica, criado por governantas, que também sofreu antissemitismo até 1938. Neste ano ele consegue fugir para Palestina, se incorpora ao serviço diplomático israelense para encerrar sua vida como professor da Universidade de Haifa. Nos 16 anos em que viveu na Itália, Dan Segre participou com total naturalidade nas organizações fascistas (Balilla e Avanguardisti); como também das exibições ginásticas organizadas pelo partido do Ducce.
A mãe de Dan Segre, uma militante da divisão feminina do fascismo, obteve uma autorização para que Dan pudesse ausentar-se na escola das aulas de religião. Nas 5as feiras ele fazia aulas de Tora para seu Bar Mitzva. Seus pais começaram a reparar o perigo fascista em 1937, quando grupos de baderneiros (protegidos pela polícia) entraram numa sinagoga, interrompendo com gritos antissemitas os serviços religiosos e batendo nos judeus ali presentes.
Somente as consequências da guerra e os tormentos dos campos de concentração levaram Primo Levi a assumir sua condição judaica. Ele escreveu: “Esta experiência dupla, as leis racistas e o campo de extermínio, estão gravadas em mim como uma placa de aço. Agora sim sou judeu, costuraram em mim a estrela de Davi e não apenas nas minhas roupas”. E depois diz: “O verdadeiro crime, o crime geral de todos os alemães daquela época, foi a falta de coragem para falar”. Seguindo à risca esta afirmação, poucas são as confissões de judeus fascistas italianos reconhecendo o maior erro estratégico: a crença de poder separar a experiência italiana da alemã, de acreditar que Mussolini atuaria sozinho e por conta própria, e imaginar o fascismo na Itália como uma ideologia redentora. Estas pessoas achavam que seu italianismo os levaria a uma salvação espiritual e que o nacionalismo fervoroso os salvaria como judeus.
Os judeus italianos se deixaram levar por um comodismo burguês. Mussolini tinha entregado a eles uma nação sem conflito de classes e sem greves, propicia para obterem vantagens econômicas e profissionais; portanto estavam orgulhosos em demonstrar sua condição de italianos e não de pessoas excluídas das grandes decisões do país.
A partir de 1938 Itália e Alemanha eram aliados. Mussolini e Hitler manifestavam uma admiração mutua. Os contatos diplomáticos, políticos e militares nunca estiveram melhores. Porém, para os nazistas o antissemitismo não foi algo secundário, pois fazia parte central de sua ideologia desde o século 19. O Judaísmo foi alvo preferido do ódio popular. Alemanha desejava construir uma “comunidade de sangue germânica”; portanto, considerou o povo hebreu um fator destrutivo do povo alemão, uma praga que precisa ser exterminada.
Os maus tratos impostos aos judeus na Alemanha geraram manifestações em organismos de justiça na Inglaterra, França, Suécia, Suíça, Argentina e Estados Unidos. Nada disto fez Itália. O antissemitismo alemão não poderia ter sido ignorado pelos judeus italianos. Por 1932 havia mais de 500.000 judeus na Alemanha. Poucos meses depois, com Hitler no poder; boicotes e queima de livros, destruição e incêndios de lojas e sinagogas, afastaram os judeus da vida socioeconômica do país. Todo centro de cultura e lazer (cinema, teatro e praças) foi “arianizado” e “limpo de judeus”. Era o “sauberung” italiano. Os judeus não poderiam adquirir automóveis, motocicletas ou qualquer outro meio de transporte. Estavam à margem da sociedade.
Em 1939, um ano depois da adoção das “Leis de Nüremberg” pelo Ducce, havia na Alemanha somente 200.000 judeus. O resto havia emigrado. Emigrar era privilegio de poucos, pois requeria dinheiro. Aqueles que ocultavam sua condição judaica apresentando-se nos consulados como italianos (sem informar a religião); tinham chances de serem aceitos, pois a maioria dos países não aceitava judeus.
Encerro nosso tema com as palavras da historiadora Viviane Forrester em “O crime ocidental” (Buenos Aires, 2008): “Os países mantiveram sempre um número de cotas migratórias reduzidas, deixando os judeus pegos na ratoeira hitlerista, sem nenhuma esperança, alternativa ou recursos. Todos enganavam os judeus, sempre reticentes. Moral desta história: em todo lugar compensa auxiliar o horror”.
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