A “Costa do Naufrágio” no Estado de Victoria, Austrália, é um trecho de 128 quilómetros de penhascos recortados e desfiladeiros profundos, formações calcárias e dunas altas. Estima-se que aproximadamente 700 navios naufragaram ao longo da costa entre meados do século 18 e início do século 19, período conhecido como a “Idade de Ouro da Vela”. Alguns destes navios são visíveis, e seus cascos descoloridos pelo sol, rompem as ondas e as âncoras corroem a praia.
Num dia de janeiro de 1836, dois homens encontraram os restos de um antigo barco soterrado nas dunas da praia da então deserta Baía de Armstrong, entre as cidades de Port Fairy e Warrnambool, na costa sudoeste da Austrália. Um deles se chamava Hugh Donnelly. O tom escuro da madeira do casco da embarcação os deixou intrigados. Esta estória ganhou tanta popularidade que, em 1992, o governo de Vitória ofereceu 250.000 dólares australianos para a pessoa que achasse os destroços do navio.
O nome “Warrnambool” originou-se do Monte Warrnambool, um vulcão 25 quilômetros ao nordeste da cidade. Warrnambool ou Warrnoobul era o nome tanto do vulcão quanto do clã aborígine australiano que ali vivia.
A cidade também adotou a lenda, e hoje uma parte do movimento turístico local vive do mito do “Mahogany Ship” ou Barco de Mogno. Desde então, o tema intriga a todos os australianos. Mas, qual o motivo de tanta intriga? Se aquele barco realmente existiu (a última vez que foi supostamente visto foi um século e meio atrás quando ficou soterrado), toda a história da Austrália teria que ser reinterpretada.
Lenda ou verdade?
O motivo seria a origem daquele misterioso barco, sobre o qual pairam muitas dúvidas e nenhuma certeza – nem mesmo se ele teria existido, ou se tudo não passa de uma simples lenda. Batizado de “Mahogany Ship” (uma alusão à cor escura da madeira do casco), a história ganhou contornos de um escândalo histórico, pois cogitou-se a possibilidade de que aqueles restos serem de uma embarcação que teria tocado o solo australiano antes do desembarque do primeiro europeu no país. O navegador holandês Willem Janszoon em 1606 foi o pioneiro e depois teria ancorado o capitão James Cook, quem se apropriou do território australiano em nome da Coroa britânica em 1770.
De acordo com a tese, aqueles escombros seriam de um galeão espanhol ou de uma caravela portuguesa, embarcação que existiu apenas no século 16. Portanto, surpreendentemente, antes daquilo que se conhece como a “História da Austrália”, se vincularia ao passado daquele recôndito país-continente a Portugal, com todas as implicações históricas que isso acarretaria.
A tese de que uma caravela portuguesa tenha sido o primeiro barco a chegar até Austrália intriga os australianos. Seria como descobrir restos de um “junco chinês” (navio mandarim de cabotagem) na costa do Brasil, antes da chegada de Pedro Álvares Cabral – um baque histórico.
Sumiu em 1880
“Tudo leva a crer que aqueles escombros eram de uma caravela portuguesa”, diz o australiano Pat Connelly, presidente do “Comitê do Barco de Mogno”, entidade australiana criada pelos que acreditam que a história daquele país não foi bem como os livros indicam. O “Comitê” é uma organização independente de indivíduos dedicado a provar a existência do naufrágio.
E, assim como outros australianos, Connelly está firmemente disposto a provar isso, embora a maior prova que ele possa ter sejam os próprios restos da suposta caravela, ninguém que ainda esteja vivo a tenha visto. A última vez que teriam sido avistados os restos da misteriosa embarcação naquela praia australiana foi em 1880, quando a carta de um morador da região narrou a retirada de alguns “pedaços de madeira para usar na construção de sua casa”, que, no entanto, tampouco foi identificada e, com certeza, se um dia existiu, hoje não existe mais.
Achar restos do material com que foi construído o navio ajudaria bastante na identificação do tipo de madeira usado naquela embarcação, detalhe fundamental para traçar a sua origem, já que, apesar do nome “Mahogany Ship”; nem isso pode ser historicamente comprovado pelos efêmeros relatos do passado.
O tempo foi passando… “De lá para cá, os escombros do pressuposto barco, que, de tempos em tempos, brotavam no vaivém da areia da praia, como relataram antigos habitantes da região, nunca mais afloraram, o que só fez alimentar ainda mais a dúvida: teria aquele barco existido de fato ou não passaria de uma lenda?”
A tese de Kenneth McIntyre
De acordo com a tese da descoberta da Austrália por portugueses, defendida pelo historiador australiano Kenneth Gordon McIntyre (1910-2004), autor do livro “The Secret Discovery of Australia: Portuguese ventures 200 years before Captain Cook” (1997), a tal embarcação teria sido uma das três caravelas dos navegadores Cristóvão de Mendonça e Gomes Sequeira, que, em 1522, partiram em busca das “Ilhas do Ouro” descritas pelo explorador Marco Polo.
Segundo McIntyre uma dessas caravelas teria se desgarrado e ido parar na costa sul da atual Austrália, lugar onde naufragou. Seus eventuais sobreviventes, tecnicamente os primeiros europeus a tocarem o solo australiano, teriam sido assassinados pelos selvagens aborígenes que habitavam o território.
Na opinião de Kenneth McIntyre o fato teria sido encoberto por três motivos:
- Porque naquela época vigorava ainda o “Tratado de Tordesilhas”, que dividia o Novo Mundo entre as coroas de Portugal e Espanha. É plausível que a missão de Mendonça como a de Sequeira avança-se ilegalmente sobre a parte espanhola.
- Porque eventuais documentos sobre a expedição foram perdidos no forte incêndio que se seguiu ao terremoto de Lisboa em novembro de 1755.
- Porque, obviamente, não sobrou ninguém vivo daquele barco para relatar o “achado”, nem tampouco há relatos confiáveis dos aborígenes da região, únicas “testemunhas” do suposto desembarque. Embora intrigantemente algumas palavras dos antigos dialetos aborígenes tivessem alguma semelhança com o português. Exemplo? A palavra “tartaruga” era a mesma no idioma dos aborígenes.
Para McIntyre é importante lembrar que, naquela época, Portugal já mantinha uma colônia no Timor, pais no sudeste asiático distante 1.981 quilômetros da Austrália.
Homenagens portuguesas
Por essas e outras ideias Kenneth McIntyre chegou a ser condecorado pelo governo português com a “Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique, O Navegador”. E a cidade australiana de Warrnambool, que se tornou conhecida na Austrália graças ao mistério em torno daquela enigmática caravela portuguesa, ganhou um padrão (espécie de pilar, usado pelos portugueses para marcar descobertas e reclamar direitos sobre a nova terra) e um busto do célebre rei português impulsionador das descobertas, que hoje decoram duas praças da cidade.
A cidade de Warrnambool vive do mistério da embarcação portuguesa, e não por acaso fica numa região batizada de “Costa dos Naufrágios”, por conta da quantidade de barcos que ali afundaram no passado. O símbolo oficial da cidade é uma caravela. Uma vez a cada dois, anos acontece nas ruas cidade um festival de comidas portuguesas. Até a lanchonete Mcdonalds local exibe uma réplica, em tamanho real, da embarcação que tornou a cidade famosa, embora ninguém ali possa garantir que ela existiu de verdade.
Mas isso já não importa. Em Warrnambool, o passatempo preferido dos moradores é garimpar as areias da praia com detectores de metal em busca da tal embarcação misteriosa existindo inclusive um dia específico no calendário municipal dedicado a essa busca coletiva. A lenda do “Barco de Mogno” já se tornou mais relevante do que a própria História.
Outra caravela soterrada
Caso tenha existido de fato, o pressuposto barco português que teria encalhado na Austrália 250 anos antes do início da sua colonização, não seria a única caravela que terminou sendo engolida pelas areias.
Em 2008, outra caravela de nome “Bom Jesus” (esta sim historicamente comprovada) foi descoberta, acidentalmente, soterrada na beira de uma praia da Namíbia, por um grupo de geólogos que buscavam jazidas de diamantes. Dentro da embarcação, havia, inclusive, moedas antigas.
Se visitar Warrnambool hoje, o turista poderá caminhar pelo “Mahogany Ship Walking Track”, visitar uma exposição sobre a caravela no museu marítimo local, hospedar-se no “Mahogany Hotel”, passar pelo conjunto residencial “Mahogany Gardens” ou mesmo visitar a “Lemos Court”, a rua que recebeu o nome do criador do “Festival Português de Warrnambool”, o comendador Dr. Carlos Lemos.
Bibliografia
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