A ópera “Fidelio” é a única obra de Ludwing van Beethoven (1770-1827), composta no ápice da sua maturidade artística. Em 1945, esta composição foi ouvida em Viena como símbolo da libertação da Europa. Finalmente, as tropas aliadas haviam vencido a Segunda Guerra contra a Alemanha nazista. Sete anos antes, em 12 de março de 1938, o governo nacional-socialista de Hitler havia celebrado esta obra como a “Ópera da Vitória” durante o Anschluss, a anexação pacífica da Áustria ao Terceiro Reich.
Mesmo sabendo da importância que teve o músico romântico Richard Wagner (1813-1883) para a Alemanha, podemos afirmar (quase categoricamente) que nenhum outro compositor foi tão usado para fins políticos quanto Ludwig van Beethoven. Nascido há mais de 250 anos, sua música serviu a ditadores e lutadores pela liberdade ao redor do mundo inteiro para confirmar suas respectivas visões políticas.
“O segredo desta música ainda é discutido hoje”, afirma o Prof. Michael Custodis, pesquisador da Universidade de Münster, em entrevista à rede de notícias Deutsche Welle. Para o jovem musicólogo “a apropriação internacional é uma história cultural muito complexa, da qual ainda não sabemos muito e para a qual ainda temos que desenvolver modelos explicativos”.
O regime nazista usou Ludwig van Beethoven para seus propósitos de propaganda. Para o Ministério da Propaganda do Reich, Hitler não estava interessado apenas na música em si, mas também nos atributos conferidos ao compositor e à pessoa Beethoven, considerado um titã, um herói que havia superado sua surdez e, por último, porém não menos importante, um verdadeiro gênio musical alemão.
No entanto, o fato de Beethoven representar nas composições valores universais da Revolução Francesa, tais como liberdade, igualdade e fraternidade; não incomodou em nada o regime do “Führer” Adolf Hitler. Como é de público conhecimento, as ditaduras nunca tiveram problema algum em assumir o controle da narrativa histórica e simplesmente reescrevê-la em caso de dúvida. Além disso, o Nazismo sempre se apresentou publicamente como um movimento nacionalista e revolucionário.
O Nazismo se definia como um movimento revolucionário que, ao menos no aspecto musical, pretendia vincular-se às antigas tradições culturais germânicas, mantendo ícones marcantes como Beethoven e Wagner. Para organizar seus eventos musicais, o Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels (1897-1945), fundou a “Reichskulturkammer” (Câmara de Cultura do Reich) com sua respectiva “Reichsmusikkammer” (Câmara de Música do Reich). O primeiro presidente foi o consagrado compositor Richard Strauss. Strauss (1864-1949) serviu como uma espécie de proa cultural da ditadura nacional-socialista.
Um dos objetivos da “Câmara de Cultura do Reich” era exaltar e promover a denominada “boa música alemã”, especificamente a música de Beethoven, Wagner, Bach, Mozart, Haydn, Brahms, Bruckner e semelhantes, legitimando uma supremacia mundial reivindicada naquela época pela Alemanha. Esses gênios da música foram reinterpretados ideologicamente para exaltar as virtudes arianas e a identidade cultural alemã.
A música e os compositores que não se enquadrassem na definição de “boa música alemã” do “Reichsmusikkammer” foram marginalizados, ignorados e, em seguida, banidos. A entidade proscreveu grandes compositores do passado, incluindo compositores de berço judaico como Gustav Mahler (1860-1911), Félix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847), Arnold Schöenberg (1874-1951) e Kurt Weill (1900-1950).
A música de autores dissidentes do regime nazista como a do compositor austríaco Alban Berg (1885-1935) também foi proibida. Houve ainda um grupo de compositores cuja criação musical foi considerada sexualmente sugestiva ou selvagem, como Paul Hindemith (1895-1963), Ígor Stravinsky (1882-1971) e outros; todos denunciados como “Entartete Musik” (Música Degenerada) e, portanto, proibidos.
Com a criação do Império Alemão ou Reich (1871-1918), o imperador Guilherme I pavimentou o caminho para o uso da cultura, e especialmente da música, para fins do governo. Ele acabou com a noção romântica de que música e política são dois mundos estritamente diferentes. Certamente, o reconhecimento internacional de compositores como Beethoven, Wagner, Brahms e Bruckner jogou a seu favor.
Segundo o musicólogo Custodis, “o Império Alemão entra em cena para a administração do patrimônio cultural e gastou muito dinheiro para expandir o status conquistado pelo repertório musical alemão nas salas de concerto e nos palcos de ópera do mundo”.
Como resultado da grande corrida colonialista do século 19, por volta de 1900, pertenciam à Alemanha o Sudoeste Africano Alemão (hoje Namíbia), Togo, Camarões, África Oriental Alemã (hoje Tanzânia, Burundi e Ruanda), Nova Guiné Alemã (partes da Papua-Nova Guiné), além de ilhas do Pacífico e o protetorado de Kiauchau (Kiautschou), na China. Neste contexto histórico, é importante lembrar que a música germânica era tocada com frequência nas colônias na África e na China, principalmente para convencer as “culturas estrangeiras” acerca do elevado valor da cultura alemã.
O Nazismo não apenas continuou como aprimorou essa tradição colonialista. Canções alemãs foram tocadas na América Latina (no Brasil e no Chile), e a “Filarmônica de Berlim” fez turnês no exterior como “Orquestra do Reich”. Maestros tidos como os maiores regentes do século 20 como o alemão Wilhelm Furtwängler (1886-1954) e o austríaco Herbert von Karajan (1908-1989) encheram as grandes salas de concerto do mundo com obras orquestrais de Beethoven.
Mais tarde, no decorrer da Segunda Guerra, pianistas renomados como Elly Ney (1882-1968), Wilhelm Kempff (1895-1991) e Walter Gieseking (1895-1956) promoveram vários concertos de propaganda e fortaleceram a resistência das tropas na frente de batalha com as sonatas para piano de Beethoven.
Que Adolf Hitler pretendia “dominar o mundo” era obvio desde a assinatura do “Tratado de Munique” em 29 de setembro de 1938. Mesmo assim, as nações europeias ocupadas estavam culturalmente divididas. Por um lado, estavam as que rejeitavam estritamente as sinfonias alemãs durante o conflito; por outro, aquelas que tocavam exatamente essa música em sinal de protesto. “Os alemães tiveram negado o direito de assumir para si compositores como Beethoven”, conclui Custodis.
Quem já escutou a música de Beethoven sabe que três batidas curtas e uma longa marcam a abertura da “Quinta Sinfonia”, estreada em Viena em 1808. Elas foram o sinal de identificação das transmissões internacionais da BBC durante a Segunda Guerra e, portanto, o indicativo da resistência contra os alemães. Em código Morse, os sons representam a emblemática letra “V”, da palavra “Victory”.
Diferente de Richard Wagner, usado pelo Nazismo por sua postura antissemita, o compositor Ludwing van Beethoven não teve relacionamento com os judeus e, portanto, não lhe conhecemos qualquer tipo de opinião negativa sobre eles.
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