Em meados de 1889 foi publicado em Paris “Dom Pedro II, Empereur du Brésil”, um pequeno ensaio biográfico sobre o monarca brasileiro, focado na análise política dos 50 anos de reinado. Esta obra trazia a assinatura do ilustre rabino de Avinhão, Benjamin Mossé (1832‑1892), um renomado intelectual francês.
Mossé era um velho conhecido dos parisienses que traduziu ao francês, em 1884, o livro “Principios da Fé” do eminente rabino D. Isaac Abravanel. Também havia publicado, entre outros livros, a bela coletânea de poemas “Un Ange du Ciel sur la Terre” (1864), o “Droits et Devoirs de l’Homme” (14 edições) e o influente “Le Judaïsme ou L’Exposé Historique et Loyal de la Doctrine, de la Morale et des Mœurs Israélites” (1887). Foi ainda editor da revista “La Famille de Jacob” (1859-1893), dos periódicos judaicos mais difundidos fora de Paris naquela época.
Durante as minhas pesquisas em Petrópolis, descobri que o Museu Imperial guardava uma carta datada em 9 de agosto de 1889; na qual Mossé enviou a seu biografado D. Pedro II um exemplar de seu livro. Na missiva, o rabino afirmava ter sido uma das maiores tarefas da sua vida apresentar a biografia do “maior dos modernos imperadores”.
Antes, em 1873, Benjamin Mossé já havia enviado ao monarca um “Diploma de Honra” congratulando-o por seus estudos judaicos. De fato, Pedro II pode ser considerado como o precursor desses estudos no Brasil. O imperador lia e traduzia hebraico, em uma época que a língua dos judeus não tinha sido revivida, sendo utilizada só para liturgia e culto.
Em várias ocasiões, especialmente nas visitas às sinagogas, Pedro d´Alcântara surpreendia os presentes ao ler o “Livro de Moisés” com desenvoltura. Foi assim em Londres em 1871, e novamente em San Francisco em 1876, durante sua segunda viagem internacional, quando após visitar Estados Unidos, o imperador seguiu a Europa e, em seguida, a Terra Santa. Segundo um testemunho, Pedro II podia “ler hebraico sem vogais tão fluentemente como se fosse um judeu”.
O imperador do Brasil chegou a declarar que o hebraico era sua língua favorita, e que a estudou para “melhor conhecer a história e a literatura dos judeus, principalmente a poesia e os Profetas, assim como as origens do Cristianismo”. Em 1888, durante sua 3ª e última viagem ao exterior, D. Pedro II encontrou‑se por duas vezes com o rabino Mossé, uma em Marselha e outra em Aix‑les‑Bains, uma localidade francesa no departamento de Saboia.
Essas entrevistas contribuíram muito para o livro biográfico de Mossé sobre o imperador, obra para o qual solicitou, ademais, o testemunho de outras personalidades ilustres que conheceram D. Pedro II, entre as quais mencionaremos os escritores Lamartine e Victor Hugo, o político Gladstone e o cientista Charles Darwin.
Depois da queda da monarquia, a relação entre o rabino e Pedro II, exilado na Europa, se fortaleceu e o monarca deposto colaborou em diversas ocasiões para a revista de Mossé, “La Famille de Jacob”. Atendendo um pedido deste, chegou a publicar, em 1891, um livro com traduções vertidas para o francês de poesias hebraico-provençais: “Poésies hebraico provençales du rituel israélite comtadin traduites et transcrites par S. M. Dom Pedro II d’Alcantara”.
Quando da morte de seu bom amigo D. Pedro II, em dezembro de 1891, o rabino Mossé dedicou‑lhe o seguinte necrológio na revista “La Famille de Jacob”: “Pedro d’Alcântara, cuja biografia um modesto rabino teve a honra de escrever com a colaboração de um sábio brasileiro, o barão do Rio Branco, foi uma das mais admiráveis figuras de nossa época moderna. Fundador e organizador do imenso Império do Brasil, ele foi amigo das letras. Conhecedor do hebraico, Sua Majestade era mais fluente nesta língua que muitos filhos de Israel. Ele não somente amava esta língua como também elogiava as virtudes de povo brasileiro e indignava‑se com o antissemitismo”.
A participação de Rio Branco na preparação da biografia de D. Pedro II seguramente foi além de uma simples colaboração. O historiador Luís Viana Filho (1908-1990) afirma que Rio Branco considerou a primeira versão da biografia escrita por Mossé “um pequeno trabalho ridículo” e que ele [Rio Branco] “precisou fazer tudo de novo”. O rabino francês certa vez reconheceu que Paranhos Junior foi “o verdadeiro autor desse livro”. O Barão de Rio Branco, inclusive se antecipou a Mossé e, em abril de 1889, prometia enviar a D. Pedro II as provas do livro para “que o imperador leia o livro antes que ninguém”.
Segundo as próprias palavras de Rio Branco, o livro “D. Pedro II, Imperador do Brasil” era um “filho meu mui dileto” e uma “homenagem que mui desinteressadamente prestei ao nosso imperador nos dias agitados que atravessamos; em que um vento de insânia parece ter passado por nossa terra”.
Essa homenagem é reveladora e mostra a admiração de Paranhos Junior por D. Pedro, a quem, mesmo depois da queda da monarquia, ele não cansava de apontar como “o maior dos brasileiros”, seguido por seu pai, o visconde do Rio Branco. A relação entre o Barão e seu biografado é rica e complexa.
Filho de um dos maiores próceres do Império, o jovem Paranhos Júnior queixava-se de D. Pedro II. Em 1869 o imperador teria preferido outro candidato para ser deputado pela província do Rio de Janeiro. Antes disso, D. Pedro o teria impedido de acompanhar o pai na condição de secretário de sua missão as “Províncias Unidas do Rio da Prata” em 1868. É verdade que essas queixas devem ser relativizadas, pois se não se lançou candidato a deputado pelo Rio de Janeiro, o fez pela província de Mato Grosso, aliás, a mesma pela qual o pai era senador vitalício.
Do mesmo modo, se não pôde acompanhar o pai como secretário da missão diplomática de 1868, já no ano seguinte teve essa qualidade reconhecida e oficializada. Muito mais complicada e tormentosa, como a definiu o embaixador Vasco Mariz, foi a nomeação de Paranhos Junior para o consulado em Liverpool. Sua vida boêmia e sua relação com Marie Stevens, (escandalosa aos olhos do imperador); pareciam erguer perante D. Pedro II um muro intransponível para Paranhos: “Sei que o imperador há de objetar: ele me tem contrariado sempre. Entendeu que eu não devia ser deputado em 1868, quando tive a infeliz ideia de querer sê‑lo, por supor que isso me facilitasse os projetos, que já então formava, de entrar para a carreira diplomática. Opôs‑se a que acompanhasse meu pai como secretário em 1868, quando antes o conselheiro Otaviano obteve essa nomeação para um seu parente, e ainda hoje, o visconde de Itajubá pode ter, junto a si, um filho”.
Sua postulação, de fato, enfrentou forte oposição por parte de D. Pedro II e “por um triz a espetacular carreira de Rio Branco não teria acontecido e o Brasil de hoje provavelmente seria bem menor”. Desde a queda do gabinete do Visconde de Rio Branco, em junho de 1875, Paranhos postulou seu nome para cônsul geral do Brasil em Liverpool e sofreu até 27 de maio 1876, quando a princesa Isabel, finalmente, assinou sua nomeação, aproveitando‑se da ausência do imperador, em viagem ao exterior. Ainda assim, para nomear Paranhos Júnior, a princesa teve de ser confrontada com a ameaça de demissão do gabinete chefiado por Caxias, dileto amigo dos Paranhos, pai e filho. Naquela manhã, o então chanceler, Barão de Cotegipe, teria afirmado: “Hoje, ou sai essa nomeação de Paranhos, ou sai a demissão do gabinete”.
Gilberto Amado explicou a origem dessa forte resistência do monarca ao jovem Paranhos:
“Moço sem mocidade, velho hostil ao gênio, inimigo de José de Alencar, gostando só da moderação, dos pacatos, dos sem imaginação, dos temperamentos de água com açúcar, de chá e de mingaus, de liberalismo e de abdicação, como Dom Pedro II, Imperador do Brasil, poderia Pedro II adivinhar em Juca Paranhos, em quem via o pândego, sem lhe ver na precocidade dos dotes revelados nos primeiros ensaios históricos o futuro conquistador e alargador do Império do Brasil que lhe caiu das mãos sem gosto para a luta, incapazes de sentir na palma o gosto do leme, o prazer do comando, mãos que não cresceriam no punho das espadas e só contentes de folhear, em movimentos de curiosidade curta, livros de toda espécie, principalmente relatórios, memoriais e compêndios?”
No entanto, no ocaso do Império, D. Pedro II e Paranhos Júnior voltariam a aproximar‑se. A ocasião para esse reencontro seria dada pela terceira e última viagem de D. Pedro II ao exterior por motivo de saúde. Em 30 de junho de 1887, o velho imperador partiu bastante debilitado, para se tratar na Europa. Paranhos se encontrava no Rio de Janeiro, onde fora cuidar de assuntos familiares e, embora houvesse planejado permanecer menos de um mês, resolveu demorar‑se e seguir com o imperador. O escritor Viana Filho arrematou seu relato sobre a decisão do cônsul em Liverpool de ajustar seus planos de viagem ao itinerário do imperador com um comentário ferino: “Como deveria ser agradável, nas horas vazias do Atlântico arrefecido ao protocolo, conversar longamente com aquele rei ameno e culto”.
Não escapava a ninguém a possibilidade do reinado de D. Pedro II estar perto do fim. Ademais da crescente agitação republicana, do desmoronamento da escravidão, a própria saúde do soberano estava gravemente debilitada. Na Europa, D. Pedro chegou a receber o sacramento da extrema unção.
Em todo o caso, mesmo se abstraídos dos problemas políticos e de saúde; se aproximava o jubileu do reinado de D. Pedro II; imperador desde 1831, mas exercendo plenamente suas funções desde 23 de julho 1840, após o “golpe da maioridade”. O ano de 1890 seria, portanto, marcado pelas comemorações do jubileu. As circunstâncias eram propícias para a publicação de uma biografia completa do soberano brasileiro.
O camarista do imperador, o conde de Nioac, incumbiu Benjamin Mossé dessa tarefa, pois tratava‑se de um escritor francês de algum renome, que já havia demonstrado suas simpatias e afinidades com o monarca. Uma biografia de Pedro II escrita pela primeira vez por um estrangeiro daria maior credibilidade e alcance à obra. A decisão de publica-la em francês era indiscutível, por tratar‑se da língua de maior circulação naquela época.
Mossé, portanto, parecia uma ótima opção, feita uma ressalva fundamental: ele pouco conhecia de seu biografado e do Brasil. Nioac contornou esse problema apelando para a colaboração de Rio Branco, já considerado um profundo conhecedor da história brasileira e por quem o imperador havia-se afeiçoado. Em 1888, Paranhos recebeu o título de Barão do Rio Branco.
A correspondência e os encontros pessoais entre Rio Branco e D. Pedro multiplicaram-se e não foram interrompidos mesmo após a queda da monarquia. Fiel aos seus ideais, Rio Branco escreveu uma defesa ardorosa da monarquia, com ataques violentos aos ideais federalistas. A riqueza de detalhes e a abundância de informações pormenorizadas, em especial quando estavam em pauta temas militares e diplomáticos, comprovam a real autoria do texto. A qualidade e o detalhamento de informações fazem da obra uma fonte primária ainda hoje inestimável, ademais de trazer o sabor da visão de Rio Branco como Dom Pedro II, Imperador do Brasil.
O Barão não parece ter exagerado quando afirmou sobre Mossé: “O homem é, pois, um testa‑de‑ferro de que me servi para dizer à nossa gente o que penso com mais liberdade, e não ficar com a fama de incensador de poderosos”.
Em boa hora, a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) nos presenteia com a iniciativa de reeditar este “filho mui dileto” da inteligência luminosa de Rio Branco. Essa publicação somasse à importante reedição das “Obras do Barão do Rio Branco”, trazida pela FUNAG no contexto das homenagens pelo centenário do falecimento do Barão do Rio Branco, transcorridos em 2012. É esta uma merecida homenagem ao patrono da diplomacia brasileira e também ao ilustre biografado, D. Pedro II, que conduziu os destinos nacionais por quase cinquenta anos, e a seu amigo, o rabino Benjamin Mossé.
Bibliografia
D. Pedro II, “Poésies hebraico provençales du rituel israélite comtadin traduites et transcrites par S. M. Dom Pedro d’Alcantara”, 1891.
Martins, L., O patriarca e o bacharel. São Paulo: Alameda, 2008.
Mossé, Benjamin, La Famille de Jacob, 1832-1892.
Mossé, Benjamin, Um Ange du Ciel sur la Terre, 1864. Hachette BNF. [Format: Broché, 2013].
Mossé, Benjamin, Les Psaumes de David: traduction littéraire et juxtalinéaire présentant le mot-à-mot français en regard des mots hébreux correspondants, accompagnés d’une petite grammaire hébraique et du dictionnaire des racines par B. Mossé. 1880.
Mossé, Benjamin, Dom Pedro II, Empereur du Brésil, 1889. Texto em português: D. Pedro II, Imperador do Brasil. Edições Cultura Brasileira. S/A, 2ª edição 1929. Link: https://pt.scribd.com/document/368709867/Dom-Pedro-II-Imperador-do-Brasil-Benjamin-Mosse-pdf
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Viana Filho, Luís. A vida do Barão do Rio Branco. 8.ª edição. São Paulo/Salvador: UNESP/ EDUFBA, 2008.
Villafañe G. Santos, Luis Claudio, O Barão de Rio Branco como historiador. Revista Brasileira vol. 69, XVIII, págs. 11-44. Link: https://www.academia.org.br/abl/media/Revista%20Brasileira%2069%20-%20BARAO%20DO%20RIO%20BRANCO.pdf