D. Pedro II visita uma loja de antiguidades em Jerusalém: uma controvérsia sobre antiguidades moabitas e o Affair Shapira

Este artigo aborda a visita de Sua Majestade o Imperador do Brasil D. Pedro II (1825-­1891) a uma loja de antiguidades em Jerusalém. A visita a Terra Santa aconteceu em 1876 durante a segunda viagem do dignitário brasileiro ao exterior. Ao visitar a cidade santa, o monarca conhece o comércio do colecionador e falsificador de cerâmica Wilhelm Moses Shapira. Pedro II suspeita que o dono da loja seja um oportunista empenhado em ganhar dinheiro fácil com a falsificação de objetos antigos. O texto discute, também, uma parte considerável das escavações arqueológicas do século 19 à luz da cerâmica moabita.

Palavras-­chave: Arqueologia, Manuscritos de Qumran, Shapira.

Introdução

Fim de tarde do dia 4 de dezembro de 1876. O Imperador D. Pedro II passeia pela cidade velha de Jerusalém. Ao visitar uma típica loja de antiguidades, Sua Majestade toma sua pequena caderneta e registra no Diário de Viagem à Palestina a seguinte impressão:

Enfim, fui por curiosidade visitar a loja bric-­à-­bric do célebre Safira, cuja fisionomia não denota veracidade, e parece-­me um Schliemann sem fanatismo, pouco sério. Mostrou-­‐‑me suas últimas antiguidades moabitas que pareceram obras de barro feitas há pouco tempo por gente muito pouco civilizada. Ele deu-­me fotografias dos mostrengos de argila. Ainda antes de jantar, tomei banho turco, porém não tão bem dado como em Damasco… (FAINGOLD, 1999, p. 143)

Das palavras do Imperador do Brasil surgem alguns questionamentos que precisam ser devidamente aprofundados, tais como: quem era o Sr. Safira de quem fala o nosso Segundo Imperador? Por que aos olhos de D. Pedro II, o tal Safira “não denota veracidade”? Que eram essas antiguidades moabitas a que faz referência o monarca? Que tipo de fotografias de mostrengos teria recebido o soberano brasileiro? Que destino levou Safira e suas peças arqueológicas? Esses e outros tópicos relacionados
com a curta passagem registrada por D. Pedro II no seu diário serão objeto de estudo neste artigo.

1. “Safira” é o colecionador Wilhelm Moses Shapira (1830-­1884)

Há mais de 120 anos, em 9 de março de 1884, no hotel Bloomenthal, na cidade de Roterdã, Holanda, um homem desesperado suicidou-­se com um tiro na cabeça. Ele se sentia incompreendido, injustiçado e perseguido; ou talvez suspeitasse que finalmente seu segredo tivesse sido revelado. Esse indivíduo, nome de Wilhelm Moses Shapira.

O Imperador D. Pedro II não se enganou, realmente Shapira não denotava veracidade ou honestidade. A comparação que faz o monarca com Heinrich Schliemann (1822-­1890), tido na época como uma referência de integridade e autenticidade, não poderia ser mais acertada. Para muitos, o estudioso alemão Schliemann era um arqueólogo de alta confiabilidade. Foi ele o primeiro a visitar, em 1859, a Grécia antiga. Dedicou uma vida às escavações na colina de Hissarlik (Ásia Menor), onde imaginou encontrar a Tróia de Homero. Escavou também Micenas, descobrindo a “Porta dos Leões” e o complexo arqueológico denominado “Círculo de Túmulos Reais”. Algumas das mais difundidas obras de Schliemann certamente estavam na biblioteca de Pedro II, afinal era o arqueólogo mais conceituado da época e um contemporâneo do Imperador.

Mas, de que maneira começou o polêmico Affair Shapira?

Julho de 1883. Moses Shapira trouxe a Londres um pergaminho especial do Deuteronômio (Devarim). O texto incluía mudanças da versão massorética, fato que levantou todo tipo de suspeitas por parte de especialistas londrinos e de outros países. Durante semanas, revistas e jornais publicaram extensas matérias incluindo trechos do pergaminho, e discutiram fervorosamente a autenticidade do mesmo. Logo depois, o manuscrito foi exposto ao público no Museu Britânico, sendo visitado, também, por William Ewart Gladstone (1809-­1898), o Primeiro Ministro da Inglaterra Vitoriana.

Moses Shapira era um judeu convertido ao anglicanismo que se estabeleceu em Jerusalém. Ele comercializava livros antigos e objetos sacros, conhecia a literatura sagrada dos judeus e visitava comunidades judaicas em lugares recônditos, adquirindo rolos da Torá e filactérios impróprios de usar. Turistas que frequentavam sua loja em Jerusalém ficavam impressionados com a sua preparação cultural e o enorme entusiasmo com que explicava detalhes de cada peça de sua coleção.

Um jovem membro da Palestine Exploration Fund [Fundação para a Exploração da Palestina], o arqueólogo Charles F. Tyrwhitt-­Drake (1846-­1874), que percorreu a Terra Santa no início dos anos setenta do século XIX, uma vez declarou: “ʺNas minhas pesquisas sobre a escrita em rolos de pergaminho recebi ajuda de Shapira, um judeu alemão, grande conhecedor do Talmude e do folclore judaico, atualmente membro da comunidade protestante de Jerusalém”ʺ. (ILAN, 1983, p. 9)

Certamente, Tyrwhitt-­Drake esteve na loja de antiguidades de Shapira. Lá ele examinou os manuscritos hebraicos da região de Tzana, todos confeccionados em pergaminho com tonalidades vermelhas.

2. O comércio de cerâmica moabita

Os subsídios oferecidos pelo colecionador Moses Shapira a Drake foram de enorme valia, uma vez que lhe permitiam fazer uso dessa informação para emitir uma opinião consolidada ao explodir o debate em torno da autenticidade da cerâmica moabita. Esta despertou interesse especial não só entre especialistas, mas também entre o grande público. D. Pedro II deve ter visitado a loja de Shapira no exato momento em que era exposta uma grande coleção de peças. Eram centenas de cerâmicas com
inscrições em hebraico antigo. Prato cheio para nosso Segundo Imperador que, em 1876, já conseguia ler hebraico que havia aprendido sistematicamente com três mestres: o sueco Leonhard Akerblom (1830-­‐‑1896), os padres de origem alemã Ferdinand Koch e Karl Henning.

Essa cerâmica foi denominada pelo próprio Shapira de “cerâmica moabita”, pois era oriunda dos montes de Moab, elevações próximas ao Mar Morto. Não se sabe quem esculpiu essa cerâmica e, naturalmente, para um culto personagem como D. Pedro II, esses ceramistas deviam “ser gente muito pedra moabita, uma rocha enorme descoberta poucos anos antes, e considerada a pedra de caracteres semitas mais antiga do mundo. Havia nela centenas de frases relacionadas com Mesha, rei de Moab.
Dentre elas, há uma especial que permite reconstruir a batalha entre os povos moabita e israelita.

No momento em que essas peças arqueológicas apareceram, por volta de 1868, causaram uma atração ímpar. Havia nelas desenhos de seres vivos como ser aves, uma serpente e um escorpião, animais com chifres, um carneiro com cabeça de vaca, e, também, peças e objetos com furos. Essas inscrições, nunca vistas anteriormente, eram iguais em suas formas e características. Nelas foram identificadas 23 letras que se repetiam constantemente, 15 delas pertencentes ao alfabeto fenício. Obviamente, decifrar todos esses signos foi bastante difícil. Por outro lado, como era possível que no passado ninguém tivesse
notícia sobre esse tipo de escrita?

Shapira não vacilou um instante e autorizou o capitão Claude Regnier Conder (1848-­1910), membro da Palestine Exploration Fund, a desenhar centenas de peças. O dedicado Conder verificou minuciosamente a autenticidade das peças e o Museu Britânico referendou e adquiriu centenas delas.

Shapira preparou mais peças e as juntou à segunda coleção. Havia algumas impropriedades nos objetos como, por exemplo, haver grãos de sal grudados às peças, mas Shapira sempre encontrava uma explicação para esse fato, alegando que as peças raras estiveram em contato direto com a salinidade do Mar Morto.

As peças pareciam novas, como se recém fabricadas, mas também para isso Shapira tinha uma resposta. Ele afirmava que estas haviam sido achadas nas ruínas quase em estado de decomposição e, por isso, era necessário secá-­las num forno para sua melhor conservação. Tanto Tyrwhitt-­Drake como Chaplin, ambos especialistas na matéria, repararam que alguns objetos se pareciam demais entre si, como se houvesse uma fabricação em série, fenômeno bastante comum na indústria. As dúvidas
começaram a surgir e a circular por toda a Inglaterra. Enquanto isso, Shapira alimentava a imaginação dos pesquisadores dizendo que esses objetos já eram conhecidos antigamente, inclusive alguns eram totalmente moídos e enviados através das caravanas de camelos a uma fábrica de cimento localizada em Beirute. Em Dibon (Dhiban) os beduínos encontraram peças de argila inteiras e, quando isso chegou aos ouvidos de Shapira, este começou a adquiri-­las por intermédio de um emissário árabe.
Após quatro meses, acompanhado pelo clérigo alemão Weser e o Sr. Dinsberg, decidiu fazer uma visita arqueológica relâmpago, para achar peças antigas. Desse modo, colocaria fim a inúmeras dúvidas que pairavam em relação a suas peças e, naturalmente, a sua integridade moral e comercial.

Shapira, Weser e Dinsberg se encontraram com Ali Diab, sheik da tribo beduína Aduan, que habitava a margem oriental do rio Jordão, e de quem Shapira já havia comprado várias peças antigas. O beduíno os levou até as localidades de El-­Aléh, Cheshbon e Dibon. Lá, escavando, acharam mais objetos similares àqueles já existentes. Em Dibon, o sheik mostrou-­lhes um nicho de pedra no qual havia uma imagem da deusa Ashtoret e sobre sua cabeça chifres. Ao lado do nicho, junto a uma
colina, havia inscrições fenícias. Em Medeba, outra localidade da região, foram encontradas várias pedras com ilustrações da lua e do sol. Essa expedição rendeu 30 ou 40 objetos, todos copiados por Claude R. Conder que, entusiasmado, comunicou a Palestine Exploration Fund, com matriz em Londres: “Um dia vocês me agradecerão pela descoberta”.

Na Alemanha, alguns especialistas que acompanhavam as escavações começaram a acreditar na autenticidade das peças recolhidas nas descobertas. Shapira passou a ser visto como o agente oficial do governo prussiano para assuntos arqueológicos. O Imperador da Prússia chegou a adquirir peças por ele comercializadas. Para contestar as dúvidas dos ingleses, o próprio Shapira viajou junto com Chaplin para o deserto de Moab e lá obteve, inclusive, esculturas de alguns “mostrengos” mencionados na Bíblia. Encontrou, por exemplo, um mostrengo, de cor preta, medindo um metro de linhas, pintada em várias cores.

3. O pesquisador francês Clermont-­Ganneau

No início de 1874, visitou Jerusalém o jovem arqueólogo orientalista Charles Clermont-­Ganneau, (1846-­1923). Em 1867, ele fora cônsul da França na Palestina otomana. Depois, foi nomeado vice-­cônsul em Jaffa, cidade portuária localizada no coração da Terra Santa. Em 1868, ele estava empenhado na decifração da Stella de Mesha (séc. 9 a.C), quebrada por beduínos selvagens que queriam lucrar com a peça. Na mesma época, o arqueólogo francês contratou desenhistas e um olheiro de nome Salim-­Al-­Kari que completou três linhas daquela inscrição de Mesha. Clermont-­Ganneau ficou bastante agradecido e guardou as linhas de Al-­Kari.

Ao publicarem as fotografias e ao chegar a coleção de objetos à Alemanha, uma forte suspeita de que o episódio envolvendo Wilhelm Moses Shapira não passava de uma farsa, uma grande farsa de enormes dimensões, surgiu por parte dos estudiosos germanos. Subitamente, Clermont-­Ganneau viajou a Berlim para ver a coleção, continuou viagem a Jerusalém e montando uma verdadeira operação de detetive, chegou à conclusão que os textos complementares feitos pelo olheiro Salim Al-­Kari não tinham nada de autêntico ou verdadeiro. O relatório do arqueólogo francês, aceito oficialmente pelo consulado alemão, desvendava muitas inverdades, entre elas, o fato de que o próprio material com que foram feitas as peças é o mesmo que se utilizava nas olarias de Jerusalém e arredores no século XIX.

Cabe lembrar que Charles Clermont-­‐‑Ganneau não culpou Moses Shapira, mas o olheiro Salim Al-­Kari. O arqueólogo demonstrou que o manuscrito era idêntico à inscrição de três linhas que copiou o mesmo Salim na Stella de Mesha. Em outras palavras, ele afirmou que os beduínos haviam enganado os arqueólogos e estudiosos germânicos. Em abril de 1874, o professor Schlottman, um dos principais pesquisadores alemães, escreveu um artigo contra Clermont-­Ganneau intitulado “Chauvinismo na Arqueologia”, no qual afirmava que a posição antigermânica tem seus alicerces num acerto de contas
de franceses contra alemães.

Durante anos, prosseguiram as controvérsias entre franceses e alemães e somente em 1878 a disputa se encerrou, quando uma outra delegação encabeçada pelo cônsul da Alemanha, Manhaussen, viajou até Moab à procura de cerâmica e constatou que realmente foram enganados pelos beduínos. Diante do “Relatório Manhaussen”, Salim Al-­Kari fugiu para Alexandria e Moses Shapira continuou dizendo que não houve nenhuma fraude.

Finalmente, em 1878 Shapira aceitou como verídico o relatório do cônsul Manhaussen que falava em falsificação e fraude, não sem antes aclarar que “devem diferenciar-­‐‑se diversos tipos de fraudes, e que nem tudo é fraude”. Por sua parte, os museus de Berlim, Stuttgart e Basiléia compreenderam rapidamente que foram enganados e que os objetos por eles adquiridos não tinham nenhum valor comercial.

O triste episódio desvendado por Clermont-­Ganneau não rendeu a Shapira fama de falsificador, mas ele foi considerado o responsável pela difusão das falsificações arqueológicas. Aos olhos do mundo, ele resultou ser um homem ingênuo que também caiu nas armadilhas dos beduínos. Enquanto Shapira aparecia em Londres com rolos de manuscritos antigos, descobertos nas margens do rio Jordão, e o maior barulho acontecia em torno da cerâmica moabita, ele preferiu adiar por seis anos a sua maior revelação: o Deuteronômio com versões diferentes do texto massorético.

No final de sua carreira, Clermont-­Ganneau lecionou e pesquisou arqueologia junto a Ernest Renan no Collégè de France, em Paris. Suas obras sobre achados arqueológicos na Terra Santa foram numerosas. Dentre elas: La Palestine inconnue, 1976; Les fraudes archéologiques en Palestine, 1885, e Archéological rechearches en Palestine, em 2 volumes, 1896-­1899.

4. Shapira e o Deuteronômio

Em 9 de maio de 1883, Moses Shapira escreveu de Jerusalém ao professor Hermann Strack uma carta na qual informava que tinha em seu poder um rolo estreito, porém comprido, em pele de ovelha, no qual aparecem trechos do Deuteronômio. Tais trechos bíblicos difeririam da versão massorética, ou seja, da cópia mais antiga do Antigo Testamento. Nessa carta, como em tantas outras enviadas por Shapira a estudiosos, ele testemunhava um profundo conhecimento das versões bíblicas, comparando e apontando diferenças textuais, e revelando uma erudição fora do comum.

Shapira trouxe o manuscrito do Deuteronômio a Leipzig, Alemanha, e numerosos estudiosos atestaram sua autenticidade. Depois, ele viajou a Londres e apresentou o manuscrito na Palestine Exploration Fund, narrando aos seus membros Claude R. Conder e Walter Besant (1836-­‐‑1901) de que forma o manuscrito havia chegado a suas mãos. O episódio começou em 1878 quando um sheik veio até Shapira e contou que um grupo de beduínos achou perto do vale de Arnon, Wadi Mujib, pedaços
de pergaminhos cobertos de panos. Estes acharam que se tratava de amuletos sem valor e os jogaram fora. Um dos beduínos, no entanto, pegou essas peças de pergaminho. Shapira ofereceu ao sheik um prêmio se ele o levasse até aquele beduíno que tomou os pergaminhos. Dito e feito: Shapira encontrou o beduíno e comprou os tais pergaminhos. O beduíno, evidentemente, desapareceu e Shapira não mais o encontrou. Há uma outra versão do próprio Shapira: ele teria comprado os pergaminhos de
um desertor do exército turco que estava acampado nas proximidades do Mar Morto. Quase ninguém deu importância a esta versão.

No manuscrito do Deuteronômio apareciam as mesmas letras existentes na Stella de Mesha. Após cada palavra, havia sido colocado um ponto, existiam espaços incompletos faltando certos trechos bíblicos fundamentais. Por exemplo, no livro  Deuteronômio, capítulo 33, deveria aparecer a “benção de Moisés”, Birkat Moshé, mas ela constava em versão totalmente diferente daquela existente no texto massorético. Qualquer outra comparação entre o texto de Deuteronômio, capítulos 5, 6 em diante, revelava modificações textuais significativas.

O rolo manuscrito do Deuteronômio foi exposto no Museu Britânico de Londres, agitando fortemente a opinião pública e criando controvérsias entre os especialistas em interpretação bíblica. Wilhelm Moses Shapira, satisfeito com a repercussão causada pela sua peça arqueológica, solicitou à direção do Museu Britânico uma “bagatela”, segundo suas próprias palavras, pelo manuscrito: um milhão de libras esterlinas.

5. A volta de Clermont-­Ganneau

o decorrer do século XIX, o interesse das nações da Europa pelas escavações arqueológicas na Terra Santa cresceu rapidamente. Havia, assim, uma concorrência entre Inglaterra e França nessa questão. Os alemães também não ficavam para trás. Enquanto o velho continente discutia o alto preço do Deuteronômio, a peça era examinada e pesquisada minuciosamente por peritos na matéria. Por sua parte, Moses Shapira correspondia do seu hotel em Londres com estudiosos do mundo todo a fim de convencê-­los de sua autenticidade. O professor Christian David Guinsburg (1831-­1914) do Museu
Britânico, copiou trechos inteiros desses manuscritos os quais, atualmente, são exibidos neste famoso
museu londrino.

Porém, mesmo quando a maioria dos estudiosos dava o manuscrito por verdadeiro e autêntico, chegou de Paris Clermont-­Ganneau para afirmar categoricamente no jornal Athenaeum que o tal Deuteronômio era também falso. Sua versão para derrubar as teorias dos outros intelectuais era simples: o manuscrito estava redigido com grafia lapidária, escrita freqüente em esculturas de pedra como a Stella de Mesha, e não com grafia de rolo-­manuscrito, comum em peças escritas sobre pele de
ovelha ou gazela.

Outros pesquisadores argumentavam que o manuscrito estava escrito em rolos finos e bem estreitos e que Shapira havia recortado as bordas do pergaminho bíblico para dar uma aparência milenar, chegando, inclusive, a escrever trechos inexistentes. Naturalmente, a forte repercussão na mídia sobre uma eventual falsificação do rolo-­manuscrito fez com que o Museu Britânico desistisse por completo de adquirir a peça.

Shapira, porém, não desistiu e começou a percorrer os mais importantes museus da Europa com o intuito de que algum deles comprasse o manuscrito do Deuteronômio. Mas, ninguém parecia apostar numa peça tão controversa. Desconsolado e já sem vontade de bater nas portas dos museus, viajou a Roterdã, onde se suicidou em 1884. Passados 63 anos, em 1947, foram descobertos os Manuscritos do Mar Morto nas cavernas de Qumran, nas proximidades de Moab. Essa descoberta despertou
inesgotáveis debates nos numerosos círculos acadêmicos, principalmente na Europa, EUA e Israel. No entanto, mesmo que houvesse, também, nesses manuscritos versões diferentes do texto massorético, nenhum estudioso ou colecionador levantou qualquer dúvida sobre a autenticidade dos rolos de Qumran.

Em 1947 o episódio envolvendo Shapira voltou à tona nos círculos acadêmicos. Alguns cientistas norte-­americanos, como o conceituado Menahem Mansoor, professor da Universidade de Wisconsin, chegaram a declarar que se os Manuscritos de Qumran eram autênticos, não havia por que duvidar que os de Shapira fossem falsos. Dessa forma pensava, também, o professor das Universidades de Manchester e Oxford, John Marco Allegro (1923-­1988), pesquisador dos Manuscritos de Qumran que escreveu um livro completo sobre Shapira. Não obstante, deve-­se ficar claro que a maioria dos estudiosos se negou por completo a aceitar a inocência de Moses Shapira.

Os manuscritos que estavam em poder de Shapira sumiram por completo em 1884. Poucos anos depois de sua trágica morte, eles foram vendidos por apenas 10 guineas, aproximadamente 21 libras esterlinas, a um antiquário cuja casa incendiou-­se em 1887.

Referências:

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DOI: http://dx.doi.org/10.17851/1982-3053.3.4.73-79