“Justo das Nações” de origem árabe reconhecido pelo Instituto Yad Vashem em Jerusalém, o Dr. Mohamed Helmy é uma figura desconhecida para a maioria do público. Inicialmente, a família Helmy rejeitou a designação do Yad Vashem, afirmando que se qualquer outro país; exceto Israel; se oferecesse para homenageá-lo, ficaríamos felizes.
Passados quatro anos, em 2017, a situação mudou por completo, pois o Yad Vashem anunciou haver encontrado um membro da família de Helmy disposto a aceitar o prêmio em seu nome. Nasser Kutbi, um professor de medicina do Cairo, cujo pai era sobrinho de Helmy e o conhecia pessoalmente, viajou de Berlim para receber o prêmio.
Helmy nasceu em Cartum (Sudão) em 1901 de pais egípcios. Em 1922, durante a República do Weimar, viajou para a Alemanha estudar medicina, estabelecendo-se em Berlim. Uma vez concluídos seus estudos, foi aceito para trabalhar no “Hospital Robert Koch” (mais tarde Hospital Moabit), aonde chegou ao cargo de chefe do Departamento de Urologia.
Com a ascensão do Terceiro Reich em 1933, Dr. Helmy tornou-se testemunha da demissão de médicos judeus do Hospital Koch. Um estudo realizado pelo Instituto Robert Koch em 2009 comprovou que o conceituado hospital estava fortemente envolvido na política médica nazista. O próprio Helmy não foi demitido, mas de acordo com a teoria racial vigente, ele foi definido como um hamit ou hamítico, um termo adotado da ciência racial do século 19 para referir-se aos descendentes de Ham, filho de Noé, aos nativos do norte da África, aos nativos da Arábia do Sul, incluindo ainda os antigos egípcios.
Não sendo um cidadão pertencente à raça ariana, o Dr. Mohamed Helmy foi discriminado; demitido do hospital em 1938, inclusive sem poder se casar com sua noiva alemã, Annie Ernst. Além disso, em 1939 e novamente em 1940, Helmy foi preso junto com outros egípcios, mas liberado um ano depois por problemas de saúde.
Apesar de ser alvo do regime nacional-socialista, Dr. Helmy se manifestou contra as políticas segregacionistas do regime nazista e, apesar do grande perigo, arriscou sua vida e ajudou seus amigos judeus. Quando as deportações dos judeus de Berlim começaram, e Anna Boros Gutman, uma amiga da família, precisava de um esconderijo, Helmy a levou para uma cabana que possuía no bairro de Buch, em Berlim, tornando-se seu porto seguro até o fim da guerra.
Em momentos de extremo perigo, quando o médico egípcio estava sob investigação policial, providenciava lugares para que Anna se escondesse. “Um bom amigo de nossa família, Dr. Helmy, me escondeu em sua cabana em Berlin-Buch de 10 de março até o fim da guerra. A partir de 1942 eu não tinha mais contato com o mundo exterior. A Gestapo sabia que o Dr. Helmy era nosso médico de família e sabiam que ele era dono de uma cabana em Berlin-Buch”, escreveu Anna Gutman depois de acabar a guerra. “Ele conseguiu escapar de todos os interrogatórios. Nesses casos, me levava a amigos onde eu ficava por dias, apresentando-me como seu primo de Dresden. Quando o perigo passasse, eu voltaria para sua cabine… Dr. Helmy fez tudo por mim pela generosidade de seu coração e serei grato a ele por toda a eternidade” completou a jovem judia.
Dr. Mohamed Helmy também ajudou a mãe de Anna Gutman, Julie, o padrasto Gerog Wehr e sua avó, Cecilie Rudnik. Sustentou e atendeu às necessidades médicas de todos. Ele também conseguiu que Cecilie Rudnik fosse escondida na casa de Frieda Szturmann. Por mais de um ano, Szturmann escondeu e protegeu a senhora idosa e compartilhou com ela suas rações de comida.
Um momento de grande risco ocorreu quando os Wehr foram pegos em 1944 e, durante o interrogatório, revelaram que Helmy os estava ajudando e que ainda estava escondendo Anna. Helmy imediatamente trouxe Anna para a casa de Frieda Szturmann, e foi apenas graças à sua desenvoltura que ele conseguiu escapar da punição mostrando à polícia uma carta que Anna teria escrito para ele, dizendo que estava hospedada com sua tia em Dessau.
Graças à coragem do Dr. Helmy e da Sra. Frieda Szturmann, os quatro membros da família Gutman-Wher sobreviveram ao Holocausto. Encerrada a segunda guerra,imigraram para os Estados Unidos, mas nunca esqueceram seus salvadores. Nos anos 1950 e início de 1960 escreveram cartas ao Senado de Berlim para que ambos fossem agraciados como “salvadores” de judeus.
Depois que o “Departamento dos Justos das Nações” reuniu toda a documentação disponível dos arquivos alemães, em 18 de março de 2013, a “Comissão para a Nomeação dos Justos” decidiu homenagear Frieda Szturmann e ao Dr. Helmy como “Justos entre as Nações”.
Dr. Helmy seria o primeiro “Justo” árabe a receber o título. Na ausência de informações sobre os familiares do Dr. Helmy, o Instituto Yad Vashem recorreu à embaixada egípcia e pediu ajuda para encontrar seus sobrinhos. O caso Helmy foi baseado em documentos de arquivo da década de 1960, momento em que ainda não havia informações precisas sobre os parentes mais próximos de Szturmann e Helmy. Sabia-se apenas que Anna Boros havia imigrado para os Estados Unidos depois da guerra, mas não havia como encontrar sua família.
Como muitos outros casos, esta história não terminou com o reconhecimento oficial. Após os relatos na mídia sobre a homenagem a Helmy, um parente israelense de Anna Boros Gutman entrou em contato com Yad Vashem, indicando a existência de Carla Gutman, filha de Anna. “Tenho vergonha de dizer que muitas vezes pensei em dizer ao Yad Vashem para adicionar o nome do Dr. Helmy à lista dos Justos, mas nunca me preocupei porque sabia que ele e sua esposa estavam mortos e nunca tiveram filhos. Não percebi o quão importante era realmente tornar esta informação pública”, escreveu ela para o Yad Vashem. Se não fosse pelo Dr. Helmy, “eu não estaria aqui hoje, assim como meus dois irmãos, Charlie e Fred. Além disso, entre nós três temos sete filhos que não estariam aqui também”.
Carla Gutman enviou a Yad Vashem uma foto mostrando ela e sua mãe visitando Dr. Helmy e sua esposa em Berlim, em 1969, como vários outros documentos encontrados nas coisas de sua mãe. Os documentos, em alemão e árabe, revelaram que o médico usou todos os meios possíveis para tratar de salvar sua protegida. Ele inclusive conseguiu um certificado para ela do “Instituto Islâmico Central de Berlim”, chefiado pelo então Mufti de Jerusalém Hadj Amin Al-Husseni, atestando sua conversão ao Islã, e uma certidão de casamento em árabe, dizendo que ela era casada com um compatriota egípcio em uma cerimônia que foi realizada na casa de Mohamed Helmy.
Encerrada a guerra, o Dr. Helmy permaneceu em Berlim e finalmente conseguiu se casar. Ele morreu em 1982, enquanto a Sra. Frieda Szturmann faleceu vinte anos antes, em 1962.
Bibliografia
Dr. Mohamed Helmy & Frieda Szturmann, Yad Vashem Holocaust Memorial Museum. Ver: https://www.yadvashem.org/righteous/stories/helmy-szturmann.html
Dr. Mohamed Helmy. Jewish Virtual Library. Ver: https://www.jewishvirtuallibrary.org/dr-mohamed-helmy
Aderet, Ofer, In First, Yad Vashem to Bestow Righteous Gentile Honor to an Arab, Haaretz (October 23, 2017). Ver: https://www.haaretz.com/israel-news/in-first-yad-vashem-to-bestow-righteous-gentile-honor-to-an-arab-1.5459554
Aderet, Ofer, Yad Vashem Names Egyptian First Arab Righteous Among the Nations. (September 30, 2013) Ver: https://www.haaretz.com/jewish/.premium-first-arab-righteous-among-nations-1.5342182
Aderet, Ofer, Why Is Only One Arab a Righteous Gentile for Saving Jews During the Holocaust? (October 24, 2017). Ver: https://www.haaretz.com/israel-news/.premium-why-is-only-one-arab-a-righteous-gentile-for-saving-jews-in-holocaust-1.5459768