Dr. Yosef Efendi Carmona: O “Dreyfus otomano”

Certamente, todos ouviram falar do caso Dreyfus, a história de um oficial judeu do Estado Maior na França, acusado de ter passado segredos militares à Alemanha em 1894. Alfred Dreyfus foi julgado e sentenciado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. No entanto, poucos conhecem outro episódio do antissemitismo moderno, ocorrido em Constantinopla no
fim do século XIX. Como no Affaire Dreyfus, também no Affaire Carmona foi cometida uma grande injustiça, mas, desta vez, passaram-se 22 anos para remediar o dano ocasionado.

MORTES E ACUSAÇÕES

Em 1886, num quartel militar na cidade de Adrianópolis, na Turquia, servia como médico do exército turco-otomano o judeu Yosef Efendi Carmona. Certo dia, cinco soldados turcos morrem por envenenamento; mas as razões que levaram a tal fatalidade nunca foram esclarecidas. Propositadamente, dois médicos de origem turca teriam denunciado o Dr. Carmona, acusando-o pela morte dos soldados. Diante destes acontecimentos, o médico judeu foi rapidamente detido e conduzido a julgamento militar em Constantinopla.

A corte militar responsabilizou criminalmente o Dr. Carmona pelo envenenamento, sentenciando-o à prisão perpétua, não sem antes realizar a tradicional cerimônia de degradação de honrarias militares e afastá-lo de forma definitiva das filas do exército turco. Yosef Carmona afirmava de forma categórica que era inocente, tal qual o faria Dreyfus oito anos depois. Solicitou novo processo, mas em vão; pois nada fez o júri turco mudar de ideia.

Somente em 1908, quase 20 anos depois, com a chegada da “revolução dos jovens turcos”, a situação do Dr. Carmona foi mudando. A revolução que atravessava a Turquia possibilitava a revisão de processos anteriores, mesmo aqueles cujo tempo havia expirado. A reavaliação do julgamento deixou claro que, na ocasião, não havia suficientes provas para condenar Carmona. Sendo assim, ficou configurado um erro jurídico na sentença final, erro este que, uma vez revogado, lhe permitiria viver em plena liberdade.

Assim, após revisão da pena, o Dr. Yosef Efendi Carmona deixou de ser um homem anônimo, sendo elogiado na mídia pela luta pessoal para recobrar sua reputação, principalmente no âmbito militar, carreira à qual havia dedicado anos de sua vida e investido grandes esforços.

A notícia de sua inocência foi correndo rapidamente pelas ruas das comunidades judaicas dos Bálcãs. A alegria era enorme não só em Adrianópolis e Constantinopla, mas em Salônica, cidade em que morava o irmão do Dr. Carmona; como também na Bulgária, país onde moravam outros familiares.

No Império Turco-Otomano, circulavam 300 jornais em judeo-espanhol, 1/3 deles em Salônica. Dentre eles, La Época (1875) era o porta-voz de idéias ilustradas. El Avenir era também dos mais lidos. A revisão completa do processo Carmona foi impressa em 1909 no jornal La Época. O editor-chefe era Shmuel Saadia Ha-Levi, que registrou, em diversos artigos e suplementos, a biografia do Dr. Carmona. Foi ele quem difundiu o nome “El Dreyfus otomano”, uma vez que o processo do militar francês já havia acontecido em 1894. Tecendo uma comparação, Shmuel Ha-Levi fez tarefa idêntica àquela que coube em Paris ao renomado escritor francês Emile Zola.

Aproveitando o auge do episódio, Shmuel Ha-Levi publicou também um pequeno livro de 48 páginas com o texto completo que figurou no jornal. Na introdução à obra, e mesmo sem mencionar o nome do Dr. Carmona, Ha-Levi colocou o seguinte: “Sem Tov Arditi escribió una novela sobre Dreyfus. Nosotros también tenemos un Dreyfus nuestro, el Dreyfus otomano”.

Na sua novela, Arditi lembra que Alfred Dreyfus esteve cinco anos preso na Ilha do Diabo; enquanto o Dreyfus otomano lutou por mais de 22 anos por sua inocência.

CARMONA E DREYFUS – DIFERENÇAS

A vontade de comparar o caso Dreyfus com o caso Carmona é justificada, mas é fundamental registrar as principais diferenças existentes entre os dois processos abertos contra estes dois judeus (apenas pelo fato de serem judeus) dentro de um curto espaço de tempo. No caso do Dr. Carmona, não houve nenhuma acusação de traição. A morte dos cinco soldados criou uma animosidade e um ódio de seus colegas turcos. Mesmo não ficando comprovado qualquer sentimento antijudaico entre os governantes, não houve na Turquia nenhum envolvimento ou intervenção do Estado-Maior.

O estado turco, caracterizado por uma política centralizadora e absolutista, evitou qualquer tipo de manifestação antissemita por parte de organizações ou instituições. Em Constantinopla, os jornais e revistas não podiam publicar matérias destilando seu veneno contra as comunidades judaicas do país, tal qual o fizeram os jornais franceses. Nas cidades do Império Otomano, não houve gritos de “morte aos judeus”, como aconteceu em Paris e outras cidades europeias.

No início do processo, a repercussão do “Caso Carmona” não foi grande. A mídia local não noticiou quase nada nas manchetes dos jornais. Na cidade de Adrianópolis, lugar de nascimento do médico judeu, pouco se sabia do andamento do processo que corria no fórum de Constantinopla.

Ao voltar o Dr. Carmona à sua cidade natal, praticamente tudo havia sido esquecido: ninguém interferiu nas suas atividades de médico nem nos inúmeros pedidos dele para rever seu processo. Contrariamente, o “Affaire Dreyfus” teve uma repercussão incrível na França e na Europa; gerou um forte antissemitismo que levou ao surgimento do movimento de libertação nacional dos judeus através do sionismo político de Theodor Herzl. O desfecho do oficial judeu-francês teve também consequências políticas nocivas e significativas para a França republicana.

PERSONAGENS ANÔNIMOS

Como registramos anteriormente, o episódio envolvendo o médico Yosef Efendi Carmona teria ficado no anonimato não fosse o jornal La Época, responsável por noticiar o desenrolar do dito processo. O editor mencionado, Shmuel Saadia Ha-Levi, focou tudo na pessoa de Carmona, mesmo não divulgando dados essenciais da vida do médico de Adrianópolis. Em outras palavras, não sabemos quando nasceu; quem eram seus pais, onde estudou Medicina ou o que o teria motivado a trabalhar como médico seguindo carreira militar.

Faltam também dados relevantes vinculados com o próprio envenenamento dos soldados turcos. Desconhecemos tanto os nomes dos médicos que o acusaram como os daqueles que testemunharam em falso na corte. Também ignoramos o nome verdadeiro do oficial que o acusou e comandava o quartel onde tudo aconteceu. Ainda, os familiares do Dr. Yosef Carmona são um verdadeiro enigma.

Há um único personagem que aparece permanentemente no “Affaire Carmona”. Ele é o Dr. Ajiman, um médico judeu que atendeu Yosef Carmona quando este ficou muito doente no decorrer do processo. Quando Carmona solicitou a revisão de seu processo em liberdade em 1908, o Dr. Ajiman já havia falecido. A empatia entre ambos os médicos tem uma única explicação: Tudo indica que o Dr. Ajiman passou por uma experiência bastante similar àquela de seu paciente, Dr. Carmona. Numa das tantas conversas entre ambos, ele confessou “saber exatamente o que você [Dr. Carmona] está experimentando”.

A “revolução dos jovens turcos”, liderada pelo futuro primeiro presidente da Turquia democrática, Mustafá Kamal Ataturk (1881-1938), foi determinante no destino de Carmona; gerando uma crítica em torno das decisões falhas no período dos sultões.

Shmuel Ha-Levi era um jornalista de prestígio e foi porta-voz do profundo desprezo que sentia a sociedade turca pelos governantes. Numa de suas tantas abordagens políticas, Ha-Levi coloca abertamente o seguinte trecho: “Adrianópolis, 1886. O governo turco-otomano era podre (corrupto), muito mais do que a mente pode imaginar. A revolução (1908) conseguiu mudar a vida de todos; e, de um dia para outro, a Turquia passou das trevas à luz, da tristeza para a alegria, da escravatura para a redenção.”

DR. CARMONA FOI VÍTIMA?

Os dados levantados até agora não nos permitem traçar um perfil completo do Dr. Carmona, ficando difícil afirmar se ele foi uma vítima ou não do regime totalitarista otomano. Não obstante, resulta evidente que, em 1886, Yosef Efendi Carmona era ainda muito jovem e tinha pela frente uma carreira promissora. Em 1908, durante o arquivamento do processo, “os cabelos de Carmona já haviam embranquecido, sua testa tinha manchas e as marcas do sofrimento e da dor estavam desenhadas em seu rosto”.

Dr. Yosef Carmona descendia de uma família de rabinos, presentes em Adrianópolis durante várias gerações. Uma fonte turca informa que, na hora em que foi levado até Constantinopla para responder a seu processo, ele pediu para se despedir de familiares já sepultados. No cemitério da cidade, lugar em que repousam os restos de seus ancestrais, descansa também uma moça de 18 anos de idade que seria sua única filha.

O Dr. Yosef Efendi era um homem bom e um excelente profissional. Os familiares de Constantinopla eram influentes no governo e possuíam uma situação financeira estável; porém nada puderam fazer a seu favor. Somente duas décadas depois, conseguiram redimir seu parente com ajuda de algumas pessoas relacionadas com os círculos revolucionários turcos.

Ao ser inocentado e libertado definitivamente, o Dr. Yosef Carmona foi entrevistado no Ministério da Justiça. Não era mais um jovem. Lamentavelmente, era tarde demais para aceitar o arrependimento do Estado. Afinal, o dano causado era grande, irreversível e imperdoável.

BIBLIOGRAFIA

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