Ontem, 26 de janeiro de 2021, as vésperas do “Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto”, participei de uma live realizada pelo Consulado de Israel em SP e o Memorial do Holocausto. Na ocasião comentei a atuação decisiva do escritor João Guimarães Rosa e sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho, no resgate dos judeus da Alemanha. Nessa live analisamos o documentário “Outro Sertão”, dirigido por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, uma maravilhosa viagem no resgate da figura do vice-cônsul brasileiro em Hamburgo.
Reproduzo a seguir minhas explicações, basicamente à contextualização histórica em torno da ação do escritor-diplomata durante sua estadia na Europa; sua relação com o Nazismo, com os judeus e, naturalmente, com Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) durante o governo Getúlio Vargas.
A CHEGADA A HAMBURGO
Em 2 de junho de 1938 o “Ministério das Relações Exteriores do Reich”, localizado em Berlim, recebe um comunicado que o Sr. Guimarães Rosa será o novo vice-cônsul brasileiro em Hamburgo. Imediatamente, o poeta parte de navio rumo á Alemanha, sem sequer se despedir de seu pai.
O ano 1938 foi um ano especial e decisivo no calendário europeu, tanto para o percurso da 2ª Guerra Mundial como para a dinâmica do Holocausto. Há quatro acontecimentos de extrema importância que se sucederam antes, durante e após a chegada de João Guimarães Rosa a Hamburgo. São eles: o Anschluss (anexação da Áustria), a Conferência de Evian, a incorporação ao Reich dos Sudotes (Tchecoslováquia) e, finalmente, a “Kristallnacht” (Noite dos Cristais).
Enquanto Guimarães Rosa era cotado para exercer seu cargo na Alemanha de Hitler, em 12/03/1938 foi passada uma lei no Reichstag (Parlamento alemão) para anexar a Áustria ao Reich alemão, (Anschlüss), unificando os dois territórios. Afinal, tratava-se de nações de laços fraternos, com história e cultura próxima, geradas no Pangermanismo. Esta lei (votada um mês depois) levou as forças do Wehrmacht a ingressarem em Viena pacificamente, sem oposição, sendo seus soldados cumprimentados pelos simpatizantes do nacional-socialismo austríaco, previamente instalado no país. Isto é significativo, pois aqui começam “de fato” as conquistas de Hitler, ainda antes de eclodir a 2ª Guerra Mundial.
João Guimarães Rosa acompanhou de perto a realização da “Conferência de Evian” entre 6-15 de julho de 1938. O evento aconteceu no sul da França, com o objetivo de debater a situação dos refugiados do Nazismo e o desafio causado pelo número crescente de judeus que fugiam das perseguições orquestradas pela Alemanha. A conferência foi convocada por iniciativa do presidente Franklin D. Roosevelt, esperançoso de que parte das nações convidadas aceitasse um número de refugiados. Entretanto, ele evitou declarar esse objetivo abertamente. A rigor, Roosevelt desejava só diminuir a repercussão e as críticas da política dos EUA que limitou severamente a cota de imigrantes judeus aceitos no território.
A “Conferência de Evian” contou com representantes de 32 países e 24 organizações de trabalho voluntário que participaram como observadoras, apresentando propostas oralmente ou por escrito. Importante relembrar que a Sra. Golda Meir, foi enviada pela “Confederação dos Trabalhadores Judeus do Mandato Britânico da Palestina” (Histadrut), porém não foi autorizada a falar nem participar das decisões, exceto como observadora.
Ao permitirem a anexação da Áustria ao Reich, a França e o Reino Unido imaginaram que a ambição territorial de Adolf Hitler chegaria ao fim. No entanto, isso não aconteceu, e o “Führer” voltou-se para os Sudetos, uma região da Tchecoslováquia que possuía numerosa população de etnia germânica. Essa ação foi vista como um interesse de Hitler em garantir o controle da malha industrial existente naquela área.
A ambição de Adolf Hitler levou as potências europeias a reunirem-se para discutir a situação dos Sudetos na “Conferência de Munique”. Essa reunião que ocorreu em 29/09/1938, contou com a presença do próprio Hitler (Chanceler alemão), Neville Chamberlain (Primeiro Ministro britânico), Édouard Daladier (Primeiro Ministro francês) e Benito Mussolini (Primeiro Ministro da Itália). Como franceses e britânicos estavam impondo uma “política de apaziguamento” para evitar um novo conflito, seus líderes acabaram aceitando as exigências da Alemanha e forçaram a Tchecoslováquia a abrir mão de sua soberania sobre a região dos Sudetos. Em troca, exigiram o fim das ambições territoriais de Hitler e a demonstração da Alemanha pela manutenção da paz. Europa se rendia por completo às vontades do líder alemão.
A “Noite dos Cristais” ou “Kristallnacht” foi um pogrom programado contra os judeus alemães na noite de 9-10 de Novembro de 1938. Foi perpetrado pelas forças paramilitares das SA e por civis. As autoridades olharam para o acontecimento sem intervir. O nome “Kristallnacht” deve-se aos pedaços de vidro que encheram as ruas, após as janelas das lojas, edifícios e sinagogas judaicas terem sido partidas.
As estimativas sobre o número de vítimas variam bastante. Os primeiros relatos indicavam que 36 judeus tinham sido mortos durante os ataques. Recentemente, as análises dos estudiosos do Holocausto mencionam um número mais elevado, 91 mortos. Para além das vitimas, uns 30.000 judeus foram detidos e enviados para campos de trabalho forçado e concentração.
O pretexto dado para os ataques foi o assassinato do diplomata alemão Ernst von Rath por Herschel Grynszpan, um jovem estudante judeu e filho de poloneses, nascido na Alemanha. Ele assassinou a tiros Ernest von Rath, adido da embaixada alemã em Paris. À “Noite dos Cristais” seguiram-se perseguições aos judeus, vistas como parte da política de intolerância racial da Alemanha nazista, e o início da “Solução Final” do povo judeu.
A GUERRA
O “Diário” de João Guimarães Rosa não apresenta apenas trechos em que fala da beleza de Hamburgo, “um lugar onde minha imaginação foi humilhada e batida”, mas também de uma Alemanha formidável, limpa e ordenada, trabalhadora e alegre. No entanto, existem outras partes do “Diário” em que o diplomata registra minuciosamente a invasão alemã à Polônia em 1939, as mobilizações do Reino Unido e da França, a massificação nos comícios de apoio a Hitler, mas sempre desabafando e alertando que “uma guerra somente causa estragos”.
Em “Carta” datada janeiro de 1940 escreve: “O frio é forte, há neve, falta água quente, não há carvão nem gasolina…”. Em 29/03/1940 ele comenta: “Enquanto nos países democráticos a produção total teve uma queda constante, a economia nazista apresenta um crescimento continuo…”. Esta situação aqui retratada por Guimarães Rosa é real. Em tempos de guerra, natural que os recursos diminuam até ir sumindo por completo. A população da Europa sofreu horrores durante a 2ª Guerra, e isto é indiscutível.
O diplomata Guimarães Rosa é ciente que também a população do Reich alemão, que sempre aparece fotografada feliz e satisfeita, sofrerá seriamente das devastadoras consequências da guerra. A “Operação Barbarossa” iniciada pela Alemanha em 22 de junho de 1941 deve ser vista como uma tentativa por parte da cúpula nazista de “saque” dos recursos naturais da União Soviética. A empreitada rumo ao Leste foi uma mega empreitada orquestrada por Hitler e seus carrascos para enriquecer ilicitamente o país.
O cineasta francês Alain Resnais em seu documentário “Noite e Neblina” (1956) traz imagens da época mostrando trens e caminhões sobrecarregados de carvão, minério e aço, ingressando dentro das fronteiras da Alemanha. O resultado final é amplamente conhecido: Hitler erra por completo na logística, ignora o poderio das tropas soviéticas e leva uma humilhante derrota na “Batalha de Stalingrado”. Estes saques aparecerão quatro anos depois nas acusações feitas pelos promotores aos nazistas nos “Julgamentos de Nüremberg” entre 1945 e 1946.
OS JUDEUS NA ALEMANHA
Os judeus fazem parte integral da narrativa de Guimarães Rosa, enquanto cônsul brasileiro em Hamburgo. O Nazismo é claramente um movimento de caráter antissemita e no rádio oficial do Reich com certa frequência se escuta: “o mundo está sempre contra nós”.
Guimarães Rosa se sensibiliza permanentemente com a dor dos judeus, olhando com extrema preocupação o sofrimento deles. Em 29/03/1940 escreve o poeta mineiro: “Os judeus não tem direito de comer as coisas que ainda estão ao alcance dos estômagos arianos… as cartas de comida (pacotes de comida) dos semitas são carimbadas com a letra “J”… Eles não recebem cartas (pacotes) de ovos, não recebem carnes nem solas de sapatos, não podem possuir rádios (bem de consumo da época) nem sair de casa após as oito horas da noite… Eles devem fazer as compras em certas casas fixadas onde muitas vezes não há mais nada para se comprar ou se há os preços para eles são sempre elevados”.
O uso da estrela de Davi amarela nas roupas dos judeus surge também na correspondência de Guimarães Rosa. Em 20 de setembro de 1941, informa “haver começado a obrigatoriedade do uso de distintivos nas roupas dos judeus”. Seis dias depois, em 26/09/41 ele acrescenta que “até crianças de quatro anos ou menos andam com distintivos”.
A situação vexatória externada por Guimarães Rosa é complexa: os judeus vivem totalmente marginalizados da sociedade em 1940 e começam a ser deportados aos guetos da Polônia e demais lugares da Europa. O distanciamento deles das populações locais será total. Isto deixa triste ao escritor do sertão, um homem que abomina injustiças. Certa vez, ao ser perguntado o que significava para ele ser um diplomata, ele respondeu: “O diplomata é um sonhador e por isso pude exercer bem esta profissão… Agi como agi… Eu como homem do sertão, não posso presenciar injustiças”. Isto é essencial para entender em profundidade a personalidade e principalmente a postura de João Guimarães Rosa em relação aos judeus da Alemanha e da Europa em geral.
O documentário “Outro Sertão” traz histórias de vida de judeus salvos por João Guimarães Rosa. Abordarei a seguir apenas três delas.
Pinkas Manzbach era um judeu polonês, casado, 34 anos de idade, que imigrou a São Paulo, deixando sua mulher e duas filhas na Alemanha. Através de suas filhas sabemos que a mãe se apresentou no Consulado do Brasil em Berlim a procura de vistos. Ela o visitou justamente no dia 20 de abril, data em que aconteceria uma grande festa por motivo do aniversário de Hitler. Uma funcionaria explicou calmamente à mulher que aguardaria em vão, pois ninguém a atenderia. Desesperada a mãe perguntou: – Quem é o cônsul de Hamburgo? Aí ela apontou para um homem muito bonito, de elegante terno, que tinha fama por ajudar aos judeus. A filha Judith Manzbach lembra que sua mãe o segurou com força pelo braço e implorou pelo visto. Ele pediu para lhe entregar o passaporte que foi logo renovado pelo cônsul brasileiro. Elas tinham 10-15 dias para sair do país. Judith soube anos depois (segundo ela através de um site de genealogia) que o tal cônsul de Hamburgo era o escritor João Guimarães Rosa.
Margareth Levy era uma judia filha de mãe de Varsóvia e pai da Cracôvia. Ela explica em seu breve depoimento que ninguém achava que o Nazismo se tornaria tão violento em Hamburgo. Seus pais sabiam que Guimarães Rosa era bom amigo dos judeus, mas ele não era o cônsul-geral. Quem abria todas as correspondências era uma moça de nome Aracy. Ambos, João e Aracy se conheceram em Hamburgo. Aracy era uma funcionária poliglota de Itamaraty em Hamburgo, lá conheceu Guimarães Rosa e ambos ficaram juntos até 19 de novembro de 1967, data em que João Guimarães Rosa faleceu. Em 1982 Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, o “Anjo de Hamburgo”, foi agraciado com o título de “Justa entre as Nações” pelo Museu de Yad Vashem em Jerusalém.
Egon Katz comenta no documentário que “todos queriam sair e iriam ao primeiro lugar onde pudessem receber um visto de imigração ou um visto de turista, pois o importante era sair…”. Egon lembra que no navio em que chegou ao Brasil a maioria tinha obtido visto de turista, emitido pelo Consulado do Brasil em Hamburgo.
Em relação às “circulares secretas” é importante destacar que eram documentos cuja função era proibir a entrada de pessoas de etnia israelita em território nacional. Eu gostaria de trazer as palavras do Prof. Avraham Milgram no documentário. Ele explica que “nem todos os cônsules ou diplomatas agiam de acordo com esta série de circulares secretas e outras não secretas, mas emitidas por Itamaraty para impedir a entrada de judeus no Brasil a partir de 1937”. O papel do diplomata era fundamental na época da Segunda Guerra, pois ele podia interpretar e achar brechas nas leis brasileiras e desta forma ajudar ou prejudicar as pessoas. É sabido hoje que as circulares secretas emitidas pelo Itamaraty orientavam os diplomatas para não emitirem vistos aos “indesejáveis”, um código utilizado unicamente para judeus. Milgram ainda esclarece que “era praticamente impossível receber um visto temporário, pois todos sabiam que não queriam ficar por 1-2-3 meses, mas queriam fugir do inferno em que viviam”.
O historiador Fábio Koifman afirma no documentário “Outro Sertão” que os passaportes de judeus (REISEPASS) tinham uma letra “J” vermelha para identifica-los facilmente. Essa letra “J” era justamente para demostrar que ele não mais poderia retornar ao país de origem.
GUIMARÃES ROSA E A ALEMANHA
Aos olhos do Terceiro Reich, o comportamento do escritor Guimarães Rosa era preocupante e impróprio para um cônsul estrangeiro na Europa. Em 06 de julho de 1940 o “Gabinete Central de Segurança do Reich” (RSHA) comandado pelo SS Reinhard Heydrich declarava “existirem declarações avessas à Alemanha”. Uma fonte segura informava que o vice-cônsul brasileiro em Hamburgo João Guimarães Rosa, apesar de ter sido instruído por seu próprio governo a manter-se neutro diante da situação política; ele se posicionou em 31 de maio de 1940 da seguinte forma: “A Alemanha nunca vai ganhar a Guerra porque a Rússia mantém-se muito alerta. A Rússia está esperando a Alemanha perder todo seu sangue para dar o golpe mortal”.
Além desta declaração, o cônsul fez vários desenhos na margem de um jornal, que segundo ele, representavam a cabeça do Führer e uma forca. E explicou: “Esta é a forca onde Hitler vai ser pendurado”. O vice-cônsul Guimarães Rosa também criticou personalidades do Reich e as ridicularizou. Em sua opinião, o Führer e o Marechal Göring fazem o que querem com o povo alemão. Com estas atitudes, o diplomata dava motivo para ser punido severamente.
“Em função destes fatos, – diz o comunicado do Gabinete de Segurança –peço que se tomem as devidas medidas e que a decisão tomada seja a mim comunicada”. O Gabinete de Segurança do Reich disse ainda que irá convoca-lo imediatamente a Berlim para repreendê-lo e adverti-lo a se comportar de forma mais adequada.
João Guimarães Rosa passou cem dias detido em Baden-Baden e só deixou Alemanha em janeiro de 1942, quando houve o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com o Eixo. Essa atitude de Itamaraty fez com que a Alemanha enviasse submarinos para atacar o Brasil, afundando cinco navios mercantes brasileiros em agosto de 1942. A agressão alemã gerou grande comoção popular, que passou a exigir uma declaração de guerra contra a Alemanha. Para esta data, o diplomata mineiro João Guimarães Rosa já havia sido substituído do cargo.
PALAVRAS FINAIS
José Guimarães Rosa foi um filo-germânico, amante incondicional da cultura alemã. Em apenas quatro anos passou de um extremo ao outro: chegou fascinado com a organização que reinava na sociedade teutônica, mas aos poucos foi percebendo que o regime do Nacional-socialismo imposto à população por Adolf Hitler e seus carrascos não atendia a todos os grupos humanos.
Termino esta reflexão citando um dos poemas mais belos de João Guimarães Rosa, intitulado “Poema dos que não aderem”; declamado na parte final do documentário “Outro Sertão”:
Maria Tereza, eu vou de viagem,
estou de passagem para longe daqui.
De toda essa gente ligeira que passa,
eu levo mais presa que de qualquer um.
Maria Tereza… não tenho mais prazo,
Minutos me empurram, caminhos me chamam,
Tenho de seguir.
Dai-me a benção das mulheres que amam,
Dai-me o sorriso das mulheres que esperam.
Não olhes para a estrada,
Não olharei para trás,
carrego tristeza para um miriametro,
conduzo lembranças para três trimestres,
nas três saudades, para a eternidade.
Maria Tereza, até lá, Adeus!!