Edison Veiga: Em linhas gerais, a maior parte dos mitos sobre os judeus tem origem na Igreja Católica. De que forma pode ser promovida uma coexistência respeitosa entre judeus e cristãos, para que argumentos de parte a parte não se tornem instrumentos de uma rivalidade ainda maior?
Prof. Reuven: A diabolização dos judeus durante a Idade Média contou certamente com a participação ativa da Igreja Católica. Os ataques constantes dos denominados “Padres da Igreja” foram ganhando proporções inimagináveis, principalmente ao tentarem criar diferentes imagens do judeu medieval, todas de caráter negativo. O povo não lia latim nem grego, mas nas ilustrações, gravuras e iluminuras, estes estereótipos ficaram marcados. Em outras palavras, o judeu fará parte da sociedade, mas ele viverá marginalizado, pois sua função é nociva. A modo de exemplo, ele aparece como “deicida” (assassino de Cristo), como uma criatura “diabólica” (que interfere nas relações entre o D´us cristão e os fiéis), aparece como o “judeu errante”, apátrida e andarilho, e finalmente nas vestes do “judeu prestamista”, um homem explorador e ganancioso que impõe juros abusivos ao emprestar dinheiro a cristãos. Importante registrar aqui que foi a própria Igreja que proibiu aos cristãos emprestarem dinheiro entre si.
Hoje em dia, posso afirmar que ainda existe uma diabolização (demonização) do judeu, mas com certeza temos avançado e derrubado grande parte destes estereótipos. A modernidade não mais admite os estereótipos medievais que citei anteriormente. Mesmo assim, há camadas da sociedade que enxergam os judeus com desconfiança, muitas vezes fruto de ignorância e despreparo. Não existe uma receita, mas para derrubar por completo estes preconceitos é fundamental entender que “os judeus são primeiramente seres humanos de carne e osso, e num segundo momento pessoas observantes da mais antiga das religiões. Aquela que legou ensinamentos universais a todos os outros seres humanos. Aliás, é importante dizer que os demais povos da antiguidade hoje não existem mais”.
Edison Veiga: No início deste ano, sobretudo nas redes sociais, houve um movimento (iniciado nos EUA, mas com ressonância no Brasil) pelo orgulho judeu, com muitas pessoas postando suas histórias e enaltecendo suas raízes. De que maneira isso é importante como forma de ressignificação do que é ser judeu?
Prof. Reuven: Não sei se é possível falar em termos de “ressignificação do ser judeu”. Não acredito em algo assim. A verdade é que existiu um movimento, se denominou “Jewish & Proud” (Orgulho Judaico) e ele surgiu como uma rápida resposta das comunidades judaicas do mundo ao forte antissemitismo que começava a crescer e configurar-se tanto na Europa como nos Estados Unidos de América. Aqui, na América Latina, e especificamente nas pequenas comunidades do sul do Brasil, tivemos casos esporádicos de pichações em cemitérios e desenhos de cruzes suásticas nos muros das instituições. A ideia do movimento “Orgulho Judaico” era postar nas redes sociais alguma frase contra o preconceito e a intolerância, um texto curto, um desenho que demostre a amizade entre os povos e as religiões. A iniciativa foi louvável, eu mesmo postei um texto intitulado “O ORGULHO DE SER JUDEU” que teve milhares de leitores. Em Israel, pouca relevância se deu a este movimento, obviamente argumentando-se que antissemitismo é uma questão específica da diáspora, das comunidades judaicas e dos judeus que moram fora do Estado de Israel.
Edison Veiga: Como podemos trazer essa discussão para o Brasil atual? Qual sua leitura sobre a aproximação torpe de alguns setores da sociedade com Israel? De que maneira isso cria uma narrativa de que ser judeu é ser de direita? (Ou, ainda, que nazismo seria esquerda).
Prof. Reuven: Acho desnecessário importar essa discussão do “orgulho judaico” para o Brasil. Cada pessoa deve sentir-se orgulhosa e feliz de suas origens sem ter que dar satisfação nem render contas a ninguém. Simples assim!! Quem precisa demostrar orgulho por suas origens é porque não possui sua identidade bem consolidada e fortalecida. Repito, a iniciativa do movimento “Jewish & Proud” era combater o antissemitismo, os ataques a sinagogas e instituições judaicas, mas caso não houvesse uma realidade hostil, qual a necessidade de mostrar-se orgulhoso de ser judeu? Aqui não se trata do “orgulho gay”, querer mudar uma realidade de gênero. O Judaísmo não é uma escolha (opção), Judaísmo é algo com o qual você nasce e respira 24 horas por dia. Naturalmente, Há casos de conversões, mas isto não é a regra.
Edison Veiga: Outro exemplo que gostaria de comentar é o fato de uma figura como Edir Macedo utilizar o quipá em seus cultos no Templo de Salomão. Como analisar esse tipo de apropriação?
Prof. Reuven: O fenômeno da “Igreja Universal do Reino de Deus” no mundo inteiro é algo relativamente moderno, tem pouco mais de 40 anos. O grupo de Edir Macedo tornou-se o maior e mais representativo grupo neopentecostal brasileiro. Para os judeus não representa absolutamente nada, judeus não frequentam a Universal. O tipo de marketing que faz esta igreja pentecostal é uma imitação quase completa dos ritos e costumes judaicos antigos. Para mim soa muito estranho ver um bispo vestir o “talit”, xale utilizado pelos judeus ou utilizar benções que são tipicamente judaicas. Por outra parte, a Igreja Universal é frequentemente alvo de duras críticas, principalmente em relação a cobrança do dízimo, algo extremamente judaico.
Tampouco concordo com a palavra “apropriação”, mas vou tentar explicar minha forma de enxergar este fenômeno moderno da Universal. Se o Judaísmo é patrimônio de toda a Humanidade, qualquer corrente religiosa poderá (legal ou ilegalmente) fazer uso dele. Quero registrar com total clareza que os judeus não temos absolutamente nada em comum com esta corrente cristã, apenas sabemos de sua existência. Difícil nos dias atuais ficar indiferente diante do fortalecimento de grupos evangélicos no Brasil, grupos estes que querem um país sustentado em valores cristãos.
Edison Veiga: De que forma deve ser entendida a aproximação de Bolsonaro com Israel? Isso contribui para as narrativas ou, por outro lado, aumenta a antipatia história de setores da sociedade com relação ao povo judaico?
Prof. Reuven: Nas minhas entrevistas não costumo me pronunciar sobre as várias políticas dos governos brasileiros, uma vez que cada uma contribuiu com algo para a sociedade. Mas, é importante lembrar que todos os governos tentaram sempre manter uma relação (boa ou ruim) com o pequeno Estado de Israel. Afinal de contas, desde 1948, Israel faz parte da família das nações e, portanto, cada nação determinará o tipo de relação política que manterá com o único Estado democrático do Oriente Médio.
Como a maioria sabe, tivemos governos que entenderam a importância que tem para o mundo o Estado de Israel e se aproximaram, mantendo contatos diplomáticos e excelentes relações econômicas. Por outra parte, já tivemos governos que não enxergaram a relevância deste minúsculo estado para o avanço e o progresso do Brasil e negligenciaram por completo sua importância.
Israel é hoje uma “Nação Start-Up”, um país que procura empreendedorismo, busca desenvolver avanços nos diferentes setores, principalmente nas áreas das biomédicas e das telecomunicações, ambas essenciais para o crescimento das nações. Costumo dizer, quem quiser viver em um país de 1º Mundo que procure Israel, quem não quiser que continue ignorando-o; mas sem hipocrisia, sem usufruir nenhuma daquelas inovações tecnológicas (celulares, pen-drive ou waze) que Israel ofereceu à Humanidade.
Edison Veiga: Paradoxalmente, o mundo vê hoje uma aproximação da extrema-direita com elementos do judaísmo, em boa parte por causa do atual governo israelense, mas a mesma direita também tem um discurso antissemita. Qual sua leitura disso?
Prof. Reuven: Atualmente, existe uma tendência mundial em adotar regimes de direita ou extrema direita. Porém, costumo dizer que o antissemitismo não diferencia governos de direita ou governos de esquerda, governos democráticos ou governos republicanos. Isto pode ser facilmente constatado através da História. Nas comunidades da diáspora, os judeus conviveram e convivem muito bem tanto com a esquerda como com a direita. Está registrado em nossos textos: “Diná-Demalchutá-Diná” (“A lei do país é a nossa lei”), devemos aceitá-la e respeitá-la, sem objetar sua origem.
O Estado de Israel em sua curta história de 72 anos alternou partidos políticos de esquerda e direita, coalizões de governo de centro-esquerda e centro-direita. Hoje a esquerda israelense está em franca decadência, mas há ainda grupos fortes no centro do mapa político de Israel. O fenômeno de esquerda (Avodá) declarou a Independência do Estado e ditou a maioria das regras do establishment por quase 30 anos, entre 1948-1977. Depois quando venceu a direita (Likud) começou a mudar essa realidade. De lá para cá, em pouco mais de 40 anos (1977-2020); teve alternância de governos de esquerda e direita, isto legitimado por um clima de total respeito e tolerância. Revezar os sistemas de governo pode ajudar bastante a manter a governabilidade como já acreditava Montesquieu às vésperas da Revolução Francesa.