As crônicas judaicas dos séculos 15 e 16 retratam o sofrimento dos exilados ibéricos face à expulsão da Espanha e o batismo forçado de Portugal. Nas travessias rumo as colônias d’Além Mar, maus tratos infringidos aos judeus e cristãos novos eram uma constante.
Edição 79 – Março de 2013
A “Expulsão dos Judeus da Espanha”, em 31 de Março de 1492, e, posteriormente a “Conversão de Portugal”, em 5 de Dezembro de 1497, foram acontecimentos emblemáticos que permitiram o rápido povoamento das colônias d´além-mar. Três cronistas judeus contam as tribulações vividas na época. Nesses anos, Portugal programou uma deportação especial à Ilha de São Tomé, na África. Crianças e adultos sofreram maus tratos nas travessias ultramarinas, quando não acabavam presa de animais ferozes que habitavam as recônditas regiões.
A vida em São Tomé
Poucas fontes judaicas descrevem São Tomé, uma ilha no golfo da Guiné, descoberta durante o reinado de D. João II de Portugal, em 21 de dezembro de 1471. A única fonte que a menciona é o Sêfer Orchot Olam de Abraham Farissol, que dedicou o capítulo 16 ao descobrimento da ilha. Sua descrição morfológica, dados sobre flora e fauna e a existência de população é de enorme valor histórico. Ele relembra que os portugueses esforçavam-se para chegar até a Etiópia e que, abrindo caminho na direção sudeste, “acharam uma ilha jamais colonizada que denominaram Porto Santo; e o rei de Portugal a povoou com moços e moças [nearim unearot], rebanhos e gado, como também homens e mulheres. Ouvi também que lá há cristãos novos [anussim] vindos durante a época da expulsão, javalis, coelhos e um número incalculável de pombas”.
Uma Carta de Sesmarias registra os primórdios de São Tomé entre 1471-1490. Essa colonização iniciou-se, de fato, quando D. João II outorgou uma autorização a Álvaro de Caminha e Souto para povoar a região, principalmente com judeus e cristãos novos. Assim, o programa de colonização aliviaria problemas demográficos surgidos em Lisboa e outras cidades de Portugal. Sabemos que o auge da colonização aconteceu entre 1530-1540, e que, entre 1493-1500, os primeiros judeus chegaram à região, resistindo às adversidades climáticas.
São Tomé representou para Portugal um “laboratório experimental”, uma mescla étnico-social jamais vista antes. Ali a Coroa adotou uma política dupla: transportava grupos humanos explorando a economia do território e, paralelamente, educava e catequizava os nativos na observância dos ensinamentos cristãos. O homem branco (português ou europeu) recebia em São Tomé grandes encomendas de escravos negros oriundos da África e da Ásia, prontos para serem vendidos nos mercados. O contato racial originaria uma população mulata. O processo étnico-racial foi registrado por um aventureiro que ancorou em São Tomé em 1506: “Poucas mulheres tinham filhos de homens brancos e a maioria tinha filhos de negros, enquanto as [mulheres] negras tinham seus filhos de brancos”.
Um português cujo navio zarpou de Lisboa a São Tomé retrata a população autóctone da ilha. Ele comenta que “todos têm mulher e filhos, e algumas crianças ali nascidas são brancas como as nossas [em Portugal]. Às vezes, quando a esposa de um comerciante morria; ele tomava uma mulher negra. Isto era uma prática aceita; pois a população negra era rica e inteligente, educando os filhos à nossa maneira [europeia], tanto no que diz respeito aos costumes como ao vestir. As crianças nascidas dessas uniões são de compleição escura e são chamadas de mulatos, sendo maliciosas e difíceis de tratar”.
Com a chegada dos judeus convertidos ou anussim a São Tomé, no final do século 15, a vida econômica floresceu. Os reis D. João II e D. Manuel I consideraram o comércio de importação a atividade principal, incentivando a comercialização de produtos como animais exóticos, perfumes e outros objetos de valor. Uma fonte inestimável da receita geral dependia do ouro, marfim, tráfico de escravos e especiarias. Por outra parte, as exportações incluíam cavalos de raça, tapetes, tecidos, joias e outros artigos de luxo. A inserção de judeus hispano-portugueses no comércio internacional abriu mercados até então desconhecidos. Os exilados de 1492-1497 levaram a essa ilha o cultivo da cana de açúcar, empregando de 150 a 300 escravos por engenho. Graças a essa atividade industrial, a ilha se converteu em um dos maiores centros açucareiros. Trinta anos depois, por 1522, havia em São Tomé 60 engenhos.
Sob uma perspectiva social, o império ultramarino português confrontou-se com sérias dificuldades, principalmente por causa da forte discriminação racial. A segregação de minorias foi crescendo, gerando um mosaico étnico que se cristalizou dentro e fora de suas fronteiras. Charles R. Boxer, o estudioso do império português, chegou a afirmar que “algumas colônias como Cabo Verde, São Tomé e a Guiné Alta e Baixa, tornaram-se verdadeiros depósitos de escravos, onde os mesmos esperavam para serem despachados para a América Espanhola e o Brasil”.
A “Questão Judaica” na Ibéria
A política colonizadora de São Tomé se sustentava nas atividades socioeconômicas dos judeus expulsos da Espanha, em 1492. O maior questionamento, na época, era: De que forma um país pequeno e densamente povoado como Portugal seria capaz de absorver dentro de suas fronteiras um número tão grande de judeus? Hoje sabemos que a política real era aproveitar o judeu e povoar colônias distanciadas da metrópole, Lisboa, impedindo a organização de uma vida comunitária judaica nos diferentes centros urbanos do país. O destino dos exilados judeus não foi determinado por eles mesmos; os itinerários traçados e os traslados efetuados eram determinados pela Coroa. Dentre eles surge São Tomé.
Mesmo depois da conversão forçada em Portugal (1496-1497), a política régia colonizadora não sofreu alterações significativas. Segundo os cronistas, Portugal continuou a deportar para suas colônias judeus convertidos ao Cristianismo, consolidando sua presença em regiões afastadas do gigantesco império ultramarino.
Três crônicas judaicas descrevem claramente as ideias dos portugueses ao programar o povoamento dos territórios conquistados. São elas: Shebet Yehudá ou Vara de Judá, de Salomão Ibn Verga; Emeq Ha-Baqa ou Vale das Lágrimas, de Yosef Ha-Cohen, e as Consolaçam às Tribulações de Israel, de Samuel Usque.
Rabi Salomão Ibn Verga
No relato do Shebet Yehudá, de Rabi Salomão Ibn Verga, fica evidente a falta de sensibilidade dos portugueses para lidar com os judeus. Ele menciona um barco repleto de judeus que partiu da Espanha em 1492 e foi interceptado em alto-mar, para que o piloto negociasse “a vida ou a morte” de seus passageiros em troca de seus pertences. Nesta embarcação viajavam dois tripulantes que conversavam sobre a piedade e misericórdia que deveria ser outorgada aos desterrados judeus. Este diálogo aparece personificado na figura de um comerciante justo (socher rodef tzedek) e um homem malvado (ish arur), o capitão do navio.
O comerciante dirigiu-se ao malvado para lhe pedir que tratasse com benevolência os passageiros judeus, dizendo-lhe que caso contrário uma grande injustiça seria cometida ao ser derramado sangue de judeus inocentes. O pedido do comerciante ao malvado capitão surtiu resultado parcial: todos os judeus que estavam a bordo foram poupados, porém jogados às margens de uma rocha do mar, num lugar desértico.
Despojados de suas roupas e atirados à ilha de São Tomé, os judeus se sentiram envergonhados ao serem atingidos em seu pudor. Para o cronista: “Tal era a vergonha que estes judeus não se punham se pé, senão ao escurecer ou à noite”. Na ilha, dois deportados travaram uma dura luta pela sobrevivência. Caminharam por três dias às margens do mar, bebendo água das cascatas. Ao fim do terceiro dia, um dos judeus propôs ao companheiro escalar uma montanha para descansar das peripécias. Com dificuldade, ambos atingiram o cume da montanha para pedir auxílio do outro lado da ilha. Lá chegando, os dois encontraram uma caverna com leões, mas felizmente as feras voltaram às cavernas, “salvando-se assim os judeus por outros cinco dias”.
Já no quinto dia, os dois judeus avistaram uma embarcação. Os passageiros alojados no convés ficaram perplexos ao ver judeus naquele lugar, pois “sabiam que não havia população alguma em região tão desértica e inóspita”.
O capitão enviou, então, uma parte da tripulação para saber qual era o estado dos judeus. Os marinheiros retornaram à embarcação relatando as tribulações vividas pelos dois desafortunados.
Rabi Ibn Verga comenta ainda que “a piedade se impôs e o capitão ordenou que os [dois] judeus fossem embarcados”. Já a bordo, um tripulante enviado ao resgate tomou uma cortina velha (vilon iashan) e rasgou-a em pedaços para dividi-la e cobrir o pudor dos judeus. O capitão lhes ofereceu também comida e bebida. O relato de Rabi Salomão Ibn Verga esclarece que a embarcação lusa passou por outro lugar já povoado de judeus, e lá os dois exilados desceram. Um deles aproximou-se para conversar e negociar com outro judeu que vivia no lugar, pois suspeitava que seus irmãos os venderiam. Mas, os judeus locais lhes disseram que não havia intenção de tomá-los prisioneiros, mas apenas solicitar uma pequena quantia pelo resgate (lakachat pidion), e assim pagar os gastos ocasionados.
Os dois exilados judeus pagaram com dinheiro e presentes. Em troca, os judeus locais lhes deram alimentos e vestimentas, tal como rezava o costume entre os israelitas. Ao final da aventura, os resgatados agradeceram ao capitão por tirá-los do inferno de São Tomé.
No capítulo 59 do Shebet Yehudá, Salomão Ibn Verga descreve o traslado de crianças judias a São Tomé, ou como as denominou Luiz Vaz de Camões, as Ilhas Perdidas. Esta deportação de menores foi, sem dúvida, o episódio mais comovedor ocorrido após 1492. Segundo este autor: ”Quem não assistiu estas terríveis cenas de prantos, choros e gritos de mulheres, jamais haverá visto nem escutado em vida, tamanha preocupação e desconsolo. E ninguém consola e ninguém protege ou defende”.
Rabi Yosef Ha-Cohen
Na obra martirológica Emeq Ha-Baqa (Vale das Lágrimas), o cronista Yosef Ha-Cohen (1496-1575) narra as perseguições enfrentadas pelos judeus desde as origens até a época da publicação de sua crônica, em 1575. Após citar os motivos que o levaram a escrevê-la, Ha-Cohen faz um relato das tribulações dos judeus portugueses. Para o autor, as dificuldades para os israelitas lusos começaram durante a chegada dos judeus castelhanos, em 1492.
Famílias inteiras se assentaram no Reino, mediante pagamento de “dois dourados” per capita. O acordo assinado entre o governo e os judeus enfatizava que Portugal seria apenas uma estação temporária, fornecendo o rei embarcações para que esses judeus pudessem continuar a travessia para onde desejassem. A entrada dos judeus em Portugal havia acontecido com extrema rapidez, mas a vida dos judeus foi amargurada; pois naqueles tempos os súditos do rei viajavam em navios a ilhas desconhecidas como São Tomé, lugares onde nada existia; a não ser grandes peixes (daguim guedolim), denominados lagartos, serpentes, répteis e víboras.
Em 1492, meses após a entrada dos deportados castelhanos, uma epidemia mortal se espalhou por Portugal e pela Itália. Imediatamente, um número de judeus solicitou ao rei luso que dispusesse de embarcações e assim possibilitasse sua saída rumo aos países islâmicos e ao império turco. O rei não teria manifestado oposição alguma ao desejo de emigrar, porém sabemos que maus tratos haviam sido impostos tanto nos portos como dentro das embarcações.
Para Yosef Ha-Cohen, os abusos perpetrados a bordo contra os judeus jamais poderão ser esquecidos. No percurso da viagem, “cruéis marinheiros portugueses se atiraram com extrema violência sobre os israelitas, os despojaram de suas roupas e os ataram com cordas grossas e, na presença dos homens, violentaram suas esposas, sem que ninguém pudesse ajudá-los naquele terrível momento”. Dramáticas cenas continuaram durante a travessia.
O lugar destinado para despejar os judeus foi uma área desértica na África. Yosef Ha-Cohen conta que “os judeus estavam famintos, mas ninguém lhes fornecia comida. Mulheres, com poucas esperanças de vida, rezavam e imploravam aos Céus; enquanto outros judeus começavam a cavar suas próprias sepulturas, pedindo às montanhas que os cubram de imediato”.
Na sua obra historiográfica, Ha-Cohen traz também a reação dos exilados aos abusos durante a espera para zarpar do porto de Lisboa. Uma mistura de medo e espanto era o denominador comum entre aqueles judeus prestes a partir. Temor de serem vítimas de um novo tipo de vandalismo. Alguns decidiram ficar em Portugal e não arriscar suas vidas, enquanto outros zarparam com esperanças. O retrato do cronista é bem detalhado, captando o péssimo tratamento ministrado aos judeus.
A documentação analisada deixa claro que a corte de Portugal não teve participação direta no tratamento imposto aos judeus; não obstante, fica evidente que a mesma se furtou a tomar alguma providência para evitar abusos, facilitar itinerários e rotas de fuga e, consequentemente, possibilitar um destino seguro aos exilados judeus.
Para São Tomé o rei enviava marginais, condenados à morte e judeus do Reino. Ha-Cohen desabafa dizendo que “naqueles dias não havia ninguém – nem sequer D´us – que pudesse redimir os desditosos judeus (iehudim umlalim), e todas as mulheres choravam aos prantos, quando seus filhos lhes eram arrancados dos braços, enquanto seus maridos, amargados e desesperados, arrancavam suas barbas à força”.
Mulheres judias se curvavam diante do rei de Portugal implorando misericórdia. Outras clamavam: “Permita que zarpemos junto a nossos filhos!”. Porém, o monarca ignorou as súplicas e sequer olhou para seus semblantes.
Yosef Ha-Cohen destaca a crueldade dos ibéricos com os deportados. As represálias não foram tomadas somente contra os judeus lusos, mas contra todos aqueles judeus hispânicos que não obtiveram um acordo de permanência no país. Estes foram degredados à ilha. O cronista caracterizou os portugueses com o adjetivo “cães” (klavim), por embarcarem pela força crianças, provocando desespero entre os pais. O rei não autorizou a saída dos pais, aumentando a tristeza, a dor e o sofrimento.
Já em São Tomé, alguns judeus viraram presa fácil dos lagartos, e a maioria acabou morrendo por falta de água, comida e moradia segura. Somente um pequeno número conseguiu sobreviver às adversidades do lugar. Uma vez concluída a narração, Yosef Ha-Cohen passa a descrever a conversão forçada de 1497, em Portugal.
Samuel Usque
Na obra Consolaçam as Tribulações de Israel, Samuel Usque (1530-1596) menciona os interesses colonizadores dos portugueses em São Tomé e o programa colonizador de D. João II. A informação solicitada pelo monarca deixa evidente que seu desejo era colocar em cativeiro os judeus vindos de Castela. Como Ibn Verga, Usque relembra os difíceis momentos vividos pelos judeus antes de zarpar de Portugal. Para ele, os judeus “depositaram demasiada confiança na população local, mas foram enganados, sem escrúpulos. Durante a travessia marítima, seus membros superiores e inferiores foram amarrados com cordas, suas mulheres humilhadas e ultrajadas enquanto membros da tripulação as despojavam de suas roupas”.
Uma das naves partiu rumo à costa africana até um lugar deserto. Ao chegar, os judeus foram castigados por uma forte epidemia que minguou parte dos emigrados. O trágico quadro foi relatado por Usque: “…os lançaram na praya erma e desamparada de todo socorro humano, vireis as criaturas pedirem pam e as madres levantarem os olhos ao ceo que lhes acodisse; outros convidando-os a desesperação da fome e grande desamparo vireis para se enterrar [e] fazer as covas…, etc”.
O capítulo 27 da Consolaçam as Tribulações de Israel, cita o traslado forçado de crianças judias a São Tomé. Usque informa acerca do interesse do rei João II em saber quantos exilados espanhóis haviam entrado em Portugal sem autorização oficial da Coroa. Estes residentes ilegais seriam levados em cativeiro, negando-lhes o direito de se estabelecer dentro do território lusitano.
De que maneira resolver, então, o problema dos judeus ilegais? Face à descoberta de uma ilha desabitada na qual havia apenas animais selvagens, seria oportuno para lá desterrar os judeus. Escreve Usque: “quis também que entrassem as inocentes criaturas de todos estes judeus, cujos pais parece que ante o juízo divino eram condenados”.
A sorte estava lançada e a Coroa desterraria crianças judias.
Samuel Usque, como Rabi Yosef Ha-Cohen, retrata as doídas despedidas entre pais e filhos. Pela força, os portugueses puxavam os filhos dos braços das mães desconsoladas, enquanto as barbas dos “velhos honrados” eram arrancadas com violência. Os judeus gritavam de sofrimento ao ver o acontecido. Alguns desterrados se ajoelhavam diante do monarca, implorando-lhe para zarparem junto a seus filhos queridos. Uma das mães emocionou o próprio cronista:
“… entre estas mães [h]ouve uma que considerada a horrenda e nova crueza sem mistura de alguma misericórdia a seus clamores; arrebatando seu filho nos braços d´alta nau, [a]dentrou no tempestuoso mar, se lançou e fundiu com sua única criatura abraçada”.
Embarcações continuavam a sair de Lisboa rumo além-mar. Uma ancorou em São Tomé e a maioria dos judeus foi devorada pelos lagartos. Usque acredita que o amargo destino dos judeus foi fruto da Providência Divina. Para sustentar esta ideia, cita o Deuteronômio 28: 32-45: “Os teus filhos e tuas filhas serão dados a outro povo, e teus olhos o verão, e desfalecerão por eles todo o dia, pois não voltarão; e não haverá poder nas tuas mãos para fazer coisa alguma… E te tornarás louco pela visão que teus olhos hão de ver… Gerarás filhos e filhas, mas não serão para ti: porque irão ao cativeiro,…”
O sistema jurídico em Portugal
Tudo indica que o “Programa de São Tomé” não foi pensado exclusivamente para os judeus ou para solucionar o problema do cristão novo. Segundo os cronistas judeus, o programa visava desterrar também grupos não judaicos em geral; indivíduos que residiam em Portugal como hereges e condenados, prestes a serem punidos pelo rigor da lei.
Em 1500, os judeus lusos estavam totalmente afastados dos cargos públicos e eram enquadrados nas Ordenações do Reyno (Affonsinas e Manuelinas) como raça infesta ou “elemento não grato”. Representavam um grupo humano do qual era preciso livrar-se no menor tempo possível.
É fundamental lembrar que a sociedade portuguesa dos séculos 15-16 era um marco rigidamente hierarquizado e, portanto, eram quase nulas as possibilidades de ascender socialmente de uma classe para outra. Assim, a estratificação fez com que todas as minorias, entre elas a judaica, sofressem discriminação social, econômica, política e principalmente religiosa.
Os relatos dos cronistas judeus da época mostram de forma convincente que a política régia estava voltada para a expulsão dos hereges, vistos como “indesejáveis”. Desde a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, até a conversão de Portugal, em 1497, a deportação às colônias foi um fenômeno que trazia soluções práticas para problemas domésticos.
Um “Tratado” escrito em Portugal mais de 100 anos depois, em 1625, explica que uma das soluções adotadas para resolver a questão dos cristãos novos, era desterrar judaizantes a colônias distantes, como Guiné, Cafraria, Cabo Verde e São Tomé. Em todas já atuavam missões catequizantes, encarregadas de conduzir os novos fiéis nos ensinamentos católicos. São Tomé foi um polo de evangelização durante o auge do Império português ultramarino.
Palavras Finais
No final do século 15, Portugal havia elaborado um plano de deportação de judeus, rumo à ilha de São Tomé. Um fato irrefutável é que a documentação não deixa de citar as atrocidades cometidas pelos portugueses nos portos de embarque, como também os ultrajes perpetrados a bordo durante as longas viagens d´além mar. O programa de deportação não rendeu resultados. É difícil visualizar uma única causa para o fracasso deste “Programa”. Naturalmente, é preciso apontar alguns motivos.
A motivação dos portugueses em purgaro país de“elementos que não prestam”, desprezando objetivos práticos, pragmáticos e de rentabilidade, metas essenciais, naquele então, e o transporte de judeus e cristãos novos (tidos como grupo intelectualizado), junto a grupos de bandidos, assassinos ou transgressores, contribuíram para o fracasso do projeto colonizador. Ademais, o clima tropical de São Tomé era propício para qualquer tipo de agricultura, principalmente o cultivo de café e banana. Apesar disso, os judeus jamais se dedicaram à agricultura, sendo os árabesos envolvidos
nesta atividade econômica.
A fauna e flora da ilha colaboraram para que o programa colonizador fracassasse. Como demonstramos, animais exóticos, como felinos, répteis, serpentes e lagartos, espantaram os judeus chegados a São Tomé. Finalmente, a descoberta do Brasil por 1500 e o auge da indústria açucareira durante o século 16 reduziram significativamente a população de São Tomé.
Boa parte dos filhos de judeus e cristãos novos acabou abandonando a colônia, dirigindo-se à Terra de Santa Cruz, descoberta pelos portugueses. O declínio da economia de São Tomé fez com que grupos de pouca expressão ficassem trabalhando na ilha, dentre eles tribos indígenas, negros africanos e alguns filhos de portugueses nascidos no lugar.
Bibliografia:
Farissol, Abraham, Orchot Olam. (Ms. Paris No. 897/26853). Cap. XVI.
Ha-Cohen, Yosef, Emeq Ha-Baqa. Edição de M. Letteris. Vilna 1852.
Ibn Verga, Salomon, Shebet Iehudah (La Vara de Judá). Texto revisado y anotado por U. Schohat, compilación e introducción de Itzhak Baer. Jerusalém 1936.
Kayserling, M., História dos Judeus em Portugal. Editora Pioneira. São Paulo 1971.
Usque, Samuel, Consolação às Tribulações de Israel. Edição de J. Mendes dos Remedios. 3 vols. Coimbra 1906. English edition: Samuel Usque’s Consolations for the Tribulations of Israel: Third Dialogue. Sixteenth Century Classic written in Portuguese by the noted Historian and Mystic Samuel Usque, by Gershon I. Gelbart. PHD Dissertation. Dropsie College 1964.
Tucci Carneiro, M.L., Preconceito Racial no Brasil Colônia. Editora Brasiliense. São Paulo 1983.