Há exatamente três anos, em 2018, o governo polonês promulgava a polêmica “lei polonesa” sobre o Holocausto. Ao impor lei que pune a quem ousar falar da participação polonesa na “Shoá”, a Polônia não fez mais que destacar o antissemitismo daquele país. Desde então, não se ouve falar mais desta lei.
O ódio contra os judeus existiu e ainda existe em muitas nações e não é um privilégio alemão. Todos sabem que a máquina de extermínio foi pensada pelo governo nazista, mas o preconceito era generalizado e os atos de violência foram sustentados com o silêncio criminoso e o apoio entusiasmado de pessoas da França, da Áustria, da Holanda, da Hungria, da Rússia e também da Polônia.
A máquina de morte alemã jamais teria conseguido seu grau trágico de eficácia se tivesse contado com populações cúmplices da vida humana e não aliadas da pulsão de morte. Houve muitos casos de poloneses heroicos que arriscaram suas vidas escondendo judeus ou adotando crianças de famílias eliminadas.
A violência hitlerista também infernizou a vida de muitos poloneses. Isto não pode ser negado. Convenhamos que a construção de Auschwitz-Birkenau não se originou de ordens de Varsóvia, mas nasceu de ordens em Berlim. Ninguém duvida disso. Infelizmente, ao lado de resistentes pela vida, atos de ataque a populações judaicas também foram perpetrados por poloneses. O Holocausto tem sempre essa dupla-face: criou heróis que estão homenageados no “Jardim dos Justos” em Jerusalém, mas também deu lugar a canalhas que, amparados pela Wehrmacht, puderam expressar seu antigo e histórico racismo.
Entre o herói e o canalha, existe uma terceira categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada representou sempre a face tranquila do mal em todas as épocas. Como diz uma oração penitencial católica, “peca-se por pensamentos e palavras, atos e omissões”. O extermínio dos judeus da Europa contou com categorias de fazer o mal.
A memória não pode ser apagada pela lei. O dispositivo jurídico que criminaliza a quem lembrar da óbvia e comprovada participação de civis de toda a Europa na matança é uma lei inútil. Ao puxar o curto cobertor da memória para o peito nu, descobriu-se o pé gelado e antissemita. Talvez o mais grave não seja o horror do passado. O pior é que a lei revela a permanência daquele sentimento contra os judeus.
Diante da memória do horror, o silêncio, mesmo imposto pela legislação, é o caminho mais equivocado. Como já dissemos, a Polônia sofreu muito na Segunda Guerra, como a Rússia e outros países. A melhor maneira de homenagear as inúmeras vítimas do Nazismo (judeus, católicos, ciganos, homossexuais, comunistas, negros e Testemunhas de Jeová) é expor “que o ovo da serpente está lá, e que a memória é uma maneira de evitar o nascimento da ninhada viperina”. A História é o remédio contra o Nazismo. É preciso fortalecer a memória crítica de tudo que ocorreu naqueles anos trágicos.
Se os poloneses estudarem como milhões de alemães conseguiram apoiar o projeto genocida, e como isso forneceu o guarda-chuva sob o qual outros povos puderam canalizar sua tradição de violência; teríamos mais esperança de registrar o Nazismo como um equívoco pretérito.
Se o genocídio de seis milhões de judeus na Segunda Guerra fosse uma empresa, a gerência seria alemã e os sócios e funcionários teriam múltiplas nacionalidades, inclusive polonesa. É o reconhecimento de que há um fio condutor que vai do conceito russo de pogrom até o caso Dreyfus na França; da falsificação da Okhrana (polícia czarista) da obra “Os Protocolos dos Sábios de Sião” até sua tradução nos EUA sob os auspícios do industrial Henry Ford; da recusa de Getúlio em acolher mais refugiados que fugiam do horror; do asilo que Juan Domingo Perón concedia aos criminosos de guerra até a placidez alpina dos banqueiros suíços que acolheram milhões em depósitos pertencentes a famílias judaicas e silenciaram sobre os fundos por décadas. O Holocausto é um fato internacional e traz à tona não apenas um projeto alemão, mas um ódio coletivo, irracional e criminoso. O Holocausto é europeu, o antissemitismo é mundial.
O slogan “Nunca mais” é um bom propósito para estudos sobre o ódio. As leis não podem sufocar a memória. Nem em nações regidas por ditaduras absolutas, o silêncio sobre a história consegue ser total. Em tempos de internet e contatos amplos, a “lei polonesa” só traz à tona que Adolf Hitler foi vencido, mas o antissemitismo, não.
Há três anos, lamentei a iniciativa do governo de Varsóvia. O povo polonês sobreviveu a duas das mais brutais ditaduras da história, a nazista e a soviética. Sua sociedade está num processo de modernização. Como no Gênesis, a vergonha só chega após o erro. A “lei polonesa” publicada em 2018 escancara o embaraço e revela uma culpa latente e ainda não purgada. Continuemos a refletir, pelo menos àqueles que temos memória.
BIBLIOGRAFIA
Faingold, Reuven, A nova lei polonesa não resiste à História. Esta artigo será publicado em breve na revista NUESTRA MEMORIA da Fundación Museo del Holocausto em Buenos Aires.