Origem
Em 21 de setembro de 1939, após três semanas de intensos combates, o exército alemão conquistou a Polônia. Hans Frank, um oficial nazista, advogado pessoal de Hitler, de 33 anos, foi nomeado “Governador Geral da Polônia ocupada”, organizando e comandando escravização, trabalhos forçados e morte de milhões de judeus e poloneses. Eram tempos difíceis para judeus poloneses, como a família de Milton Jacinsky.1
Os pais de Milton, Stephano Jacinsky e Guiomar Ferreira,2 ele polonês e ela portuguesa, moravam em Varsóvia com seus três filhos: a mais velha (uma menina doente), Marlene (a filha do meio) e Milton (o caçula). Na época, o “Governo Geral” alemão, com seu quartel geral sediado em Cracóvia, determinou que todos os judeus poloneses deveriam entregar seus bens de raiz aos alemães, principalmente aqueles que possuíam mais de uma propriedade registrada. Quem se negasse, automaticamente teria todos seus bens confiscados.3
A movimentação dos judeus na área do “Governo Geral” era rigorosamente controlada pelas forças do Wehrmacht. O casal Jacinsky fazia parte daqueles judeus poloneses que tinham uma situação econômica privilegiada, pois a família mantinha uma plantação de beterrabas para a venda de açúcar. No entanto, era necessário escapar do pesadelo nazista e salvar os filhos, pois o futuro da Polônia se apresentava nebuloso. Assim, Stephano e Guiomar decidiram entregar uma carta à governanta que cuidava das crianças, com instruções de como agir com elas e esta foi a última vez que Milton viu seus pais; eles desapareceram e provavelmente foram vítimas do Holocausto.4
Milton não lembra o nome da governanta da família; era muito pequeno, tinha menos de três anos naquela ocasião, mas a descreve como uma senhora de formas avantajadas, vestindo saias longas. Ele, muito sapeca, gostava de esconder-se dentro das saias de empregada. Foi a governanta quem entregou a fazenda aos nazistas. Como na Polônia daquele período o dinheiro tinha pouco valor, a governanta dos Jacinsky saiu da fazenda com um saco de joias e as três crianças. O destino dos quatro era Gdansk, cidade portuária na Pomerânia, na foz do rio Vístula, que durante a dominação germânica (1793-1945) foi conhecida como Danzing. Na carta entregue à governanta estava escrito que lá iriam encontrar um senhor que os socorreria.
Segundo Milton Jacinsky, essa pessoa estava ligada ao empresário alemão Oskar Schindler e receberia altas somas de dinheiro para resgatá-los. No entanto, esta versão não condiz com os fatos históricos, uma vez que o industrial alemão salvou apenas judeus do gueto de Cracóvia, deportados ao campo de trabalho de Plaszow, construído em dezembro de 1941.5 Afinal, Schindler proibiu terminantemente a presença de crianças em sua fábrica, outorgando salvo-condutos apenas aos adultos.
Ao ser perguntado por que a escolha do Brasil como refúgio, Jacinsky foi assertivo, dizendo: “aqui no Brasil tínhamos parentes”, embora nenhum parente seu tenha sido localizado no país.
Orfanato e educandário
Milton Jacinsky nasceu em 1 de março de 1939 e tinha entre dois e três anos quando chegou ao Brasil num cargueiro inglês. “Chegamos ao porto de Santos apenas com a roupa do corpo e uma trouxa. De lá andamos a pé até a cidade de Santa Isabel”
acrescenta o entrevistado. Imediatamente, irmãos e governanta foram morar em frente à igreja do lugar. A governanta já estava muito doente e a irmã mais velha de Milton praticamente morta. Logo depois as duas faleceram. Milton foi encontrado no “Largo Treze de Maio s/n” (uma artéria central da cidade de Santa Isabel) por voluntárias beneméritas, um grupo de mulheres ricas que prestava assistência aos necessitados desde a revolução de 1932.6
As damas mantinham um orfanato e ele e sua irmã Marlene foram adotados pela instituição. Marlene havia entrado no orfanato pouco antes que Milton. As freiras não queriam adotá-lo, pois ele tinha feridas na cabeça, ocasionadas pelas picaduras de mosquitos. Elas achavam que poderia ser um tipo de sarna contagiosa. Aos nove anos Milton Jacinsky foi entregue à “Casa da Infância do Menino Jesus”, uma entidade católica dirigida por freiras num casarão da Freguesia do Ó, na periferia de São Paulo, onde se tornou coroinha da Igreja Católica.7
Mais adiante, foi estudar no educandário Dom Duarte, próximo de Cotia, que foi uma etapa importante em sua vida. Ali moravam 580 meninos, a maioria tinha perdido seus pais. Em cada um dos 16 pavilhões (blocos com quartos) moravam 36 meninos. Foi ali que o órfão polonês começou a desenvolver seu potencial artístico, aproveitando a compra de um forno de cerâmica pela instituição. “Fazia coisas incríveis”, comenta Jacinsky, com um ar de pouca modéstia. Ele ligava e desligava esse forno, trabalhava com diversos tipos de pinturas e esmaltes, e ainda oferecia cursos para os meninos do educandário.8
O educandário era um lugar bem cuidado. Uma entrada com jardins e pequenas hortas dava as boas-vindas aos visitantes. Como era costume, no primeiro prédio ficava a administração. Havia também um lugar especial para armazenar o adubo
que se colocava nas plantas.
Para as horas vagas ou de lazer organizado, os internos contavam com um campo de futebol e um cinema. Jacinsky ganhou o apelido de “primeiro bamba”, por ser ele o menino mais experiente e valente da turma, aquele que subia nas árvores onde se hospedavam os enxames de abelhas. “Colocava minhas mãos no enxame e, sem receber uma picada, retirava a rainha produtora dos favos de mel”.9
A Irmã
Após aportar em Santos, Marlene Jacinsky (também chamada Malka) foi adotada pela família do construtor italiano Simão Laser, então morador de São Bernardo do Campo. A família Laser era católica e em sua casa entravam e saíam freiras. Com Marlene ficou a carta dos pais que a governanta trouxe, juntamente com as três crianças. Aos 16 anos, Milton visitou Marlene na casa dos Laser, num dia em que chovia torrencialmente. “Ela levou um grande susto quando lhe comuniquei que os Laser não eram seus pais”, confessa Milton com certa tristeza. Ele acredita que esta informação estragou a vida dela. O contato com Marlene foi retomado alguns anos depois, quando ela procurou-o na confecção onde estava trabalhando, dizendo-se arrependida por tê-lo ofendido. “Naquele dia Marlene me presenteou com uma nota de 100 contos e um beijo, e assim retomamos nosso contato”, revela Jacinsky, todo emocionado.10 Atualmente, Marlene reside na Itália.
Trabalho
Os estudos no Colégio Bandeirantes marcaram um período significativo na vida de Jacinsky, mas infelizmente não conseguiu terminá-los, pois precisava sustentar-se. Na casa onde morava, ele dormia num móvel adaptado que de dia era sofá e à noite virava cama.
Começou a trabalhar ainda jovem como auxiliar de decoração, numa grande loja de São Paulo, logo passando a decorar vitrines e, depois de uma relação muito próxima, nos anos de 1960, com o costureiro Clodovil Hernandez, um garoto órfão adotado por um casal de imigrantes espanhóis, Domingo Hernández e Isabel Sánchez, de quem se tornou amigo, foi desenhista de roupas femininas.11
Nas décadas de 1960 e 1970, depois de trabalhar como auxiliar de decoração, de arrumar vitrines e desenhar vestidos para as mulheres da sociedade paulistana, Jacinsky passou a frequentar casas noturnas e boates, chegando a ser proprietário de
uma. Este foi um período bastante difícil na sua tumultuada vida, pois bebia muito e vivia sem limites. “Eu não cheguei a ser um alcoólatra, mas em determinados momentos terminava descontrolado por desgosto”, admite.12
O órfão de Varsóvia Milton Jacinsky teve um percurso de vida pouco convencional para um filho de pai judeu. Viveu uma vida boêmia e desregrada, por vezes sem limites. A vida no orfanato e educandário contribuiu positivamente para sua formação, mas não o resgatou por completo. Conhece sua origem judaica, mas de seu longo depoimento fica evidente que não se integrou à comunidade judaica e também não pratica a religião católica.
Milton Jacinsky deixou de fumar. Faz um ano que ele está doente, fragilizado por um câncer de próstata. Em relação ao Brasil, essa terra abençoada que o acolheu, Milton Jacinsky é extremamente grato: – “Eu sou mais brasileiro que muitos brasileiros que nasceram aqui”.
Notas
1. Em seu discurso após conquistar a Polônia Hitler afirmava: “Os poloneses nasceram especialmente para o trabalho pesado… Não é preciso pensar em melhorias para eles. Cumpre manter, na Polônia, um padrão de vida baixo, não se permitindo que suba (…). Os poloneses são preguiçosos e é necessário usar a força para obrigá-los a trabalhar. Devemos utilizar-nos do governo geral da Polônia simplesmente como fonte de mão de obra não especializada (…). Poder-se-ia conseguir ali, todos os anos, os trabalhadores que o Reich possa necessitar”. O discurso completo do Führer pode ser consultado em: http://
educador.brasilescola.com/estrategias-ensino/o-discurso-hitler.htm Parte da vida de Hans Frank foi relatada ao psiquiatra judeu Leon Goldensohn, As Entrevistas de Nuremberg. São Paulo, 2004, p. 53-76. Entrevista com Milton Jacinsky, realizada
pelo autor deste texto, no ateliê do bairro de Pinheiros, em São Paulo, em 23 de agosto de 2011.
2. Durante a entrevista o Sr. Milton menciona muito pouco seus pais. Apesar da mãe de Milton não professar o Judaísmo e ser oriunda de Portugal, na Polônia, toda a família Jacinsky era tida como judia, uma vez que seu pai era judeu.
3. Ver: Fischer, S. Hitlers Kronjurist und Generalgouverneur. Verlag Frankfurt am Main: Taschenbuch-Ausgabe 2008.
4. Sobre os judeus entre as duas guerras mundiais, ver: Gutman, Yisrael et al. The Jews of Poland Between Two World Wars. Hanover: University Press of New England, 1989; e Heller, Celia S. On the Edge of Destruction: Jews of Poland between the Two World Wars (2nd ed.) Detroit: Wayne State University Press, 1994.
5. Plaszow era um pequeno povoado nos arredores de Cracóvia. Em dezembro de 1941 os nazistas construíram ali um campo de trabalho e de concentração. Por ser próximo, fazia parte de um futuro plano de evacuação do gueto de Cracóvia. Em 13 de março de 1943, este plano foi implementado com extrema crueldade e todos aqueles judeus que não pereceram na evacuação foram confinados em Plaszow. Ver: Faingold, Reuven; Francisco (Feiwel) “Wichter: Operário 371 da ‘Lista de Schindler’”. MORASHÁ 76, junho de 2012. Dados sobre Schindler: Crowe, David M. Oskar Schindler: The Untold Account of His Life, Wartime Activities, and the True Story Behind The List. Philadelphia: Westview Press, 2004.
6. Sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, ver Manso, M. Costa. São Paulo e a Revolução: 1932. São Paulo: 1977, 11 p.
7. Em 1934 foi inaugurada como abrigo a “Casa da Infância” na Chácara Vila Albertina, no bairro da Freguesia do Ó. Ele funcionou até 1937 neste mesmo endereço. Depois, os 104 meninos abrigados foram transferidos para o Educandário
Dom Duarte, no bairro Jardim Educandário. Em 1953 a “Casa da Infância” é reinaugurada como “Casa da Infância
do Menino Jesus” no bairro do Ipiranga, atual CEI Casa da Infância do Menino Jesus. Ver www.ligasolidaria.org.br
8. No prédio da Liga das Senhoras Católicas fica o Educandário Dom Duarte, exatamente na Av. Engenheiro Heitor Antonio Eiras Garcia, 5985 – Jardim Esmeralda, bem perto do Cemitério Israelita. O prédio é hoje cercado de outros tão bonitos quanto ele, com seus jardins e até uma piscina. A “Liga das Senhoras Católicas”, responsável por esta tarefa educativa, oferece também neste espaço cursos profissionalizantes.
9. Textuais palavras de Milton Jacinsky na entrevista realizada no ateliê do bairro de Pinheiros, São Paulo, em 23 de agosto de 2011.
10. Nova citação de Jacinsky, em entrevista ao autor deste texto.
11. Ver: Amendola, G., “Ele fugiu de Hitler; Arte/ Personagem.” Jornal da Tarde, Sexta feira 20 de fevereiro de 2009 (Entrevista no ateliê na Lapa, SP).
12. Entrevista com Milton Jacinsky, realizada pelo autor, no ateliê do bairro de Pinheiros, em São Paulo, 23 de agosto de 2011.