Lisboa, 1506. Lembro perfeitamente que naquele tempo vivia na metrópole um alfaiate chamado Menachem. Este enigmático judeu português, corcunda e de corpo diminuto, costumava caminhar pela “Rua dos Mercadores”, localizada na artéria principal da capital lusa, a poucos metros da antiga sinagoga. Sua casa, muito modesta e bastante descuidada, tinha na parte superior do teto um cata-vento de cor vermelha, branca e azul. Foi o próprio Menachem quem teria fabricado esta veleta que, a primeira vista, parecia um pavão sacudindo sua bonita cauda tricolor.
Era quase impossível entrar na judiaria sem deter-se e contemplar a obra-prima do mestre alfaiate, colocada na parte superior da modesta moradia. Era impossível, também, deixar de cumprimentar Dom Menachem, um homem alegre, que segurava sua agulha enquanto entoava umas “ladainhas”, espécie de melodias monótonas. Às vezes, o alfaiate levantava a cabeça, fixava seus olhos de ratinho nos transeuntes e, sem deixar de cantar, sorria. Aquele estranho sorriso, rasgado pelo seu olhar penetrante, era também sua particular maneira de agraciar as pessoas.
Mais de mil vezes podia um indivíduo passar pela janela do alfaiate, e mil vezes seus olhinhos arregalados de camundongo o cativavam, o seguravam na própria alma; como se aquele sorriso ingênuo e sereno fosse comparável a uma flor silvestre. Passavam as damas com suas cestas e com seus animais de estimação, voltando da praça ou do mercado e, na hora de atravessar em frente à casa do alfaiate, espiavam pela janela. Lá estava sentado Dom Menachem, sempre costurando com extrema velocidade e entoando suas raras cantigas.
– D´us vos outorgue um bom dia!… Menachem aceitava os cumprimentos, erguia sua cabeça, fixava seus olhos numa vizinha, e sorria. Porém, ele nunca abandonava suas melodias judaicas, frequentemente acompanhadas de imperceptíveis movimentos oscilatórios de pernas e corpo.
Na rua passava Rabi Moshe, o venerável sábio da comunidade, muito aclamado pelos judeus do bairro. As vozes repetiam-se: “Shalom Rabi, shalom Rabi!”. O rabino caminhava com sua longa barba branca, dirigia seu olhar profundo à casa do alfaiate, e com sua penetrante voz de barítono dizia: “Shalom Adoni hechaiat” (Shalom senhor alfaiate).
Nem mesmo diante do erudito rabino, Dom Menachem desgrudava seus lábios. Ele olhava-o fixo e sorria. E o rabino Moshe também sorria pensando, certamente, que o alfaiate não passava de um homem ingênuo, meio tolo, mas um judeu de boa alma (neshamá tová), observante de preceitos e tradições milenares.
Aos sábados, Dom Menachem não trabalhava. Desde a noite de sexta-feira até a noite de Sábado ele era um homem completamente dedicado a D´us. Mesmo assim, era o último em chegar à sinagoga, pois não gostava de participar do coro improvisado composto pelos judeus que chegavam cedo para rezar. Menachem chegava apressado, suado. Virando a cabeça e gesticulando com seu corpo diminuto, cumprimentava todos os presentes. Desta forma, seus olhos irradiavam uma forte luz que pairava no vespertino ar sabático.
O que relatarei a seguir aconteceu quatro dias após a última noite de Pessach de 1506. Casualmente, era também a mesma noite em que os cristãos celebravam a sua Páscoa. Esta época era para nós, judeus, tempo de sobressaltos, temores e medos.
Minha casa, afastada da casa do alfaiate Menachem, estava situada na periferia do bairro judaico, longe do prédio da sinagoga. Havia passado algumas horas desde o pôr-do-sol, e ainda, ninguém dormia em casa. Minha mãe parecia nervosa, e tentava driblar o tempo com diferentes tarefas. Meu pai, sempre clamo, lia “Pirkei Avot” (Ética dos Pais), à luz das velas do candelabro.
Quebrando aquele silêncio, uma gritaria vinha de muito longe. A barulheira infernal perdia-se, a ao mesmo tempo, retornava, escutando-se nitidamente na direção do vento. Meu pai interrompeu a leitura. Estava pálido. Parecia que ele despertara de um sonho. Meu pai interrompeu a leitura. Estava pálido. Parecia que ele despertara de um sonho. Minha mãe movimentava-se com pressa. Apagou todas as velas exceto uma. Guardou nosso pouco dinheiro e algumas joias dentro de um pano e, rapidamente, procurou roupas para minha irmã e para mim. Meu pai, temeroso da situação, começou a entoar melodias de Shabat.
Lembro também que papai tinha tirado seu talit de um pequeno estojo de veludo vermelho, e o colocara cuidadosamente sobre seus frágeis ombros. Logo, ele mergulhou numa página de seu livro de orações e começou a ler uma brachá (benção), que eu já conhecia de outras oportunidades. A minha mãe, intranquila, estava prestes a abandonar a casa quando papai terminasse a oração. Para nós era natural que papai rezasse, enquanto mamãe ocupava-se das roupas e do dinheiro.
No entanto, lá fora, a gritaria aumentava consideravelmente. Ao sair da casa vimos, na rua principal do bairro, fachos de fogo que se movimentavam com o barulho do vento. Já na rua, soube que iríamos à casa do nosso tio Menachem, o alfaiate, irmão mais velho de minha amada mãe.
Naquela noite, entramos em sua casa sem avisar. Ele também vestia seu velho talit e segurava seu livro de orações. Menachem ainda não rezava. Parecia agitado e andava pelos úmidos quartos da casa sem ter iniciado a reza.
Ao chegarmos, talvez por influência do papai, Menachem conseguiu dissimular um pouco melhor seu comportamento. Meu tio, então, começou a dar leitura à mesma oração que tinha proferido meu pai poucos minutos atrás. Papai acompanhava a reza fechando os olhos e movimentando imperceptivelmente seus lábios.
A oração acabou e somente depois tio Menachem tirou seu talit e nos cumprimentou. Minha mãe, com frases curtas e quebradas, explicou tudo a meu tio. Nós, filhos, ficaríamos ali na sua residência, enquanto nossos pais voltariam para casa. Meu pai era shochet, fazia o abate de animais segundo o ritual judaico; e tudo indica que este trabalho o converteu numa pessoa extremamente odiada pelos não judeus.
Tio Menachem levou a minha irmã e a mim por uma velha escada, até um porão mofado todo coberto de insetos. Neste lugar, úmido e fétido, havia uma minúscula janela que me permitia olhar para a rua. Daqui em diante, minhas recordações misturam-se, confundem-se, perdem-se no tempo e na história…
Não consigo me lembrar de quase nada. De fato, não posso distinguir muito claramente o que nos aconteceu em Lisboa naquele quarto dia após a última noite de Pessach de 1506. Da mesma forma, não consigo lembrar o que aconteceu uns 400 anos depois em Kishinev, na Rússia; ou 40 anos depois, em 1943, em Varsóvia. Na verdade, todas estas lembranças misturam-se no tempo e no espaço.
É difícil saber se aquele homem que levava um estandarte com a cruz era um frade dominicano de rosto temível e olhar alucinado, ou se era aquele padre obeso com barba branca similar à que usava Rabi Moshe. Não lembro se esses homens chegaram a pé, ou se o que avançava na rua central (de Varsóvia), só me recordo ser uma coluna de quatro tanques, dentre os quais se escutavam gargalhadas e disparos. Não consigo lembrar sequer, se os indivíduos armados com garrotes e foices eram camponeses ou elegantes jovens nacionalistas, que de suas esbeltas mãos assassinas, esgrimiam pistolas modelo Browing.
Porém, sobre o que aconteceu naquela noite de Pessach em Lisboa, prefiro não falar. Apenas, para encerrar este conto, farei menção a um fato aparentemente insignificante e vulgar que aconteceu em frente à casa de meu tio Menachem. Tenho a sensação que, sempre que acontecia algum tumulto nas estreitas ruas da velha judiaria, meu tio pensava em fugir, talvez para refugiar-se na casa de algum freguês cristão. Depois que a tormenta tivesse passado -pensava ele- voltaria a seu lar.
Certa vez, Menachem tinha feito intermináveis comentários sobre o difícil momento que atravessava a congregação. Mas, por sua parte, ele jamais teria abandonado sua modesta oficina de costura, seu manequim, suas tesouras, seus tecidos, suas gavetas com linhas e agulhas e alfinetes de todos os tipos e tamanhos. Jamais deixaria seus ornamentos nem os cinco ternos, deixados por ricos fregueses, para conserto.
Minha irmã e eu continuávamos no porão de sua casa. Perguntava-nos: por que diabos tio Menachem não falou a sua irmã, nossa mãe, que as crianças não poderiam ficar na sua casa?
Mas, nada adiantava agora. Nós dois estávamos ali e nossos pais já tinham retornado a casa. Do porão, espiávamos tudo. Menachem estava nervoso. Passeava de um lugar a outro e falava sozinho sem mexer os lábios. Ele continuava entoando melodias, balançando sua cabeça. Segurava seu livro de orações. Sentava. Levantava. Subia até o porão e nos fazia gestos para que ficássemos em silêncio.
De repente, a porta tremeu. Com as fortes pancadas, esta frágil entrada de madeira iria cair completamente. Antes de ceder, com um impulso súbito, tio Menachem correu ao encontro dos arrombadores. Era melhor enfrentá-los na rua que dentro de casa. Ele levantava seus magros braços em sinal de redenção e misericórdia. Ele suplicava… ajoelhava-se… chorava. Quando sentia que um dos carrascos iria entrar, voltava a implorar piedade. Nunca os olhos de Menachem lembravam tanto os olhos de um ratinho. Era o semblante de um ratinho amedrontado, encurralado, preso numa armadilha.
No entanto, sua atitude não foi de covardia e sim de heroísmo. Não parecia um camundongo assustado e, sim, um corajoso leão que, mesmo sabendo que seria pego, lutava contra o inimigo tentando salvar sua vida e a dos seus filhotes sobrinhos.
Todos os esforços foram insuficientes. Dom Menachem, o alfaiate de Lisboa, não resistiu. Recebeu o batismo de um frade dominicano, que esgrimia um crucifixo com feroz fanatismo. Era como se o crucifico se converte-se subitamente num pesado martelo pronto a esmagar sua cabeça.
E, desde aquele mal fadado dia, Dom Menachem converteu-se, pela força da espada em Dom Jerônimo de Lisboa, pois este foi seu nome de batismo. Passado o tempo, sua veleta-catavento, também deixava a judiaria, para brilhar no teto vermelho de uma das casas construídas em frente à “Praça do Mercado”.
Pela janela da nova casa, ainda é possível ver Dom Menachem, oh! Perdão, Dom Jerônimo de Lisboa, sentado na sua modesta oficina de costura, trabalhando com velocidade, entoando aquelas velhas “ladainhas” que, antigamente, costumava cantar.
Bastante envelhecido, mas sempre com seu penetrante e alegre olhar de criança, o alfaiate continuava sua vida. E, quando passava Rabi Moshe, olhando-o com certo ar de desprezo, – pois ele não se santificou em Nome de D´us – o alfaiate português retribuía a saudação com um olhar de arrependimento e cumplicidade.
Dom Menachem, meu querido tio, viveu como um símbolo durante várias gerações na bela cidade de Lisboa. A conversão forçada e o batismo de 1497, imposto pelos monarcas lusitanos, eram uma parte inseparável de uma triste realidade. Esta política discriminatória, intolerante, sistemática e brutal, ainda renascerá posteriormente de uma forma muito mais cruel com tormentos aplicados pela misericordiosa “Santa Inquisição”.