O amor não correspondido de Shmuel Y. Agnon

Durante meu curso de guia turístico em Israel, tive a oportunidade de visitar uma antiga residência localizada na rua Shimon Rokah 2, no bairro de Newe Tzedek. Hoje, o endereço preserva numerosas histórias de personalidades importantes do Estado de Israel. A casa foi reformada e abriga uma galeria de arte frequentada por turistas e israelenses. A seguir, contaremos uma dessas curiosas histórias.

Um amor não correspondido é um sentimento avassalador para qualquer coração. O coração dilacerado e a paixão pelas letras fornecem excelente matéria prima aos escritores; principalmente quando eles mesmos protagonizam a narrativa.

O judeu Shelomo Aboulafia (1865-1908), professor de hebraico e árabe, membro da colônia agrícola Rishon Le-Tzion; encantava a todos pelos seus modos refinados, pelas suas roupas caprichadas e por sua linguagem sofisticada e precisa. Não por acaso, todas suas alunas o respeitavam, e uma delas, a estudante Rivka Freiman, acabou apaixonada perdidamente por ele. Mesmo havendo uma enorme diferença de idade, o relacionamento entre mestre e aluna amadureceu, ambos se casaram e viveram em Newe Tzedek, localizado entre Yafo e Achuzat Bait, a futura cidade de Tel Aviv.

No ano 1908, Shelomo Aboulafia morreu prematuramente aos 44 anos. A jovem viúva Rivka ficou sem suficientes meios de sustento. Assim sendo, decidiu alugar rapidamente um dos quartos da ampla casa na rua Shimon Rokah a um jovem imigrante de 20 anos de nome Shmuel Yosef Czaczkes (1888-1970), oriundo do vilarejo polonês de Buchach na Galícia. O rapaz criado no ambiente do schtetel era inocente e jamais havia tido qualquer experiência romântica com mulheres.

De uma das janelas do quarto de Czaczkes; na casa dos Aboulafia em Newe Tzedek; era possível ver o interior da casa de Aaron Shlush, o patriarca de uma família judia originaria da Síria, estabelecida ali em 1883 com outras 50 famílias judias.

Certo dia, Czeczkes avistou desde a janela de seu quarto, uma moça bonita com vestido bordado, desfilando com elegância pelos ambientes da casa em frente. A partir daí, o jovem imigrante começou a espiar a janela dos Shlush com maior frequência, até que seus olhares se cruzaram.

Astuto e experiente, Aaron Shlush descobriu o motivo pelo qual sua neta ficava horas e horas à janela. Sem hesitar um minuto, decidiu chamar o jovem para uma rápida conversa. Não precisou de uma fala muito longa para avaliar as intenções do jovem, um rapaz inexperiente e de entendimento precário em questões da vida. Mesmo com sentimento de dor, o avô aconselhou sua neta a procurar um outro candidato para iniciar um relacionamento sério.

O coração de Shmuel Czaczkes sofreu um duro golpe. Nas tardes quentes, ao voltar de seu trabalho no “Misrad Ha-Eretz-israeli” (Escritório da Terra de Israel), um órgão destinado à compra e registro de terras; ficava durante horas no terraço do quarto sofrendo de amor, enquanto a neta de Shlush (cujo nome desconhecemos), passeava graciosamente pelos ambientes da casa. Afinal, ela estava perto, mas ao mesmo tempo, longe de sua alma.

Talvez como forma de fuga da realidade, Shmuel Czaczkes sentou-se à mesa de seu quarto e começou a escrever. A sua narrativa fluía facilmente, abordando a história de um amor ardente e fugido, quase proibido, cercado de tristeza, melancolia e incompreensão. O breve texto intitulado “Agunot” (Mulher abandonada), Czaczkes entregou ao escritor e editor Simcha Ben Tzion, (Simcha Alter Gutman 1870-1932) para que emita sua opinião. Naquele tempo, Czaczkes trabalhava como secretário particular do escritor Simcha Ben Tzion.

Simcha Alter Gutman era pai do celebre artista e escultor Nahum Gutman. Simcha decidiu publicar o primeiro texto de Shmuel Czaczkes em sua revista literária, mas pediu para que não assinasse o texto como Czaczkes, pois seu sobrenome era de difícil pronúncia e poderia afastar os potenciais leitores. Pediu então para buscar um nome mais literário e atrativo. Nascia assim Shmuel Yosef Agnon.

O nome escolhido foi “Agnon”, recortado do título da obra “Agunot”. Naturalmente, o romance de Agnon teve enorme sucesso, sendo lido não apenas pelos críticos literários como também por leitores e amantes da literatura. Não havia pessoa em Tel Aviv, minimamente interessada em cultura, que não tivesse lido “Agunot”.

Passados alguns anos, Shmuel Y. Agnon escreveu “Shvuat Emunim” (Juramento), um segundo romance em que ele narra a paixão de um professor por uma de suas alunas. É bem provável que o perfil do professor seja o de Shelomo Aboulafia, a figura citada no início desta matéria. Aboulafia teria sido a fonte de inspiração para criar Yaacov Rechnitz, a personagem central dessa obra.

O tempo foi passando e o jovem Agnon não ficou muito tempo em Newe Tzedek. Entre os anos 1913-1924 viveu na Alemanha para finalmente retornar à Palestina do Mandato Britânico e estabelecer-se no bairro de Talpiot em Jerusalém. Sua antiga casa, construída em 1931 em estilo arquitetônico Bauhaus, é hoje denominada “Beit Agnon” (Casa Agnon). Tal como aconteceu com o escritor nacional Chaim Nachman Bialik, também sua residência virou museu, frequentado principalmente pelo público israelense.

Como se resolveu a vida sentimental de Shmuel Y. Czaczkes ou Agnon? Em 1913, enquanto vivia na Alemanha, Shmuel Y. Agnon conheceu sua futura esposa Ester Marx (1889-1973), filha de judeus alemães. Foi um período de extrema felicidade para o casal que teve dois filhos: Emuna e Shalom.

Na terra de Goethe, o escritor Shai Agnon manteve contatos com críticos literários, eruditos, intelectuais judeus e ativistas sionistas. Mergulhou profundamente na literatura alemã e francesa, aprimorando seus conhecimentos na área judaica, colecionando livros e guardando manuscritos judaicos raros.

Os anos na Alemanha se caracterizaram por uma certa estabilidade financeira e foram particularmente produtivos para o casal. Agnon, confortavelmente instalado, dedicava seu tempo para ler e escrever. Aproveitando sua estadia, associou-se a um círculo de escritores judeus em Hamburgo e, quando seus contos e histórias começaram a ser traduzidos para o alemão, adquiriu certa fama.

Sabemos que a saída de Agnon da Alemanha foi ocasionada por uma tragédia. Um devastador incêndio ocorrido em 1924 pôs um fim abrupto a esse período prolífico. O fogo destruiu sua casa como também a maioria de seus livros e manuscritos.

Shmuel Y. Agnon ficou eternizado nas letras judaicas como Shai Agnon. Ele criou e caracterizou suas personagens através de diferentes fontes inspiradoras, quase todas figuras de carne e osso que o escritor encontrou no percurso de sua vida, alguns inclusive aparecem com seus próprios nomes.

Para perplexidade dos estudiosos, a família Shlush, tida como uma das famílias fundadoras de Yafo, não aparece sequer uma vez nos contos de Shai Agnon. Talvez tenha sido uma forma do escritor declarar publicamente que assim como eles não o aceitaram na família, não há motivo para introduzi-los nas obras. Ou quem sabe o motivo da ausência seja abafar a ferida causada por uma paixão ardente; um amor não correspondido, dilacerado e esquecido nos intransponíveis sulcos da memória.

Bibliografía

 Bernstein, Marc, Midrah and Marginality: The Agunot of S. Y. Agnon and Devorah Baron. Hebrew Studies 42 (2001), pags. 7-58.

Reguev, Ofer, Falling in Love with the Land of Israel (Lehitahev Be-Eretz Israel: Tiulim Beikvot Ahavot Guedolot Be-Eretz Israel). Kinneret, Zmora-Bitan, Dvir Publishing House 2008, pág. 52.

Rozenchan, Nancy, S.Y. Agnon: Do folclore a ficção. Cadernos de Língua e Literatura Hebraica, No. 16. Universidade de São Paulo, 2016. ISSN 2317-8051. Ver também:

https://agnonhouse.org.il/wp-content/uploads/2016/07/170539-Texto-do-artigo-438774-1-10-20201005.pdf

Shaked, Gershon, Shmuel Yosef Agnon: A Revolucionary Traditionalist. New York University Press, 1989.

Scholem, Gershom, Reflections on S. Y. Agnon. Commentary, December 1967.Ver: https://www.commentary.org/articles/gershom-scholem/reflections-on-s-y-agnon/