O inimigo cordial – D. Pedro II e Gobinau

O curioso encontro entre o Conde de Gobineau, autor do “Ensaio sobre a Desigualdade das raças humanas” (1853) que passou à história como teórico do racismo, e D. Pedro II, o Imperador do Brasil; é um dos maiores enigmas do século 19. Uma surpreendente amizade uniu esses dois homens tão diferentes, de ideias completamente opostas.

“Nós falamos de tudo e ainda de outras coisas, e nem sempre somos da mesma opinião. Quando a discussão torna-se acalorada, eu me desculpo, mas ele pede-me que continue. Ele [D. Pedro II] é muito mais liberal do que eu, também é sua necessidade…” registra Gobineau. Durante os 14 meses em que serviu à França no Brasil como diplomata (abril 1869 – maio 1870), o escritor antissemita e o monarca filosemita se encontravam duas a três vezes por semana. Discutiam ideias, a emancipação dos escravos, as migrações de trabalhadores para o Brasil, literatura, arte, religião, economia e política.

O imperador D. Pedro II era insaciável por informações sobre as novas correntes vindas da Europa. Trocam livros e presentes. O soberano brasileiro dá todas as marcas possíveis de simpatia e distinção, sem protocolo, ao visitante. Ambos se admiram, mas evitam atritos nas conversas. Apesar desses encontros que encantavam os dois, o francês permaneceu inabalável, achando insuportável a sua estada no Brasil. Eis um trecho de seus depoimentos em carta datada em 1869 a seu caro amigo Keller:

“os brasileiros parecem mais interessados na cultura do café que na cultura das artes…. e salvo o Imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros”. E continua: “Se o Imperador é um ariano puro, ou quase, os brasileiros, ao contrário, não passam de mulatos da mais baixa categoria, uma população com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo…”.

E depois o escritor francês é mais contundente nas suas colocações racistas:

“Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes de carnação são inúmeros, e tudo isto produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto”.

A correspondência de Gobineau é um manancial de informações precioso. A sociedade, a natureza, o dia-a-dia, as condições de vida, as festas populares e a vida da família imperial são descritas e esmiuçadas por um olhar implacável.

Paira ainda um grande interrogante a ser desvendado: Como foi possível que uma pessoa apaixonada pelo Judaísmo como D. Pedro II tenha como modelo o Conde de Gobineau, um nobre duvidoso, um racista de carteirinha e um crítico mordaz da sociedade brasileira e seus costumes?

A relação entre ambos teve apenas um caráter intelectual. Não havia, pois, uma amizade e sim fortes interesses culturais. Afinal, o Brasil Império não passava de um lugar distante da Europa; foco de luz para o mundo inteiro.

Avesso à política e às formalidades da Corte, D. Pedro II achou em Gobineau seu “interlocutor preferido”, pois com ele poderia falar de quase tudo: literatura, ciências, artes, economia, religião e inclusive política.

O fato de Gobineau ser um “inimigo cordial” dos brasileiros pouco importava ao Imperador do Brasil. Os frequentes encontros deixam claro que conceitos de “civilização e barbárie” podem caminhar juntos. D. Pedro II apreciava a cultura do Ministro da França. Certamente, nas tardes monótonas do palácio, ao lado do intelectual francês, o tempo voava e cada momento desses representava um testemunho inesperado e totalmente original.

Bibliografia

RAEDERS, Georges. Dom Pedro II e o Conde de Gobineau. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

RAEDERS, George, O inimigo cordial do Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra editora. São Paulo 1988.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil, 1ª reimpressão, São Paulo, Editora Companhia das Letras. 1995.

SOUZA, Ricardo Alexandre Santos de, Agassiz e Gobineau: As ciências contra o Brasil mestiço. Dissertação de Mestrado em História das Ciências e a Saúde – Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2008.