O Mickey de Horst Rosenthal (1915-1942)

Horst Rosenthal nasceu em 10 de agosto de 1915 em Breslau (Wroclaw), uma cidade da Silésia de 23.000 judeus. Em 1945, encerradas as deportações, restavam somete 200 judeus. Ali o rabino Seckel Isaac Frankel (1765-1835) criou o Judaísmo conservativo. Durante a Emancipação do século 19, Breslau representou um exemplo de simbiose judeu-alemã, o desejo de integração de duas culturas.

Entre 1920-1923, como resultado das dificuldades socioeconómicas surgidas após a Primeira Guerra, há em Breslau um forte recrudescimento do antissemitismo. Em 1933, ano da chegada de Hitler ao poder, morre Ernest Rosenthal, o pai de Horst. Imediatamente, o filho decide migrar a Paris, o paraíso artístico de promissores gravuristas, pintores e desenhistas. Em 03 de julho desse ano é aceito na França como refugiado político, com status migratório temporário. Alista-se na “Bannière d´Empire”, milícia ativa do movimento socialista francês. Distanciado de sua família, Horst é perseguido, conhecendo vários campos de detentos políticos.

É escassa a informação acerca da estadia de Rosenthal em Paris. Morava de aluguel na Rue de Clignancourt e depois na Rue Richomme; sempre produzindo desenhos. Como outros tantos artistas imigrantes na França, sem ter um diploma da “Escola de Belas Artes de Breslau”, se matriculou na Escola de Artes de Paris.

Horst pede asilo político em novembro de 1933, porém lhe foi negado em março de 1934. Ele recebe documentação com visto de refugiado político até dezembro de 1936 para fazer seus estudos. A Segunda Guerra traz uma verdadeira reviravolta na sua vida, sendo deportado aos campos de prisioneiros em Marolles, Dreux, e depois a Damigny, Alençon e Tance.

Em outubro de 1940 Horst Rosenthal chega a Camp de Gurs, lugar onde solicitará trabalhar na unidade 182, que atuava na área de entretenimentos com crianças judias confinadas ao campo. A sua passagem por Gurs irá desde 28/10/1940 até 25/08/1942. Logo terá ainda uma rápida estadia por Drancy e em 11/09/1942 chegará a Auschwitz-Birkenau, lugar em que será assassinado.

O Mickey de Rosenthal

Para sobreviver a Gurs Horst utilizará suas aptidões artísticas. Sua produção é considerada um ato de resistência. A escolha do Mickey foi premeditada e responde a motivações operativas, uma delas demostrar a contrariedade e a incongruência entre a dura rotina do campo de prisioneiros com a personalidade dócil e afável do ratinho americano.

Sem dúvida alguma, o uso do ícone Mickey Mouse contrasta com as trevas do governo Vichy, regime ditatorial que desrespeita direitos humanos, deporta e encarcera indiscriminadamente em campos insalubres.

Ao contrapor o ícone universal de Mickey com o mundo precário de Gurs, Horst Rosenthal incita a uma situação paradoxal, na qual o trauma vivido pelo ratinho permitirá colocar os holofotes na desumanidade e na ausência de liberdade do campo. Talvez Rosenthal desejasse construir um herói de qualidades sobrenaturais, segundo o célebre filósofo Nitzsche, um “Übermensch”. Porém, como veremos, o Mickey de Rosenthal está longe de ser um super-herói.

O ratinho de Disney representa a liberação artística. Ele é uma criatura que, criada num clima de liberdade, não veio até a Europa para questionar ou combater o mundo do judeu Rosenthal, pois Mickey é incapaz de mudar a terrível realidade do campo de Gurs.

É difícil entender o motivo pelo qual Rosenthal escolheu Mickey como sua personagem. Seria apenas para sua própria distração, ou talvez para ajudar a passar o tempo de outras pessoas encarceradas? Seria talvez uma estratégia perfeita encontrada pelo desenhista para distrair as crianças mantidas prisioneiras? Será que Rosenthal tinha planos de lançar estes desenhos do ratinho depois de libertado? Quiçá soubesse que seu destino final seria a morte, e, portanto, quis deixar algo para as futuras gerações?

Embora seja difícil responder a qualquer uma destas perguntas com os poucos dados de sua biografia, a última pergunta nos transmite um fio de esperança, porque suas obras artísticas guardam um tom inegavelmente positivo.

Mickey e o Nazismo

A pesquisadora indiana Shreya Chakrabarty acha que a aventura de Mickey em Gurs tem sua fonte no “Steamboat Willie” (1928), o primeiro curta-metragem de Mickey Mouse. Nela, o ratinho vai trabalhar em um barco e numa das paradas de abastecimento, a embarcação recolhe três animais (jumento, boi e pato), todos utilizados como instrumentos musicais de uma orquestra.

A ideia central apresentada é que Mickey os libertou da escravidão existente na fazenda, oferecendo-lhes uma nova vida de sons. Para ela, em “Steamboat Willie” existem dois tipos de espaços: a fazenda, que ilustra a realidade do campo de concentração e o barco que simboliza a liberdade que Mickey e os animais poderão futuramente usufruir. Mickey os liberta de um trauma para encaminha-los a uma vida plena e feliz. Aqui o ratinho é tido como uma figura inconformada de abdicar de seus valores. Desta forma, talvez fique mais fácil entender porque Rosenthal escolheu Mickey como seu herói.

Há ainda outro significado na inserção de Mickey Mouse. A ideologia nazista enxerga o ratinho americano como uma figura medonha e nociva; e isto aparece no jornal alemão “Pomerania” (1930): “Mickey Mouse representa o ideal mais vil e miserável que existe… trata-se de um animal sujo, coberto de vermes, a maior bactéria do reino animal…, assim, ele jamais poderá ser considerado modelo ideal de animal… Vão embora judeus, vocês brutalizam as pessoas! Abaixo Mickey Mouse! Usem a cruz suástica!”. Para a Alemanha os judeus encarnam ratos, vermes, criaturas subversivas, seres errantes, eternos inimigos da sociedade e da cultura.

A capa do caderno “Mickey no Campo de Gurs” de Rosenthal possui quatro componentes: a figura do próprio Mickey, os barracões do campo, o arame farpado e a frase (parte inferior) em que é denunciada a violação dos direitos autorais. Todos estes componentes delimitam a HQ em tempo e espaço.

Mickey Mouse se encontra feliz caminhando quando é preso. Pego sem seus documentos de identificação é transportado ao campo de concentração de Gurs, lá ficará vagando entre os prisioneiros até participar de atividades rotineiras.

Certamente, estamos diante de dois mundos diametralmente opostos: o primeiro construído através da consciência imaginária de Mickey, e o segundo é o nível do campo francês, gerando um mundo totalmente real. O encontro destes mundos não é questionado por nenhum dos personagens que Mickey vai encontrando em seu caminho, são mundos bem desconexos e incompatíveis.

Na HQs de Rosenthal, Mickey aparece como um “outsider”, um alienígena, alguém que pousou de outra galáxia e não se encaixa na complexa realidade. Mesmo sendo um ratinho doméstico, será julgado com os mesmos parâmetros dos demais prisioneiros do campo.

Como prisioneiro, Mickey não se enxerga como tal, sequer entende o contexto de sua prisão. Ele não passa de um animalzinho perplexo, que não fica horrorizado com o que presencia a seu redor. Desgarrado da realidade, o ratinho aparece como uma figura dócil, inocente e até ingênua.

Bibliografia

Chakrabarty, Shreya, Mickey au Camp de Gurs: A Glimpse into the Concentration Camp through the Eyes of a Holocaust Victim. THE CREATIVE LAUNCHER: An International, Open Access, Peer Reviewed. (E-Journal in English), págs. 64-71.

Kotek, Joël et Pasamonik, Didier, Mickey à Gurs: Les carnets de dessins de Horst Rosenthal. Ver: http://www.ajcf.fr

Mickey au Camp de Gurs. Memorial de la Shoah. Paris, 2014.

Prado, Tomás, Mickey Mouse em las trincheras. Artigo publicado em Barcelona 14/10/2018. http://www.larazon.es/cultura/mickey-mouse-en-las-trincheras-LF20164816

Wedderburn, Alister, Cartooning the Camp: Aesthetic Interruption and the Limits of Political possibility. First publication: October 1st, 2018, (Research article). MILLENIUM: JOURNAL OF INTERNATIONAL STUDIES.  In: http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0305829818799884