O “Revisionismo histórico” da Inquisição

Nos últimos anos percebi que o revisionismo histórico está de moda. Desta vez ele voltou com força total. Todo e qualquer tema que envolve o povo judeu está sujeito ao questionamento, sendo até legítimo duvidar de sua existência. Para nós, historiadores que desencavamos e analisamos documentos, é normal dar voz aos personagens da época, sem inventar fatos.

O ponto ao qual quero chegar é simples: passar do viés revisionista para o negacionista é uma mera questão de tempo. Afinal, já assistimos a este filme quando ouvimos opiniões sobre o “Holocausto nazista”, perpetrado por Adolf Hitler e seus carrascos entre 1933-1945. Há dez anos, quando explodiu uma nova onda de revisionismo da Shoá, me senti na obrigação de replicar a este tipo de argumentações em um artigo intitulado “Revisão ou negação: O mito dos seis milhões”, MORASHÁ, ano XVIII, abril 2011, págs. 55-62.

Agora parece que chegou o momento de combater argumentações que visam desacreditar a existência dos cristãos novos judaizantes na luta contra o Santo Ofício da Inquisição em terras de Portugal. Há algum tempo li com atenção declarações do Padre João Dantas, Doutor em Teologia, dizendo:

“A Inquisição é um tema utilizado nas aulas de História para denigrir a imagem da Santa Igreja católica. Há fatos que não são levados em conta na apresentação do tema, principalmente no meio acadêmico. Faz-se necessário entender o contexto histórico para distinguir com total clareza as esferas de ação religiosa e do poder civil durante o processo de Inquisição”.

O tema da Inquisição não deve jamais ser visto como um pretexto para denigrir à imagem da Santa Igreja católica. No entanto, foi ela a responsável por atrocidades que jamais poderão ser esquecidas. A Igreja católica com sua obsessão no combate às diversas heresias lutou para permitir o estabelecimento das Inquisições na Europa. Isto é fato. Na sua vontade de atender ao slogan cristão “Uma grey, um pastor”, milhares de pessoas foram brutalmente torturadas e mortas. Tudo isto aconteceu durante um período de mais de 350 anos em “nome da fé cristã”.

Sabemos que o homem medieval respirava religiosidade e não aceitava com facilidade outras crenças. A pesquisa leva tudo em conta. Ela está ali também para nos mostrar o lado mais obscuro do Cristianismo. A documentação desencavada, estudada e publicada a cada dia não foge do contexto histórico. Basta ler processos inquisitoriais para tirar conclusões. O passado deve ser lembrado apenas para não cometermos os mesmos erros num futuro.

Todos nós sabemos que para criar a Inquisição houve um “conluio” entre a ação do Papado e o poder civil dos Reis. Ambos os poderes foram centrais para colocar em funcionamento um sistema de repressão aos grupos heréticos. Tentar negar as atrocidades desta instituição cristã ou minimizar sua atuação seria como negar a existência de guetos e campos de concentração e extermínio na Europa durante o Nazismo.

Em todo caso, prefiro aceitar as desculpas proferidas, em 2000, pelo Papa João Paulo II quando pela primeira vez, a Igreja pedia perdão pelos “erros cometidos a serviço da verdade por meio do uso de métodos que não tem relação com a palavra do Senhor”.

A forma de trabalho da Inquisição

A forma de trabalhar da Inquisição deve ser criticada, pois ela é totalmente ilícita. A abertura solene dos trabalhos da Inquisição era oficializada com um sermão público em dia marcado, inteiramente dedicado à fé cristã, ao seu significado e à sua defesa; exortando o povo a extirpar as heresias da sociedade. O sermão encerrava pedindo aos ouvintes ajuda na coleta de denúncias. Eis um trecho bastante emblemático tirado da própria linguagem inquisitorial: “Se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor”.

Aquelas pessoas que se entregassem espontaneamente durante o “Tempo da Graça” não seriam acusados ou denunciados, nem citados para depor. Já os delatores serão ouvidos na Justiça dentro do prazo previsto, suas denúncias registradas, bem como o nome completo do denunciado e das testemunhas, tudo perfeitamente anotado na agenda do inquisidor. Findado o “Tempo do Perdão”, o inquisidor consultaria sua agenda para iniciar à investigação daqueles que praticaram crimes graves contra a fé cristã.

Da mesma forma também se procedia em relação aos processos de devassa investigados pelos tribunais seculares. A abertura dos processos poderia ocorrer por acusação, (consistia em acusar outra pessoa de heresia e manifestar seu desejo de provar sua acusação); o processo por denúncia ocorria quando um delator denunciava alguém de heresia ou de protecionismo à heresia, dizendo que o faz para não ser excomungado. Finalmente, existia a abertura de um processo por investigação, algo que surgia quando não havia confissão espontânea, nem tampouco acusação ou delação, e sim boatos, numa determinada cidade ou região.

O processo inquisitorial se desenvolvia com seus respectivos interrogatórios. Esses interrogatórios estavam divididos em sessões (genealogia, gênero), e representavam o ponto mais alto do processo. É possível achar 10 truques dos hereges para responder sem confessar. A primeira consistia em responder de maneira ambígua; a segunda era responder acrescentando uma condição; o terceiro truque era inverter a pergunta; o quarto era se fingir de surpreso; o quinto mudava as palavras da pergunta; o sexto truque consistia numa deturpação proposital das palavras; no sétimo tratava de dar uma autojustificativa; no oitavo truque o réu interrogado fingia uma súbita debilidade física; o nono era simular idiotice ou demência e finalmente no décimo truque o acusado demonstrava ares de santidade.

Em um processo forjado que servia apenas ao lado da Inquisição, obter à força uma confissão era o objetivo do inquisidor: o suspeito ou a suspeita “há de ser continuamente interrogado(a) a respeito dos depoimentos contra ele(a) prestados, para ver se retorna às mesmas respostas ou não”. Os réus confessos eram acolhidos de volta à Igreja e condenados à prisão perpétua. E todos aqueles que não confessavam “eram entregues ao braço secular para a pena de morte” (linguagem inquisitorial).

Em contrapartida, 10 eram também os truques do inquisidor para neutralizar as estratégias dos hereges, a saber: desfazer as dúvidas e os artifícios; pressionar o suspeito que acabou de ser capturado e não queria confessar fazendo-o entender que o inquisidor já sabe de tudo; ler os depoimentos das testemunhas para confundi-lo e convencê-lo; o próprio inquisidor depõe contra o herege; por vezes o inquisidor fingia que se ausentaria por muito tempo para que o réu acreditasse que ficará preso por um longo espaço de tempo; ameaçar o réu que poderia ser levado à tortura para arrancar-lhe a confissão.

A práxis inquisitorial buscava averiguar a veracidade das delações por acusação como forma de se obter o nome do denunciado. A denúncia formulada era conservada em segredo devendo ser feita contra quaisquer culpados, inclusive contra os próprios familiares. Pais denunciavam filhos e filhos entregavam pais. Posteriormente, quando a confissão fosse espontânea, o processo aberto se dava por investigação; entretanto, o objetivo de ambos os procedimentos inquisitoriais visava forjar uma confissão, atribuindo ao interrogatório o ponto máximo e o ápice do processo cujas formas de direcionamento e perguntas revelavam a artificialidade em que se operava a confissão, com o fim de coroar o procedimento mediante a garantia da condenação. A tortura ainda era a forma indicada em caso de resistência na negativa do delito, “para que seja exortada a confissão do crime”, em caso de suspeita “de uma confissão incompleta ou quando a confissão era incongruente” (linguagem inquisitorial).

Dentre as diversas causas que impediam a rapidez de um processo e a promulgação da sentença estavam o grande número de testemunhas, a participação da defesa, a eventual saída do inquisidor, a apelação e a fuga do acusado. Neste contexto, a presença da defesa era uma ameaça ao processo, pois a confissão seria suficiente para a condenação, sendo de total inutilidade para a decisão do processo, sua atuação consistia em uma farsa, pois “este não podia examinar o processo, era escolhido pelos inquisidores, sendo um funcionário do Tribunal”, e também lhe era vedado o acesso aos nomes das testemunhas, isto sob juramento de sigilo, bem como não poderia aceitar a causa se fosse um caso injusto.

Destaque especial era dado à sentença no procedimento inquisitorial, como finalidade máxima do processo, ainda que para tanto fosse necessário neutralizar a atuação da defesa, já que a verdade alcançada pela confissão nada mais poderia alterar o provimento final condenatório.

Os processos da Inquisição terminavam sempre de uma das maneiras mencionadas a seguir: absolvição; expiação ou purgação canônica; submissão a interrogatórios e tormentos; como suspeito de heresia leve; suspeito de heresia forte; suspeito de heresia grave; como difamado e suspeito; que confessou e fez penitência e não era relapso; que confessou e se purificou, mas é relapso; que confessou e não se purificou e não é relapso; que confessou e não se purificou, mas é relapso; aquele que não confessou, mas foi reconhecido como herege por testemunhas idôneas, e, finalmente, quem foi reconhecido como herege, mas fugiu ou se recusou a comparecer à justiça.

Baseado no “Manual dos Inquisidores”, o interrogatório do réu ocorreria quando este não confessasse durante o processo, então seria desde logo submetido à tortura, momento em que as instruções para o procedimento eram detalhadas, com vistas à confissão, que obtida seria declarada em sentença.

Ainda, em relação ao interrogatório, o Tribunal do Santo Ofício destacava a regulamentação da tortura e os critérios pelos quais esta seria aplicada, quando então o réu interrogado deveria prestar juramento de dizer a verdade. Todas as regras eram matemática e milimetricamente previstas. O fato era que em quaisquer situações acima descritas, o objetivo final recairia na única possiblidade: a confissão. Resumindo: O valor da confissão é absoluto quando obtido sobre ameaça de tortura ou através da apresentação dos instrumentos de tortura.

Para os inquisidores a confissão do réu representava tudo. Em termos teológicos, simbolizava a aceitação dos pecados por parte do pecador e a possiblidade de purificação em termos psicológicos, significava o triunfo da vontade sobre o prisioneiro, e a admissão dele de sua própria impotência.

O “Manual dos Inquisidores” elenca cinco maneiras para identificar o herege, classificando-o como um réu penitente e não relapso, um penitente relapso, um impenitente e não relapso, um impenitente relapso e o herege convencido de heresia que nunca confessou para cujos casos a sentença seria sempre condenatória. Delações, interrogatórios, torturas e confissões, eis os principais fundamentos que caracterizavam as sentenças nos processos inquisitoriais.

Na terceira parte do “Manual dos Inquisidores” (questões referentes à prática do Santo Ofício), deve-se destacar o item F – o interrogatório – a tortura – que previa sete regras:

  1. Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas;
  2. O suspeito que só tenha uma testemunha contra ele;
  3. O suspeito contra quem se conseguiu reunir um ou vários indícios graves;
  4. Quem tiver um único depoimento contra si e indícios veementes ou violentos;
  5. Que pesarem vários indícios veementes ou violentos;
  6. Quem tiver, além de tudo, contra si, o depoimento de uma testemunha;
  7. Quem tiver apenas uma difamação, ou uma única testemunha, ou, ainda, um único indício, não será torturado.

As várias testemunhas eram obrigadas a depor sob juramento. O “Manual dos Inquisidores” desvenda um sistema de poder 100% autoritário Era um discurso ideológico de dominação do interesse real ou escuso do autor à custa do interesse dos outros. O inquisidor se apresentava como um enviado de Deus, investido da autoridade papal. Os acusados eram submetidos a todo tipo de pressão, coação e tortura psicológica ou corporal. Obtida mediante tortura, a confissão prevalecia ainda que divergente da prova testemunhal. Importante ainda dizer que a delação era central nos processos inquisitórios e por meio dela sabia-se quem era herege ou desviante da fé católica e dava-se origem ao processo por denúncia.

Mulheres na “Casa do Tormento”

Os revisionistas da Inquisição defendem não apenas a validade do processo, mas também insinuam que não houve pressões ou confissões tiradas sobre tortura. Para eles houve poucos casos de tormentos e estes eram o único caminho para obter uma confissão completa do réu. Justificar tormentos, mesmo nos séculos 15, 16 ou 17 é algo inaceitável.

Homes e mulheres eram acusados de judaizar (viver na Lei de Moisés), tendo suas confissões extraídas através de sessões de tormentos. A seguir, mencionarei alguns casos exclusivamente de mulheres cristãs novas, levadas a terríveis sessões de tortura na “Casa do Tormento”.

Muitas rés, no afã de proteger amigos e familiares, postergavam suas confissões ou mesmo se negavam a fazê-la, tendo uma postura vista pelos inquisidores como diminuta. Outras tantas agiam com clara dissimulação na crença de poderem sair vitoriosas no jogo de poder das relações entre inquiridor e réu, mesmo numa total desvantagem diante da situação, e, por essas atitudes, algumas foram levadas a tormento. Outras acabaram na “Casa do Tormento” mesmo não tendo o que confessar, e em meio à tortura, conseguirem provar que seu silêncio falava a verdade. Entre as diversas mulheres, em especial cristãs-novas, levadas à “Casa do Tormento”, chamaram-nos a atenção os quatro casos seguintes:

  1. Isabel de Aguiar, mulher de 35 anos, casada com Lourenço Alberto, reconciliado pelo Santo Ofício, e filha do recebedor das rendas do duque d’Aveiro.
  2. Isabel de Fontes, moça solteira de 20 anos, filha de Bárbara de Lena e Manuel de Fontes.
  3. Bárbara de Lena, mulher de 42 anos de idade (mãe da anterior), era casada com o advogado cristão-novo Manuel de Fontes.
  4. Madalena Pereira, moça de 18 anos, também solteira, filha de Domingos Fernandez, cristão-velho, carpinteiro, e de Ana Barros, cristã-nova reconciliada.

Todas elas tinham “sangue cristão-novo” (mácula no sangue) e foram acusadas de judaizarem. As três primeiras foram presas em 1629 e a quarta em 1631, numa época em que o Tribunal já tinha acumulado vários processos entre os judaizantes de Leiria. Mas, como não colaboraram com a Mesa Inquisitorial, a ponto de satisfazerem os funcionários do Tribunal, foram levadas à “Casa do Tormento”. Que aconteceu ali naquele temido lugar?

Isabel de Aguiar, Isabel de Fontes e Bárbara foram postas sentadas no banquinho, e atadas as suas mãos às cordas. Nesses casos, o tormento restringiu-se às fases preliminares. A mesma sorte não teve Madalena Pereira, pois, além de amarrada às cordas, foi “torcida”, sofreu um “trato experto” e foi novamente “levantada”. Tormento muito duro, principalmente para uma jovem de apenas 18 anos. O dito “trato” consistia em levantar o réu a certa altura na polé e, dali, despencá-lo, o que provocava o descolamento dos membros.

A jovem Madalena foi, pela segunda vez, levantada na polé. Contudo, essa prática de levantar o réu depois de um “trato experto” era usada para amedrontá-lo e, no pavor de ser novamente despencado, vir a confessar. Mas ela suportou o tormento sem mais confessar, mesmo sendo admoestada a cada momento pelos inquisidores. Tudo isto porque Madalena negou-se a denunciar a mãe que, meses antes, havia saído em “Auto de fé” como suposta cúmplice na heresia judaizante.

No entanto, as quatro mulheres citadas não só sofreram tortura física, como no cumprimento do ato, foram despidas de suas vestes. No processo de Madalena, o notário chega a registrar que a “ré foi despojada dos vestidos sem prejuízo de sua honestidade” (linguagem do processo). Ficaram nuas? Os relatos não chegam a afirmar a nudez, mas somos levados a crer nesta possibilidade. Ao expressar a preocupação de que dita ré não teve prejuízo de sua honestidade ao ser despida, o notário pode tanto ter-se referido à questão da virgindade da moça, quanto ao pudor do ato em si.

Os dicionaristas Raphael Bluteau e Moraes Silva entendem a palavra honestidade tanto como castidade quanto pudor. Para Bluteau, a palavra significa “pudor, castidade, decência”, sendo honesto sinônimo de casto e pudico. Já Moraes Silva amplia o significado da palavra, dando maior ênfase à questão da castidade. Para ele “honestidade” é “castidade, modéstia, continência no olhar e falar e pudor”. Assim, não seria estranho ouvir que a honestidade da ré estava mantida, ou seja, sua “virgindade”, pelo fato de ela estar despida, mas não tendo sido molestada. Caso semelhante é relatado por Cecil Roth, ao citar um caso ocorrido na Inquisição de Toledo entre 1567 e 1569. Segundo o autor, a ré, Elvira del Campo, acusada de Judaísmo, ao ser despida “pedia suplicadamente que a sua nudez fosse coberta.”

Independente de estarem nuas ou não, as rés citadas passaram pelo constrangimento de ficarem despidas de suas vestes, (em parte ou totalmente), frente a homens que participaram do ato: inquisidores, notários, médicos, cirurgiões e sacerdotes, entre outros. Estas mulheres sofreram não apenas tortura física e psicológica, mas também a moral. Elas tiveram sua honra atingida enquanto mulheres, sendo duas delas donzelas (moças).

No que tange ao tratamento dado a essas mulheres no momento do tormento, não existe nada que o recomende ou o condene no “Regimento de 1613”, em vigor na época, ou mesmo no “Regimento do Conselho Geral”. Contudo, rigorosos seguidores das normas regimentares, os inquisidores não agiam normalmente por impulso ou gosto próprio. Havia uma prática a ser seguida, se não estivesse escrita no “Regimento”, poderia estar nos “Estilos”. A longevidade e a ação cada vez mais criteriosa do Santo Ofício faziam surgir, paralelamente aos Regimentos, um grande número de “Estilos”, ou seja, atos de jurisprudência que atualizavam as leis gerais, em face da rica realidade com que se deparava o Tribunal.

Vale a pena destacar que era preocupação do Tribunal da Inquisição resguardar as mulheres, principalmente donzelas (moças jovens), da possibilidade de serem molestadas sexualmente. Assim, no “Regimento de 1613”, há partes específicas sobre o lidar com elas. O item XVII do Título IV – “Do modo de proceder, e ordem que se há de ter, com os culpados no crime de heresia e apostasia” – rezava que “Nenhuma mulher moça se porá só no cárcere em casa apartada e quando parecer necessário, e para sua salvação, apartar-se da companhia das outras, parecendo aos Inquisidores que convém assim, e que não há outro melhor meio, lhe darão uma mulher de bem, e de confiança, com esteja em sua companhia, e olhe por ela e venha com ela, quando lhe fizerem sessões e audiências na Mesa, e torne com ela, de maneira que se conserve a honestidade de sua pessoa e se faça o que convém para sua salvação. E todas as vezes que o Alcaide vier com alguma mulher à Mesa, virá também com ele um guarda do cárcere; e as prisões que os Inquisidores mandarem fazer trabalhos que se façam com toda a honestidade, e o meirinho e mais Oficiais da Santa Inquisição terão disso especial cuidado e diligências” (linguagem inquisitorial).

Tais cuidados se repetem no Título VI, item XII – “A decência com que se hão de fazer as prisões das mulheres” – e o Título X, item IV, ordenava que as mulheres que chegassem presas aos cárceres fossem recebidas pela mulher do alcaide. Precauções mais do que necessárias, visto a fragilidade em que ficavam expostas as presas nos “Estaus”, o prédio da Inquisição em Lisboa. Contudo, se essas normas eram suficientes para manter a honestidade das mulheres nos cárceres do Santo Ofício, realmente não sabemos. Assim, o que buscamos com essas explicações é ressaltar que não era prática da Inquisição atentar contra a moral das mulheres. Dessa forma, a explicação plausível para a situação vivida pelas rés no tormento dá-se pelo próprio rigor no cumprimento dos autos. No entanto, acreditamos que da teoria à prática devia haver uma boa distância.

Em situações pontuais, os excessos de roupas que as mulheres usavam eram vistos pelos executores do tormento como possíveis de atrapalharem a sua realização, daí a necessidade de as mulheres serem despidas. Fato esse que fica notório no processo sofrido por Mariana Soares, meia cristã-nova, de 18 anos de idade, moradora de Lisboa, processada por Judaísmo em 1683. Nele consta que “desposada a Ree dos vestidos que lhe podiam impedir a execução do tormento de recomendação do Conselho Geral foi lançada ao potro.” Contudo, não era sempre que tal fato ocorria, ou, pelo menos, não era sempre relatado nos processos. Além disso, também os homens tinham em certas ocasiões suas vestimentas retiradas para a realização do tormento. Provavelmente, homens e mulheres, ao serem levados ao tormento, tinham a parte superior de suas vestes retiradas, pois podiam atrapalhar a execução do mesmo; porém, não ficavam com suas “vergonhas” expostas. Lembremos ainda que duas das quatro rés eram menores de idade, assim como a jovem Mariana, processada cinco décadas após, pois a maioridade, na época, só era alcançada aos 25 anos.

O sofrimento das vítimas judaizantes aqui reveladas são exemplos da violência característica do aparelho inquisitorial em que a noção de remissão (purgação) dos pecados norteava suas ações. A Inquisição, como um aparelho repressivo e punitivo, tomava a ideia de dor corporal como parte constitutiva da própria pena. Tocar, manipular e castigar o corpo era prerrogativa da atuação da justiça, encarnada pelo ofício do carrasco, anatomista imediato do sofrimento.

Daí, as punições tão duras fisicamente, aos olhos de hoje, quando a privação da liberdade substitui o castigo físico, especialmente no Ocidente. Muito há ainda a ser revelado acerca das mulheres nas fontes do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal.

Os estudos inquisitoriais avançam gradualmente na questão da prática religiosa da mulher em meio à comunidade cristã-nova portuguesa, mas ainda é incipiente o estudo da postura dos tribunais portugueses para com suas rés. Como afirmou a Profa. Anita Novinsky, “as mulheres eram vistas pelos Inquisidores como as hereges mais perigosas. […] Suas atitudes e opiniões sobre os cristãos-velhos, sobre a Igreja, sobre os padres, a confissão e principalmente sobre a Inquisição, escoam das páginas dos processos e nos fornecem material, às vezes únicos”.

Dessa forma, fosse envolvendo-se em intrigas nos cárceres, fosse desafiando seus algozes no momento dos tormentos, ou mesmo nos diálogos em meio aos autos processuais, muitos são os exemplos de figuras femininas que nos revelam aspectos do viver e morrer nos cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Portugal.

Analisar processos inquisitoriais nos permite combater o revisionismo e afirmar ser impossível defender um sistema tão cruel e tão temido como este; criado e idealizado pela Igreja católica, e desenvolvido com extrema precisão por governantes da Espanha e Portugal.

Bibliografia

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