Numa visita realizada em fevereiro de 2022 ao “Museu Nahum Gutman” de Yaffo, pela primeira vez tomei contato com a produção artística deste importante pintor, escultor e autor de literatura infantil na Terra de Israel.
Desde os primórdios do século 20 a arte em Israel oferece uma orientação criativa, norteada pelo encontro entre Oriente e Ocidente. O tema da terra e seu desenvolvimento, o caráter de suas cidades e as tendências estilísticas dos centros artísticos estrangeiros é uma constante desta arte em gestação.
A paisagem diversificada da terra santa é a principal protagonista nos trabalhos de pintura, escultura e fotografia. As colinas e as montanhas oferecem uma dinâmica especial de linhas e formas; os vales, a vegetação esverdeada e a luminosidade dão origem a efeitos coloridos especiais; a areia e o mar criam também novas superfícies. De maneira geral, a paisagem local, os problemas e a política do país constituem o foco central da arte israelense e garantem sua singularidade.
A arte da “Academia Bezalel”
Uma intensa atividade artística iniciou-se na Terra de Israel em 1906, quando o Prof. Boris Schatz (1867-1932) imigrou da Bulgária e fundou a “Academia de Artes Bezalel” em Jerusalém, de acordo com um projeto aprovado pelo Congresso Sionista de 1905. A meta principal era estimular jovens talentos a estudar artes. Em 1910 a “Academia Bezalel” já contava com 32 departamentos diferentes, 500 estudantes e um mercado ávido por suas obras em todo o mundo.
Além de pintores e escultores, a vida artística do país contava com um contingente de artesãos promissores (ceramistas, ourives, calígrafos, tecelões, vidreiros); muitos deles especializados em produzir “tashmishei kedushá”, tipos diferentes de objetos para cerimoniais judaicos.
No início, Bezalel pretendia criar uma “arte original judaica” fundindo técnicas europeias com a influência do Oriente Médio. Esta tendência artística resultou em pinturas de cenas bíblicas que retratavam concepções romantizadas do passado, junto com uma visão utópica do futuro. Surgiam assim imagens inspiradas nas antigas comunidades judaicas orientais, bem como nos beduínos locais. Entre os artistas destacados deste período podemos citar Shmuel Hirszenberg (1865-1908), Ephraim Lilien (1874-1925) e Abel Pann (1883-1963).
A primeira grande mostra, em 1921, na Cidadela de David, na cidade velha de Jerusalém, foi dominada pelos pintores de “Academia Bezalel”. Tempo depois, o estilo narrativo nacionalista de Bezalel foi desafiado tanto por jovens rebeldes dentro da própria instituição quanto por artistas recém-chegados ao território, que buscavam uma linguagem artística para o que eles denominavam “arte hebraica”, em oposição à “arte judaica”.
Tentando definir sua nova identidade cultural e expressar sua visão do país como fonte de renovação nacional, os primeiros artistas retratavam a realidade cotidiana do Oriente Médio, dando ênfase à luminosidade e às cores brilhantes da paisagem e salientando temas exóticos, como o estilo de vida simples dos árabes, sobretudo por meio de técnicas primitivas, como se pode observar nos trabalhos de Israel Paldi, Tziona Tagger, Pinchas Litvinovsky, Nahum Gutman e Reuven Rubin. Em 1920, os artistas judeus de vanguarda tinham-se estabelecido em Tel Aviv, cidade nova e dinâmica, que desde 1909 tornou-se o centro da vida artística.
A arte da década de 30 foi fortemente influenciada pelas novidades ocidentais, das quais talvez a mais importante seja o expressionismo importado dos ateliês de Paris. As obras dos pintores Moshe Castel, Menachem Shemi e Arie Aroch traziam, através de figuras distorcidas, uma realidade carregada de emoção e misticismo. Embora os temas ainda fossem as imagens e paisagens locais, os componentes narrativos de dez anos antes desaparecem gradualmente e o mundo oriental-muçulmano evaporou-se inteiramente.
O expressionismo alemão surgiu nos anos 30, com a chegada de artistas imigrantes fugitivos do Nazismo. Os artistas Hermann Struck, Mordecai Ardon e Jakob Steinhardt se uniram a seus conterrâneos Anna Ticho e Leopold Krakauer, que haviam vindo a Jerusalém vinte anos antes. Esse grupo se dedicava a interpretações subjetivas das paisagens de Jerusalém e das colinas que a cercavam. Tiveram uma contribuição significativa para o desenvolvimento da arte local, principalmente quando a liderança da academia Bezalel foi entregue a Ardon e Steinhardt, sob cuja orientação os artistas iam ganhando maturidade.
O rompimento com Paris durante a 2ª Guerra e o trauma do Holocausto levaram artistas como Moshe Castel, Yitzhak Danziger e Aharon Kahana, a adotar a nova ideologia “canaanita”, que buscava a identificação com os habitantes originais da terra e a criação de um “novo povo hebreu”.
Em 1948, a “Guerra da Independência” fez outros artistas como Naftali Bezem e Avraham Ofek adotar um estilo militante, dotado de uma mensagem social. Mas o grupo mais importante que se formou nesse período é o chamado “Novos Horizontes”, que pretendia libertar a pintura israelense de seu caráter local e de suas influências literárias, visando trazê-la à esfera da arte europeia contemporânea.
No grupo “Novos Horizontes” desenvolveram-se duas tendências principais: Yossef Zaritsky, a figura dominante do grupo, procurava uma atmosfera lírica, caracterizada pela presença de fragmentos identificáveis da paisagem local e tonalidades e cores frias. Seu estilo foi adotado por outros, principalmente Avigdor Stematsky e Yehezkel Streichman. A segunda tendência, de um abstracionismo estilizado que vai do geometrismo a um formalismo baseado em símbolos, é marcante nos trabalhos de Marcel Janco; um artista romeno que estudou em Paris e foi dos fundadores do Dadaísmo. O grupo “Novos Horizontes”, além de ter legitimado a arte abstrata em Israel, foi também uma força dominante no panorama artístico até o início dos anos 60.
Nahum Gutman
No pitoresco bairro de Neve Tzedek, fundado em 1887 por judeus de Yaffa, está localizado o “Museu Nahum Gutman”. A princípio do século 20, este lugar era um centro político, literário e cultural dos imigrantes judeus que chegavam à Terra de Israel do leste europeu. Ali, entre famosos escritores como Haim Nachman Bialik, Yosef H. Brenner, Dvorah Baron, Yosef Aharonowitz e outros, o jovem Nahum Gutman desenvolvia sua arte.
Gutman nasceu em 1898 em Telenesti, na Bessarábia, hoje Moldova. Ao completar sete anos a família decidiu migrar à Palestina, estabelecendo-se em Yaffa, logo depois em Neve Tzedek e finalmente em 1909 em Achuzat Bait, a futura Tel Aviv.
O mar despertou verdadeira paixão em Gutman, paixão que serviria de inspiração para muitas de suas obras. O porto de Yaffo e a costa do Mediterrâneo virarão fontes inesgotáveis de inspiração. Em seu livro “Between Sands and Blue Skies” (1964) o pintor fala de sua experiência durante o trajeto. Sobre a parada do navio em Istambul, escreveu que sentiu abrir-se perante seus olhos um mundo novo: “A partir de então e ao longo dos anos, empenhei-me em expressar em minha arte meu amor pela singular e intrínseca beleza oriental, que me encantou com tanta paixão…”.
Nesta mesma obra ele também descreve sua chegada ao litoral de Eretz Israel: “Ao chegar, as grandes ondas da costa de Yaffo nos atingiram com sua espuma, chegando até o deque. O navio parou no caminho até o porto. Eu via barcos subindo e descendo no mar, aparecendo e desaparecendo entre as ondas, até que se aproximavam do casco e a escada era lançada ao mar… Alegre e despreocupado, joguei-me nos braços de um marinheiro (….). Ele me segurou e eu me senti como se estivesse mergulhando pela primeira vez em um mundo mágico, mais fantástico do que qualquer outro que eu já tivesse eventualmente encontrado”.
Em 1910, decidido a se tornar pintor, Nahum Gutman se inscreve no Ateliê de Arte da pintora e escritora Ira Jan (pseudônimo de Esphir Yoselevitch). Três anos depois, aos 15 anos, começou a estudar na “Academia de Arte Bezalel” em Jerusalém, principal escola de jovens talentos. Aos 17 anos, ao eclodir a Primeira Guerra Mundial, se uniu à “Legião Judaica” do Exército Britânico que lutava contra os turcos-otomanos. Com 20 anos viajou a Viena, Berlim e Paris para estudar e aperfeiçoar suas técnicas.
Voltando a casa, Nahum Gutman se juntou a um seleto grupo de jovens artistas e ilustradores que pretendiam criar um estilo de arte típico em Eretz Israel, uma produção focada em figuras locais e paisagens que utilizava cores claras inspiradas na arte do Oriente Médio. Estes artistas acreditavam que retratar a Terra de Israel e seus habitantes, as tonalidades e a luminosidade do deserto e da vegetação, do mar e do céu, eram experiências únicas. Gutman nos relembra: “Queríamos retratar as cores locais, a luminosidade que integra os objetos e que também os despedaça com suas sombras. Nós nos sentíamos como heróis em busca de conquistar a natureza como esta realmente era e não como nos ensinavam”.
Considerado já um dos maiores nomes da arte da Terra de Israel, suas ilustrações serviram para acompanhar os escritos de seu pai Simcha Ben Zion, do poeta nacional Haim Nachman Bialik e de Shaul Tchernichovsky. Como curiosidade, vale lembrar que o ajudante do pai de Gutman era o ainda desconhecido Shmuel Yosef Agnon (1888-1970), escritor agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1966.
Além de ser exímio ilustrador, Gutman se dedicou também a escrever contos infantis. Suas histórias ilustradas se publicaram na revista semanal “Davar Leyeladim”, para depois serem incluídas em livros para crianças de Israel. Em 1939, Gutman publicou seu primeiro livro “Em Terras do Rei Lobengulu de Zulu”. Estas ilustrações estão expostas no “Museu Gutman”.
Nahum Gutman manteve outros interesses artísticos. Ele fez grandes mosaicos que retratam a cidade de Tel Aviv-Yaffa, criou esculturas de figuras humanas, desenhou o logotipo de Tel Aviv, decorou cenários teatrais e escreveu críticas de arte em periódicos e revistas da época. Pela sua contribuição à cultura das crianças lhe foi concedido o Prêmio Israel de Literatura Infantil.
Gutman e o surgimento de Tel Aviv
Gutman retratou em detalhes a sociedade em que viveu. O artista serve de referência para compreender os primeiros anos da cidade de Tel Aviv-Yaffa, mas também para entender o estudo da iconografia da região nessa primeira metade do século 20. Da sua obra pode-se extrair um sentido de inocência e de nostalgia pela vida nos primórdios do Yishuv – a sociedade surgida nos dias que antecederam à criação do Estado de Israel.
Com maestria, Gutman utiliza diversos elementos religiosos da vida urbana e a convivência dos diferentes povos que habitavam no Levante. Sua obra expressa com detalhes a riqueza cultural judaica na Terra de Israel, sem perder de vista os demais habitantes da região.
No decorrer da pesquisa, li várias críticas sobre o significado das figuras árabes nas pinturas de Gutman. Alguns sugerem que elas evocam figuras bíblicas do passado com uma forte ligação com a terra. Outros entendem que a representação da força física do árabe, (que obviamente contraria o estereótipo do judeu diaspórico débil e indefeso), era um modelo pelo qual novas mulheres e homens judeus do Yishuv seriam formados. Nahum Gutman pintou a sociedade que viu através do espírito, da personalidade, da beleza e cores que enxergavam seus olhos.
Naturalmente, Tel Aviv ocupa um lugar especial na obra de Gutman. Quando foi criado o distrito de “Achuzat Bait”, (o núcleo fundador de Tel Aviv), os Gutman foram uma das primeiras famílias a se mudar para lá. Toda sua adolescência está intimamente interligada aos primeiros anos da cidade e as lembranças de sua infância, retratados em quadros que datam entre 1910 e 1913.
Para Gutman, Tel Aviv era um lugar único no qual a convivência e o clima fraternal tornavam possível o desenvolvimento profícuo das artes. “Todo mundo se conhecia e a criação artística era uma expressão desse ambiente comum. Usufruíamos da agradável companhia de grandes escritores, poetas e pintores que se encontravam no café Altschuler e depois no Rezki’s. Bialik estava lá, assim como Zemach, Shimoni, Uri Zvi Greenberg, Jacob Horovitz, Shlonski, Eliezer Steiman e outros. Éramos como uma família!” escreve Gutman.
Durante a década de 1940, no auge da 2a Guerra, Gutman pinta quadros, principalmente aquarelas que retratam o litoral de Tel-Aviv. São trabalhos monocromáticos produzidos em uma atmosfera sombria, invernal, expressando o estado nacional da época.
As paisagens de Israel nascidos na sua alma e no seu olhar servirão de matéria-prima de toda a sua obra. Ao dos anos 1940-1950, a figura humana se torna cada vez mais estilizada, e Gutman a integra à paisagem; criando uma harmonia e uma leveza singulares. Inspirado na série de livros ligados à construção de Tel Aviv, escreve “Ir Ketaná va-Anashim ba Me’at” (Uma cidade pequena e poucas pessoas nela), no qual dedica suas ilustrações aos construtores de Tel Aviv.
Das décadas de 1950, 1960 e 1970, os motivos portuários e marítimos se tornam novamente elementos preponderantes. As pinturas em óleo retratam Haifa e Jaffa, portos que simbolizam os portões de entrada à nação que calorosamente recebe os imigrantes que chegam de longe.
A cerâmica de Gutman
Em depoimento importante à mídia, Gutman revelou sua relação com a cerâmica. Diz o artista: “Certo dia, achei no deserto uma vasilha antiga; metade dela encoberta em areia… e quanto mais a observava mais enxergava suas diferentes figuras. Em cada figura o espaço preenchia uma função importante… [portanto] agradeço a essa vasilha antiga que me permitiu contar a minha história, dando-me o enorme prazer de sentir através das minhas mãos o volume da cerâmica”.
Em 1968 Gutman passou por uma cirurgia nos olhos e não mais podia desenhar nem pintar. Sendo assim, procurou uma atividade artística que não precisasse usar sua vista. Foi assim que começou a criar pequenas esculturas de cerâmica. A escultura em argila agradou bastante a Gutman incorporando-a a seu espírito artístico, mesmo após voltar sua visão.
A relação entre vasos de cerâmica e figuras humanas é tão antiga como a própria atividade em cerâmica. Gutman tentou de descrever em suas obras figuras de barrigas grandes, enraizadas e atreladas a terra. A cerâmica deste artista inclui figuras de corpo inchado, volumoso, típico de figuras abstratas com cabeças de formatos diferentes, grandes e corpos amplos e espaçosos.
Os temas abordados nas cerâmicas de Nahum Gutman são diversos. Há temas que abordam o cotidiano como o “Ciclo da Vida”, retratando três figuras humanas que representam cada uma das gerações, há temas bíblicos como a história de “Sansão e Dalila” e “Job”, o homem justo temeroso de D´us que sofre; certamente a melhor analogia para ilustrar as tribulações do povo judeu.
A coleção de cerâmicas de Gutman da época em que não enxergava, foi exposta pela primeira vez em 1973 no “Museu de Israel” em Jerusalém. Atualmente o “Museu Gutman” expõe mais de 50 esculturas deste acervo. A coleção faz parte da exposição permanente do museu e contribui para ampliar nossos horizontes no que tange à produção artística de Gutman.
Palavras Finais
Gutman foi um dos precursores do Modernismo na Terra de Israel. Na sua pintura aparecem acentuadas as influências do Impressionismo de Cézanne, com quem aprendeu a usar a cor como elemento que separa os planos e a profundidade; do Fauvismo, principalmente de Henri Matisse, aprendeu a usar as cores fortes, combinando-as com uma liberdade poética nas linhas, representando de maneira expressiva e por vezes infantil os objetos das pinturas. Isto se tornaria uma marca do trabalho de Gutman. Assim como os fauvistas, o artista usava tons puros de tinta sem realizar misturas e gradações de cores.
Suas pinturas a óleo são grandes blocos de cor e suas aquarelas são transparentes, evocando uma transparência semelhante à inocência que ele sempre quis transmitir. Segundo seu filho, o professor de biofísica na Universidade de Tel Aviv Hemi Gutman, seu pai não tinha apenas um estilo de pintura. Passava do figurativo para o abstracionismo em uma constante tentativa de captar aspectos da realidade que o cercava. Quando em 1950 a pintura israelense parecia estar vivenciando um verdadeiro dilema – seguir tendências internacionais, descaracterizando-se como arte nacional, ou manter-se fiel aos seus próprios padrões, “seu pai não teve a menor dúvida e conservou um estilo próprio e essencialmente israelense de arte”.
Como escritor, Gutman procurava estimular a imaginação dos leitores. Em seus livros infantis, misturava histórias do povo judeu com histórias dos antigos povos do Oriente Médio. Foi um dos primeiros escritores a adotar o hebraico como língua de criação artística. Nesse aspecto, sua produção é de vital importância para entender o estabelecimento de uma cultura judaica que utilizava o hebraico como idioma nacional. Recebeu inúmeras honrarias e prêmios, entre eles o Prêmio Israel, em 1978, por sua contribuição à literatura infantil de Israel.
Bibliografia
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Gutman’s paintings in private collections (Exhibition marking 25 years of the death of Nahum Gutman).
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Masterpieces of Gutman Israel Phoenix Collection Gutman Museum, Tel – Aviv, 2003. Curator: Yoav Dagon.
Nachum Gutman visits the provinces of evil Gutman Museum, Tel – Aviv, 2000. Curator: Yoav Dagon.
Pressburger Shai Gal, Shirley, Nachum Gutman – Designer of the image of Tel Aviv.
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