Orgulho gay na Wehrmacht?

Os nazistas perseguiam e matavam gays, mas permitiam que houvesse cross-dressers nos seus pelotões. Há quase três anos, em 2018, o fotógrafo alemão Martin Dammann deu a conhecer 118 fotos testemunhando que militares alemães costumavam usar roupas femininas. Uma coleção de fotografias inéditas da Segunda Guerra inseridas no seu livro “Soldier Studies: Cross Dressing in der Wehrmacht” (Travestismo no Exército Nazista), traz histórias e imagens que lançam nova luz sobre o lado mais sombrio da Wehrmacht.

O que revelam estas fotos acerca da sexualidade nas Forças Armadas alemãs naquela época? Essa é uma pergunta difícil que Martin Dammann pretende responder. Como introdução ao tema, convido vocês neste momento a assistir um breve vídeo (https://www.dw.com/pt-br/fot%C3%B3grafo-documenta-soldados-alem%C3%A3es-crossdressers-na-segunda-guerra-mundial/av-46412707) para depois continuar com nossas reflexões.

IMAGENS DE “CROSS-DRESSING”

É provável que todos os soldados que aparecem neste vídeo e nas fotografias do livro “Soldier Studies: Cross Dressing in the Wehrmacht” tenham cometido ou presenciado atos de violência. Isto é fato por representar a Segunda Guerra o ápice da sistematização do extermínio humano.

As 118 imagens de arquivo reunidas por Dammann retratam elementos do exército nazista em ambiente festivo, na privacidade dos seus destacamentos militares, nas diversas frentes de combate que se formaram no decorrer do conflito. São fotografias raras, exemplares únicos, e a sua compilação é fruto de 16 anos de intensa pesquisa em arquivos, coleções privadas e até feiras de rua por todo o território alemão. Neste álbum há soldados vestidos de mulher ou que exibem comportamentos homossexuais.

Martin Dammann divide a coleção fotográfica sobre crossdressing no Terceiro Reich em quatro categorias. A primeira está relacionada com rituais juvenis de iniciação à vida militar, que têm um aspecto bastante inocente. Na segunda categoria, adiciona fotografias dos espetáculos oficiais produzidos pela “Kraft durch Freude”, uma organização do Terceiro Reich responsável pelo entretenimento das tropas no exterior. Na terceira, Dammann coloca fotografias relativas a espetáculos de grande produção que eram montados nos campos de prisioneiros de guerra. A quarta e última, traz fotografias tiradas no “front” ou nas suas imediações; onde soldados da Wehrmacht, por iniciativa própria, produziam o seu próprio entretenimento. Esse exercício consistia em peças de teatro, shows musicais ou outros divertimentos que incluíam máscaras.

Martin Dammann lamenta que “sobre estas iniciativas, existe pouca ou nenhuma informação histórica”, confessando ter passado os últimos três anos em busca de sustentação teórica para seu livro. Ele encontrou breves menções em diários, cartas ou crónicas de guerra, mas nesses documentos privados, essas performances mascaradas não são descritas nem analisadas. O fotógrafo acredita que o “travestismo” fosse tão corriqueiro para os soldados que nem seria digno de referência; que seria algo demasiado evidente, demasiado normal.

Nas imagens de Dammann é impossível distinguir quais são os homens que mostram desejo sexual por homens ou por mulheres. Por vezes, ambos estão presentes na mesma fotografia. O artista alemão analisou cada uma das imagens e garante que em nenhuma achou “indícios de irritação”. Nos rostos dos protagonistas travestidos não é visível nenhum sinal de desconforto, apenas manifestações de alegria. É possível que naquele contexto carnavalesco, toda pessoa tivesse a liberdade de se exprimir livremente e de poder manifestar sua felicidade.

HOMOSSEXUALIDADE E NAZISMO

Os nazistas viam os homossexuais masculinos como fracos e efeminados, incapazes de lutar pela nação alemã. Eles percebiam os homossexuais como improváveis geradores de filhos, incapazes de aumentar a taxa de natalidade. Os nazistas acreditavam que as raças inferiores se reproduziam em maior escala do que os “arianos”. Assim, qualquer fator que diminuísse seu potencial reprodutivo, era considerado como um perigo racial.

Importante lembrar ainda que a homossexualidade era tida como crime na Alemanha nazista. “Um homem que cometa atos lascivos e indecentes com outro homem será castigado com pena de prisão”, aparece na lei conhecida por “Parágrafo 175”, promulgada em 1870 e abolida apenas em 1994. Durante a vigência do regime nacional-socialista, a lei não só que se manteve senão que foi reforçada. Em 1936, autorizado por Adolf Hitler, o Reichsführer Heinrich Himmler, o Chefe das temidas SchutzStaffel (SS), criou o “Departamento Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto”.

Em consequência desta medida homofóbica, “milhares de homens foram enviados para os campos de concentração por serem homossexuais, onde acabariam por morrer”. Esta frase pode ser encontrada hoje numa inscrição do “Monumento em Homenagem aos Homossexuais Perseguidos pelo Regime Nazista”, erigido no Parque Tiergarten, em Berlim, em 2008.

A homossexualidade na Wehrmacht era considerada um fator de desmoralização das tropas e punível com pena de morte. O regime nazista silenciou bares e cabarés de Berlim, que na década de 1930 era uma das cidades mais liberais do mundo em termos de costumes sexuais.

Em 1934, cinco anos antes de eclodir a Segunda Guerra, um dos pretextos utilizados por Hitler para o sangrento putsch na “Noite das Facas Longas”, foi a homossexualidade assumida do chefe das “Sturmabteilung” (Tropas de Assalto da SA) Ernst Röhm. É sabido que o comandante Röhm (1887-1934) não se privava de organizar orgias com seus jovens milicianos, nem se inibira, certa vez, de apresentar queixa em tribunal contra um “garoto de programa” que lhe roubara a carteira, com abundância de detalhes sobre as circunstâncias desse roubo de alcova.

Mas os pesquisadores que se têm debruçado sobre esse período histórico, concordam que o pretexto nada teve a ver com o verdadeiro motivo: Adolf Hitler queria, em caráter urgente, desembaraçar-se de Ernst Röhm que lhe fora útil durante alguns anos à frente das “camisas castanhas”, mas que em 1934 se havia tornado um estorvo para as relações entre o novo regime nazista e a velha elite militar prussiana.

Para o historiador Lothar Machtan, autor da obra “Hitler’s secret: the double life of a dictator” (O segredo de Hitler: a vida dupla de um ditador) publicada em 2001, o comandante Ernest Röhm era um arruaceiro plebeu que alimentava a ambição de ser colocado à frente das forças militares do Terceiro Reich. As fileiras da milícia de Röhm eram engrossadas, principalmente, por desempregados, sendo recrutados também ladrões e assassinos. Para Röhm, esse exército plebeu era o núcleo do movimento nazista, a encarnação e garantia da revolução permanente, baseada no socialismo de caserna que ele experimentara durante a Primeira Guerra Mundial.

Somente liquidando Röhm, o Führer poderia inspirar a confiança dos junkers uniformizados, tal qual eram denominados entre 1871 e 1919 os membros da nobreza ariana, constituída por latifundiários e militares de elite nos estados alemães. No momento em que decidiu mata-lo, Hitler deixou de fazer vista grossa à vultosa corrente gay que até aí tolerava nas fileiras nazis.

No seio da elite militar prussiana, as acusações de homossexualidade eram usadas quando pareciam oportunas. Por exemplo, em 1938, ao querer afastar das funções o “Chefe do Alto Comando da Wehrmacht”, general Werner Thomas Ludwig von Fritsch (1880-1939); a Gestapo forjou contra ele um libelo por homossexualidade, que depois viria a ser demolida em tribunal, devido à fragilidade dos testemunhos apresentados. Mas, entretanto Fritsch, um nazista convicto até o fim da vida, já tinha perdido seu cargo.

O VALOR DAS FOTOGRAFIAS

Segundo Martin Dammann, “se não existissem as fotografias, não se acreditaria nisto”. O autor de “Soldier Studies: Crossdressing in der Wehrmacht” começou trabalhando para o Arquivo de Londres sobre conflitos modernos e, com o patrocínio dessa entidade, conseguiu viajar pelo mundo inteiro à procura de fotografias feitas por militares nos respectivos exércitos.

Em breve começou a tirar conclusões que o surpreendiam. Uma delas dizia respeito à inusitada frequência com que militares da Wehrmacht aparecem nas fotografias vestidos de mulheres. Outra dizia respeito ao fato de imagens com esse tema, recorrente nos exércitos, “aparecerem de forma especialmente frequente nos álbuns de fotografias alemães da Segunda Guerra”.

Muitas das fotografias recolhidas descrevem festas de Carnaval, em que militares dispunham de um alibi mais ou menos inócuo para poderem travestir-se.  Na região de Köln (Colônia), um dos principais mascotes da parada carnavalesca é a virgem, um papel feminino exercido por homens desde a década de 1820. O livro comprova que este hábito foi mantido, mesmo sob o rígido regime nacional-socialista que se declarava abertamente homofóbico.

Porém, muitas vezes, a pulsão pelo travestismo manifestava-se em circunstâncias que nada tinham que ver com o Carnaval, por exemplo, em espetáculos ao ar livre organizados em unidades do “front”, sem a presença de mulheres, e, portanto com homens a desempenharem papeis femininos.

É evidente que a produção das roupas e da maquiagem dos soldados crossdressing era muito cuidadosa: os homens aparecem usando calcinhas, sutiãs, saias, sapatos, perucas e diversos tipos de maquiagem. Em geral, as tropas da Wehrmacht chegavam a uma cidade e invadiam suas casas, apropriando-se os soldados das peças colocadas nos guarda-roupas das mulheres. Historiadores afirmam que isso era comum nos exércitos, não apenas o alemão, como também no inglês, no francês e no americano.

Martin Damman deduz das imagens e da documentação recolhidas que, “mesmo se a maioria dos soldados era heterossexual, transparecem [nas fotos] orientações homo ou transsexuais com invulgar nitidez”. Por outro lado, em parte alguma parece ter havido uma repressão do travestismo por parte da hierarquia militar.

A obra “Soldier Studies: Cross Dressing in der Wehrmacht” do fotografo berlinense Martin Dammann nos ajuda a entender a existência do cross-dressing no Wehrmacht, um fenómeno aparentemente inconciliável com os valores éticos e morais proclamados pelo Terceiro Reich.

BIBLIOGRAFIA

Brazda, Rudolf, Itinerario de un Triangulo Rosa. Alianza Editorial, 2011. 272 páginas.

Dammann, Martim, “Soldier Studies: Cross Dressing in der Wehrmacht”. Hatje Cantz, Berlin 2018. 128 págs.

Giles, Geoffrey, The Most Unkindest Cut of All: Castration, Homosexuality and Nazi Justice. Journal of Contemporary History, vol. 27 (1992): pp. 41-61.

Machtan, Lothar, “Hitler’s secret: the double life of a dictator”. Berlin 2001. (Traduzido ao português: O segredo de Hitler. Objetiva. Rio de Janeiro 2001. 351 páginas).

Wills, Matthew, Ernst Röhm, The Highest Ranking Gay Nazi. Journal of the History of Sexuality, Vol. 8, No. 4 (Apr. 1998), pp. 616-641.