Em determinada etapa de sua carreira, o pesquisador do Judaísmo deve se perguntar, ao menos uma vez, a respeito de quem teria redigido a primeira obra moderna de história judaica. Confesso que somente agora, após três décadas estudando essa temática, coloquei- me diante dessa questão. Ingenuamente, pensei que os historiadores Isaac M. Jöst (1793-1860), Heinrich Graetz (1817-1891) e Simon Dubnov (1860-1941) tivessem sido os pioneiros da historiografia judaica moderna. Essa busca foi curiosa e reveladora.
Em 1706, o huguenote Jacques Basnage de Beauval (1653-1723) foi expulso da França porque era de ascendência protestante. Refugiou-se na Holanda e publicou uma obra em sete volumes intitulada “Histoire des Juifs depuis Jésus- Christ jusqu’à présent” [História dos Judeus desde Jesus até Agora]. É importante lembrar que a Holanda era a nação de maior tolerância religiosa durante os séculos 17-18. Nesta época, a “comunidade judaica hispano-portuguesa” de Amsterdã era famosa por dela fazer em parte destacadas figuras entre elas os rabinos Rafael D’Aguilar e Isaac Aboab da Fonseca (o primeiro rabino das Américas), os pensadores Isaac Orobio de Castro e Uriel da Costa, o poeta Daniel Levi de Barrios, e naturalmente o mais conhecido de todos: o controverso filósofo Baruch Spinoza.
Jacques Basnage foi muito mais do que um protestante dedicado ao sacerdócio. Exímio negociador desempenhou funções de procurador e diplomata, ajudando a aprimorar as tumultuadas relações diplomáticas entre França, Inglaterra e Holanda. Leitor voraz, Basnage deixou duas obras monumentais: “Histoire des Juifs” que teve excelente aceitação na Europa e, em 1708, foi traduzida em Londres; e “Antiquités Judaïques ou Remarques Critiques sur la République des Hebreux” [Antiguidades Judaicas ou Observações Críticas Acerca da Republica dos Hebreus] de 1713, onde expressa profunda admiração em relação ao povo escolhido de Deus.
A “Histoire des Juifs” foi difundida com rapidez entre a intelectualidade europeia judaica e não judaica. Escrita em francês, serviu para incentivar estudiosos e críticos literários a mergulhar nos meandros da história judaica. O livro teve ainda o objetivo de gerar uma continuidade entre antigos textos de história judaica (Flávio Josefo) com obras de historiografia medieval (Josef Hacohen, Eliahu Capsali e Salomão Ibn Verga), fechando-se o círculo com textos de pensadores judeus dos séculos 17-18.
Nas primeiras páginas do livro “Histoire des Juifs” o autor relata as tribulações sofridas pelo povo judeu até aquela data. Os capítulos registram episódios relacionados aos judeus orientais e ocidentais e mencionam aqueles judeus que habitavam em comunidades exóticas como Índia, China, Etiópia, Pérsia, e o Reino dos Kazares, entre outras. Em vários outros capítulos Basnage narra as opressões sofridas pelas comunidades judaicas do Ocidente e as atrocidades cometidas contra eles desde as Cruzadas até os distúrbios (pogroms) perpetrados pelos cossacos de Chmelnitzky entre 1648-1649. Basnage explica ainda no livro o que ele mesmo denomina “o milagre da Revelação do Povo de Israel”. O que seria esse milagre? Para Basnage é um grande mistério, uma espécie de segredo oculto, o motivo pelo qual o povo escolhido de Deus, mesmo perseguido e odiado, consegue continuar vivo entre as nações e se perpetuar ao longo dos tempos.
Ele afirma com total convicção: “povos que tentaram expulsar os judeus de seus domínios, prejudicaram seu florescimento cultural e sua prosperidade econômica”. Seu livro descreve o status obtido pelos judeus no mundo por volta dos anos 1700. Depois de cuidadosa descrição, o huguenote faz uma única pergunta para tentar compreender o verdadeiro segredo da sobrevivência judaica: que elemento detém o ser judeu para recompor sua capacidade coletiva e continuar a existir mesmo diante das perseguições, expulsões e desterros permanentes? O próprio autor responde de forma original: “Somente no Fim dos Tempos (Apocalipse) os judeus se converterão ao Cristianismo, porém até então (só Deus sabe quando isto acontecerá) é necessário apoiá-los na observação de preceitos e ritos. Toda tentativa de converter o judeu levará a um processo ainda mais demorado na aproximação dos Dias da Apocalipse”.
A afirmação vale para os dias atuais. Sem dúvida alguma, Jacques Basnage de Beauval, autor da primeira história judaica sabia perfeitamente o que falava e profetizava.