Quem foi o guia turístico de D. Pedro II na Terra Santa em 1876?

Desencavar, transcrever e comentar o Diário de Viagem à Terra Santa (Diários 18-19, maço 37, doc. 1057) redigido por D. Pedro II, nos permite revelar a curiosidade intelectual, a sensibilidade artística e o empenho do monarca em desvendar a humanidade em toda sua extensão. Escrito em 1876 o Diário retrata um homem despojado de mordomias que, apesar de rei, dormiu em barracas, hospedou-se em hotéis de 5ª categoria, cavalgou 7 horas diárias, arriscou-se a enfrentar beduínos, frequentou banhos turcos e colecionou souvenires.

O Diário – guardado no Museu Imperial de Petrópolis – faz parte da 2ª viagem internacional na qual D. Pedro II visitaria em 18 meses mais de 100 cidades em quatro continentes. Na ocasião, anotou impressões dos 24 dias no Líbano, Síria e Palestina otomana, percorrendo quase 500 quilômetros; marca significativa para uma comitiva com mais de 200 pessoas. Providenciar água, comida, hospedagem e segurança para tanta gente era uma operação de guerra. Na época D. Pedro não era jovem, já tinha 50 anos. Mesmo assim, não reclamou do cansaço, aproveitando cada minuto de sua peregrinação.

“Frère Liévin tudo me explicava, e muito me agrada por seu caráter singelo e jovial, além de ser bastante inteligente”. Com estes elogios registrados no Diário de Viagem à Palestina, apresenta o Imperador do Brasil D. Pedro II a seu guia turístico na Terra Santa.

O franciscano Frei Liévin de Hamme, natural de Hannover, (atual Bélgica), orientava peregrinos na hora em que a comitiva imperial brasileira, liderada pelo monarca D. Pedro II, ancorava no pequeno porto de Beirute para uma visita de 24 dias ao Líbano, Síria e Israel; territórios em que Jesus nasceu e viveu, pregou sua nova fé e morreu crucificado pelo Império romano.

Quando a comitiva imperial brasileira chegou à Terra Santa em 1876; havia 18 anos que frei Liévin morava na região. Desde 1858, muito jovem ainda, ganhava seu pão como guia turístico de ilustres personalidades das cortes européias. O franciscano era modesto e ao ser perguntado acerca de suas atividades cotidianas, costumava responder que era um “conducteur des pelerines” (guia de peregrinos), pois seu trabalho consistia basicamente em escrever guias turísticos e livros sobre os Lugares Santos da Cristandade.

Célebres orientalistas, arqueólogos e numismatas franceses como Louis F. Joseph Caignart de Saulcy, Charles Clermont-Ganneau e Guérin, e outras personalidades conhecidas do monarca brasileiro; foram alguns dos notáveis viajantes que Liévin acompanhou com explicações. Na época, o contato da Europa com a Ordem dos Franciscanos era forte. De todos aqueles padres responsáveis pela guarda dos Lugares Santos, Frei Liévin ocupa um lugar de destaque. Ele escreveu um roteiro em latim, (vertido ao francês) intitulado “Guide Indicateur dês Sanctuaires et Lieux Históriques de la Terre Sainte”. Em 04/12/1876, em Jerusalém, este Guide foi oferecido de presente ao Imperador com uma dedicatória. No rico acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro existem várias versões deste texto.

Frère Liévin pesquisou os Lugares Santos. Dois textos relevantes elaborados pelo guia belga são: “Lê Thabor et la Transfiguration du Sauveur” (8 fols.) e o “Étude Topographique du Forteresse de Sion” (16 fols.); este último com um bonito mapa de Jerusalém, guardado no Museu Imperial de Petrópolis.

Nas cartas pessoais do Imperador, Frei Liévin de Hamme é lembrado com carinho e admiração. “Muito conversei com frei Liévin, de quem gosto cada dia mais, por ser um espírito esclarecido e, portanto, tolerante”, escreve D. Pedro II, manifestando sua grande estima pelo franciscano. Mesmo após consultar e comparar outros guias, Sua Majestade chegou à conclusão que seu guia em Jerusalém é autor do melhor roteiro da Terra Santa.

No Diário de Viagem à Palestina, Pedro II destaca as pesquisas sérias do franciscano e, no caminho de Jerusalém a Ramleh, confessa que “não fosse ele [frei Liévin], não teria visto nem metade do que tem visto com suas explicações”. Em outro trecho, o monarca inconformado, disse que “apesar das insistências, o superior dos franciscanos ainda não lhe deu um ajudante para se ir preparando a substituí-lo quando for necessário”. Um dia, ele há de fazer falta aos cristãos. Notem a preocupação: Que farão os peregrinos quando frei Liévin não mais puder acompanhá-los aos Lugares Santos.

Apreensivo com a falta de um sucessor para a função do franciscano belga, D. Pedro II parece confiar pouco na capacidade intelectual dos franciscanos, e nota “falta de inteligência na maior parte destes frades”. O monarca do Brasil aprecia sobremaneira cada explicação de seu guia, mesmo quando o belga emite uma opinião preconceituosa sobre o modo de rezar dos judeus de Jerusalém:

“Estava a rua cheia de judeus que rezavam voltados para a muralha. Alguns, sobretudo mulheres soluçavam realmente; e vi judeus respeitáveis por sua aparência agitar o corpo, dando mesmo saltinhos, o que, segundo frei Liévin, simboliza os movimentos sobre os burros e camelos dos israelitas quando iam do Egito para a Terra da Promissão”.

A descrição do franciscano, fruto de observação; refere-se aos movimentos agitados feitos pelos judeus durante a oração Amida, quando pronunciam as palavras hebraicas “Kadosh, kadosh, kadosh” (Santo, Santo, Santo); talvez a síntese total da santidade divina. Frei Liévin ironiza práticas e preceitos milenares do Povo de Israel, opiniões que não achamos em nenhum texto moderno, apenas em tradições orais dos Pais da Igreja (gregos e latinos) e em relatos dos propagandistas cristãos dos séculos 12-14. Paira a pergunta se D. Pedro II seria tão ingênuo em aceitar tais explicações do seu guia.

Chegou à hora da partida de Terra Santa. D. Pedro II precisa dar adeus a seu guia, e o faz com grande estilo, dentro do próprio navio Áquila Imperial; ancorado no cais do porto de Jaffa; já de partida rumo a Port-Said, no Egito. O monarca, satisfeito com seu guia, admite que frei Liévin deixará muitas saudades; e se alguma vez sua filha Isabel, pensar em viajar à Palestina, o recomendará como seu guia. Lamentavelmente, a Princesa jamais visitou a Terra Santa e nem conheceu “o bom e inteligente Frei Liévin”.

A amizade que teceu Sua Majestade D. Pedro II com Frei Liévin de Hamme continuaria ainda durante o curto período do exílio em Paris, acompanhando Sua Majestade em seu leito, nas últimas horas de vida em 1891.

Bibliografia

FAINGOLD, Reuven, D. Pedro II na Terra Santa: Diário de Viagem – 1876. Editora e Livraria Sêfer. São Paulo 1998, 182 páginas com ilustrações.

FAINGOLD, Reuven, O guia turístico de D. Pedro II na Terra Santa. MAGAZINE 60+, #13, Ano II, julho 2020, págs. 5-6.

FAINGOLD, Reuven, D. Pedro II no Monastério de Saint Sabbas – 1876. MAGAZINE 60+, #3, Ano I, setembro 2019, págs. 13-14