Renoir e a tela “Rosa e Azul”

(Este artigo faz parte da matéria “O marchant Charles Ephrussi” (1849-1905), MORASHA 82, dezembro 2013, págs. 57-62)

Charles Ephrussi chega a Paris

Charles Ephrussi tinha 21 anos quando foi morar à Rue de Monceau, sinônimo em Paris para novo-rico, arrivista e judeu. Nesta sofisticada rua parisiense moravam judeus abastados que formavam uma colônia de imigrantes, um complexo de casamentos endógamos com serviços comunitários e afinidades religiosas.

Os judeus sefaraditas Péreire remodelaram o parque; colocaram portões de ferro e assim a zona de Monceau ficou ainda mais elegante. Segundo um jornalista francês “ali podiam ser vistas a passeio damas da nobre Faubourg, os ilustres das altas finanças e a alta colônia israelita”.

O número 81 da Rue Monceau abrigava o Hotel Ephrussi, a moradia de uma família judaica em ascensão. Foi precisamente ali que os netsuquês (belas miniaturas japonesas entalhadas em madeira e marfim), citados na famosa obra de Edmund de Waal “A lebre com olhos de âmbar”, (2010) começaram sua jornada. Foi ali também que Charles Ephrussi (1849-1905), um dos filhos de Leon iniciou sua meteórica carreira de curador, editor e crítico de arte, marchand e mecenas dos maiores artistas impressionistas.

Dez casas ladeira abaixo na mesma Rue de Monceau, no número 61; ficava a casa de Abraham Camondo (1829-1889), no número 63 a de seu irmão Nissim (1830-1889) e no número 60 a de sua irmã Rebecca (1832-1863). Todos eram filhos de Moïse de Camondo, um judeu nascido em Istambul, vindo a Paris por 1869. Os Camondo eram financistas como os Ephrussi e como o banqueiro e colecionador italiano Henri Cernuschi (1821-1896), um plutocrata que morava comodamente numa mansão com seus tesouros japoneses. No número 55 da Rue de Monceau ficava o Hotel Cattaui, residência de banqueiros judeus do Egito. O número 43 era o palácio do extravagante Adolphe de Rotschild, com tetos em vidro produzidos para poder iluminar sua coleção particular de arte renascentista.

Mas nada se comparava à bela mansão do fabricante de produtos farmacêuticos e magnata dos chocolates Émile Justin Menier (1826-1881), experiente político membro da Assembleia Nacional da França. O célebre escritor Émile Zola descreveu sua casa como “um opulento bastardo de todos os estilos”.

Charles Ephrussi não podia sair de casa sem que alguém perguntasse por seu avô, seu pai Leon ou um de seus tios. Desta forma ele aprende que aparecer em público significa enfrentar encontros; dar dinheiro a mendigos e pedintes ou cumprimentar conhecidos sem parar nas calçadas.

Paris asfixiava Charles. Por dez anos havia estado em Viena com pais, irmãos, o tio Ignace, a tia Emilie e seus três primos: Stefan, Anna e o pequeno Viktor. Todos aprendem línguas, mas em casa eles falam francês, nunca ídiche. Sabem que precisam das línguas para poder viajar a Odessa, São Petersburgo, Berlim, Frankfurt e Paris. Frequentam galerias de arte e montam a cavalo. Os meninos aprendem esgrima e os primos fazem dança. Charles Ephrussi, desde os 18 anos, possui o apelido Lê Polonais, o pé de valsa.

A obra “A lebre com olhos de âmbar” de Edmund de Waal descreve Charles ao voltar de Viena a Paris: “É bonito, de estatura mediana, com uma barba escura bem aparada que tem algo de ruivo dependendo da luz. Ele tem o nariz dos Ephrussi, grande e curvo, e a testa alta de todos os primos. Seus olhos são de um cinza escuro, bem vivos, e ele é encantador. Vê-se como se veste bem, com uma gravata bem arrumada, e então, ouve-se a voz dele falando: ele conversa tão bem quanto dança”.

A família sabe que Charles não foi talhado para a Bolsa. Há muitos primos nos escritórios da “Ephrussi Company”. Ele é um leitor voraz que tem aptidão para longas conversas com intelectuais e homens cultos.

Charles tem seu próprio apartamento na casa da família. Ele sabe falar, tem dinheiro e tempo de sobra. Como rapaz bem-criado vai à Itália para conhecer a cultura do Renascimento.

Cahen d’Anvers e Renoir

Louise Morpurgo Cahen d´Anvers era uma mulher judia italiana de Trieste, ótima amiga de Charles Ephrussi. Dois anos mais velha que Charles, ela era bonita e possuía cabelos loiros arruivados. Estava casada com o banqueiro judeu Louis Raphael Cahen d´Anvers; e o casal tinha quatro filhos: um menino e três meninas. O quinto filho chegou e Louise lhe dá o nome de Charles. É curioso saber, mas fica difícil entender como alguém arranja tempo para cinco filhos, um marido e, nas horas vagas, um amigo confidente.

As famílias Ephrussi-Cahen d´Anvers se encontravam com frequência nas recepções e bailes e, as vezes viajavam juntas para passar férias no Chalet Ephrussi na Suíça ou no Château  Cahen d´Anvers em Champs-sur-Marne, perto de Paris. Certamente, para poder marcar uma cita, Charles e Louise precisavam fugir da formalidade sufocante dos adultos e da vigilância permanente das crianças.

Charles combinou que seu amigo e artista Léon Bonnat faria um retrato de Louise em pastel. Ela aparece retratada em um vestido claro, olhando para baixo com total discrição, seu cabelo escondendo parte de seu rosto. O crítico de arte Goncourt, com um ar de malícia, compara a loira sedutora Louise Cahen d´Anvers à tela “Amante de Ticiano”, dona de uma imagem sensual e dourada.

A forte amizade entre Charles e Louise confirma à antiga tese de que os opostos se atraem: ela possuía duas casas imensas, um marido e vários filhos, enquanto Charles era um “bom vivant”, solteiro, desimpedido e livre para entretê-la quando precisasse de distração. Como era típico na época, os confidentes compartilhavam o mesmo interesse pela música, arte e poesia.

O cunhado de Louise, Albert d´Anvers era compositor, e Charles e Louise iam com ele à Opera em Paris para ouvir Massenet. Ambos eram apaixonados pela música do compositor alemão Richard Wagner, uma paixão difícil de ocultar e boa de compartilhar. Para Edmond de Waal “as óperas de Wagner davam ao casal bastante tempo para ficarem juntos naqueles profundos e aveludados camarotes da Ópera”.

Charles e Louise compravam caixas japonesas de laca preta e dourada para suas coleções na casa dos irmãos Sichel. Não era uma galeria de colecionadores, mas um lodaçal caudaloso de tudo o que fosse japonês. O volume de objetos da arte japonesa trazidos de Yokohama em 1874 inspirou devaneios.

Renoir pintou o quadro “Rosa e Azul”, conhecido também como “As meninas Cahen d´Anvers” em 1881. Desde 1952 esta tela está no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Ali ele retratou as duas filhas do banqueiro Louis Raphael d´Anvers, a loira Elizabeth, e a mais nova Alice, quando tinham seis e cinco anos respectivamente. As meninas têm o cabelo da mãe. Elas posam diante de uma cortina cor de vinho escura, aberta para revelar um salão ao fundo, de mãos dadas como que para ganharem confiança.

O mestre da pintura Pierre Auguste Renoir tinha feito retratos para algumas abastadas famílias da comunidade judaica da época. Desta vez foi contratado para fazer retratos dos Cahen, que conheceu por intermédio de Charles Ephrussi, editor-chefe da Gazette de Beaux-Arts; e a ideia era, a princípio, realizar retratos individuais de cada filha.

Renoir chegou a pintar a filha mais velha Irene em obra conservada atualmente na coleção E.G. Buhrle, em Zurique, na Suíça. Posteriormente, a família decidiu que as outras irmãs menores apareceriam juntas. Teria havido sessões de pose das meninas até final de fevereiro de 1881. Depois Renoir viajou para Argel. Dez anos depois, em 1891, em depoimento de Alice (filha menor), já casada com o general Towsend of Kut, relembrava: “o tédio das sessões era compensado pelo prazer de vestir o elegante vestido de renda”. Alice viveu até os 89 anos de idade e morreu em Nice em 1965.

Elizabeth teve um fim trágico: divorciada por duas vezes se converteu ao Cristianismo. Mesmo assim, foi enviada pelos nazistas para o campo de extermínio Auschwitz-Birkenau na Polônia; morrendo a caminho do campo em 1944, aos 69 anos de idade.

A obra “Rosa e Azul” foi realizada na bela casa dos Cahen d´Anvers, no número 66 da Avenue Montaigne, em Paris. Foram agendadas inúmeras sessões de minucioso trabalho até que o retrato estivesse completo. Em 4 de março de 1881, Pierre Auguste Renoir escrevia para o escritor, jornalista e crítico de arte Théodore Duret: “Parti imediatamente após terminar o retrato das meninas Cahen, tão cansado que nem lhe sei dizer se a pintura é boa ou ruim”.

Os dois quadros encomendados a Renoir, da Irene e das meninas menores Elizabeth e Alice, foram expostos no Salão de 1881. Mesmo assim, o retrato “Rosa e Azul” não agradou para nada aos Cahen, que demoraram a pagar os modestos 1.500 francos; colocando a obra de arte numa área secundária e menos transitados a casa.

As encomendas permanentes de telas a Renoir fizeram que outros artistas amigos de Charles ficassem desconfiados. Edgar Degas –por exemplo- foi muito severo, chegando a desabafar: “Monsier Renoir, o senhor não tem integridade. É inaceitável que você pinte por encomenda. Agora o senhor trabalha para financistas, passeia com Monsieur Charles Ephrussi, o próximo passo será expor na Mirlitons com Monsieur Bouguereau!”.

A aflição cresceu ainda mais quando Charles Ephrussi começou a adquirir telas de outros artistas como Gustave Moreau. O marchand judeu havia mudado de artista na busca de novas sensações. Paralelamente, Charles vai encontrando seu lugar naquela imensa, complexa e esnobe metrópole chamada Paris.

Bibliografia

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Bibliographie des ouvrages de Charles Ephrussi. Chronique des arts et de la curiosité 39 (1905) págs. 275-277;

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Ephrussi Charles. In: D’Amat, Roman (ed.), Dictionnaire de biographie française vol. 12. Paris: Letouzey et Ané, 1970, pág. 1350

Ephrussi, Charles, Catalogue descriptif des dessins de maîtres anciens exposés à l’École des beaux-arts, mai-juin, 1879. Paris: G. Chamerot, 1879.

Ephrussi, Charles, Paul Baudry, sa vie et son œuvre. Paris: L. Baschet, 1887.

Ephrussi, Charles, Étude sur le Songe de Poliphile (Venise 1499 et 1545, Paris 1546). Paris: L. Techener, 1888.

Ephrussi, Charles, Le Vicomte Both de Tauzia. Gazette des Beaux-Arts 38 (1888): 158-160.

Marguillier, Auguste. “Charles Ephrussi.” Gazette des Beaux-Arts 34 (1905): 353-360.

Marques, Luiz (org)., Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand: Arte Francesa e Escola de Paris. São Paulo: Prêmio, 1998, págs. 124-141.

Waal, Edmund de, The Hare with Amber eyes: A Family’s Century of Art and Loss. New York: Farrar, Straus & Giroux 2010. [A lebre com olhos de âmbar. Editora Intrínseca. Rio de Janeiro, 2011].