A história judaica nem sempre foi formada somente por sábios e rabinos eruditos, por cientistas ilustres e muito menos por meia dúzia de pessoas de projeção universal. Também fazem parte dela os denominados judeus não-convencionais, figuras que merecem toda nossa atenção pela forma como obtiveram destaque na vida nacional das suas respectivas nações.
Este é o caso do célebre pugilista judeu-britânico Daniel Mendoza, que durante duas décadas ganhou fama e acumulou fortuna driblando numerosos obstáculos e superando fortes preconceitos gerados pela própria comunidade judaica de Londres. Com determinação e perseverança conseguiu garantir seu espaço tanto na história da Inglaterra como na História Judaica.
Mendoza nasceu em Aldgate, Londres, em 1764. Ainda criança frequentou a escola judaica e, por volta de 1780, empregou-se no comércio de chá época em que conquistou a primeira vitória num ringue improvisado de rua. Rapidamente, Mendoza entrou para o ranking britânico ao derrotar, em 1787, em menos de 30 minutos o açougueiro de Bath, como era conhecido Samuel Martin. Esta vitória lhe permitiu desafiar Richard Humphries, o lutador mais importante da época.
As três lutas Mendoza x Humphries ficaram famosas: a primeira foi em Odiham, Hampshire, em 9/1/1788, e Mendoza perdeu a luta mais técnica até então da Inglaterra. Segundo as “Memórias” de Daniel Mendoza, cerca de mil judeus ingleses de uma comunidade de 12.000 pessoas assistiram ao confronto. A revanche foi em Stilton em mais de um ano depois, em maior de 1789, e o judeu nocauteou Humphries. O terceiro encontro, ou a “negra”, ocorreu em Doncaster em setembro de 1790 e novamente Mendoza derrotou Richard Humphries.
Depois da vitoriosa carreira de pugilista, na qual nunca levou desaforo para casa, brigando para sobreviver; Daniel Mendoza passou o resto de seus dias administrando seu próprio ginásio onde se praticavam vários esportes e, naturalmente, havia um sparring para boxe. A academia era frequentada por personalidades ilustres da aristocracia britânica, como o escritor Lord Byron.
Há 17 anos, tomando como base as fontes da época, principalmente os registros da Sinagoga de Beavis Marks e a correspondência com Anthony Joseph, em Londres, e Harry Mendoza, na Austrália, construí a árvore genealógica do pugilista: filho de Abraham Mendoza e Esther de Isaac Lopes, Daniel teve 10 filhos: Sarah (1788), Abraham (1790), Sophia (1793), Isabella (1796), Daniel (1797), uma menina de nome desconhecido (1801), Louisa (1803), Aron (1807), Isaac (1808) e Matilda (1810). Entre seus descendentes diretos se encontra o renomado ator Peter Sellers.
Um caminho totalmente contrário, afastado do glamour alcançado pelo pai Daniel, escolheu Sophia Mendoza (1782-1855?) a sétima filha do notável pugilista e uma das poucas mulheres de origem judaica sentenciadas e degredadas para a Austrália.
Em recente visita à Austrália, visitei a Biblioteca Nacional de Sydney e os Museus Judaicos de Sidney e Melbourne. Lá consultei a “List of Convicts Ships sent to Van Diemen´s Land: 1825-1854”, pág. 114 (Relação de Sentenciados Enviados por Navio para a Terra de Van Diemen); a Mitchell Library State of New South Wales, A1059 e a Convict Record Book: Archives of Tansmania, págs. 32-34, 40-47 e 72-77; vol. 2 pág. 434 (O Livro de Sentenciados). Nestas coleções obtive também dados importantes a respeito de Sophia Mendoza, esta ovelha desgarrada do rebanho do boxeur vencedor.
Elas revelam que em 29 de maio de 1828, Sophia Mendoza foi processada e sentenciada pela London´s Central Criminal Court de Old Baily (Inglaterra) a sete anos de prisão por furto sem direito a recurso. O processo descreve Sophia “empregada em todo tipo de trabalhos, tinha 5 pés e 1 inches (152,40 cm/2,54 cm) altura, 36 anos, traços escuros (dark complexion), cabelo castanho escuro, rosto oval, bochechas grandes, nariz aquilino e fisionomia judaica”. É interessante a observação “fisionomia judaica”
Sophia Mendoza teve uma vida extremamente difícil. Degredada por meretriz, sendo mãe solteira de três filhos que a acompanharam na longa viagem junto com outros sentenciados britânicos no navio Harmony a Van Diemen´s Land; nome dado na época à Tasmânia, a ilha-prisão a 240 quilômetros a sudeste da Austrália. A prisão está aberta à visitação pública e é importante ponto turístico da ilha.
Mesmo confinada à ilha-prisão, Sophia tinha comportamento inadequado, era desregrada, rebelde e, por tudo isso, respondeu judicialmente “por proferir diversas ofensas” em pequenas cortes da colônia britânica. Pelo jeito “intempestivo” as autoridades da Tasmânia demoraram até 1855 para lhe conceder o tão almejado certificado de liberdade (certificate of freedom), isto é, 27 anos depois da primeira condenação, ainda em Londres. Desta forma, Sophia Mendoza passou boa parte da vida na condição de condenada e prisioneira.
Não se sabe quando morreu a filha rebelde do maior pugilista judeu-britânico do século 18 e um dos maiores esportistas de todos os tempos. Estamos diante de uma biografia plena de enigmas históricos a espera de que se desvelem novos dados, possivelmente ainda guardados na poeira dos arquivos.