(Artigo publicado no YOMAN CHINUCH IV – Boletim Informativo para Educadores da Área Judaica – No. 14, Junho 2001. Para refletir – Encarte da revista).
A. Primeiras considerações
A retirada de testículos ou de ovários foi condenada pelo Judaísmo através das gerações. Sem entrar numa análise tão minuciosa, podemos dizer que os judeus proibiram toda e qualquer forma de mutilação ou castração, tanto de animais como de seres humanos. A própria palavra grega “eunucoi” aparece na Bíblia mais de 40 vezes, através do termo hebraico “saris”, porém nem sempre seu significado esteve voltado para castração ou impotência sexual.
Sendo assim, desde muito cedo as fontes judaicas se manifestaram sobre esta importante questão; apontando quais deveriam ser os diferentes tipos de atitudes e comportamentos a serem assumidos pelos judeus para com os eunucos.
O livro Levítico, que contém as leis e os preceitos do Povo de Israel, se posiciona de forma bem rigorosa e intransigente diante do destino de animais castrados. O texto do Velho Testamento proíbe terminantemente oferecer ou aceitar animais em estas condições: “Não oferecereis em vossa Terra [Terra de Israel] ao Senhor, um animal cujos testículos tenham sido machucados, esmagados, arrancados ou cortados. Não aceitareis nenhuma destas vítimas das mãos de um estrangeiro, para oferecer como alimento a vosso D´us; elas não serão aceitas em vosso favor, pois são mutiladas e defeituosas” (Levítico 22:24).
Tudo parece indicar que a proibição de lidar com animais castrados ou imperfeitos (pegumim) era aplicada também para seres humanos, principalmente para as pessoas que participavam diariamente em atividades sacerdotais. Uns poucos versículos antes, no mesmo livro Levítico, Moisés ordena a seu irmão Aarão: “Deste modo [pela proibição] serão excluídos todos aqueles que tivessem deformidade: cegos, coxos, mutilados, pessoas de membros desproporcionados, com fraturas em pés e mãos, corcundas ou anões, os que tivessem uma mancha no olho, sarna, dartro (infecção cutânea, dermatite) ou testículos quebrados” (Levítico 21: 18-20).
A função sacerdotal, praticada por “homens santos” (edat kedoshim), exigia estes requisitos, uma vez que as próprias leis e mandamentos a serem praticados pelo resto do povo deviam ser imagem fiel da perfeição.
E além dos sacerdotes, será que este mandamento atingia também o resto do povo? Sem dúvida alguma, sim. Isto é possível afirmar, quase categoricamente, baseando-nos num breve versículo do livro Deuteronômio, onde se faz menção às pessoas que podem ser excluídas do “Kahal Hashem” (Congregação do Senhor): “O homem cujos testículos foram esmagados ou seu membro viril cortado, não será aceito na Congregação do Senhor” (Deuteronômio 23:1-2).
Este versículo adquiriu uma força ainda maior na época talmúdica. No Tratado de Yebamot 70a está escrito que “um indivíduo castrado ou com defeito nos genitais, não poderá de forma alguma fazer parte da Congregação de Israel”.
B. Impotentes não castrados
Apesar do rigor bíblico e talmúdico no que se refere aos eunucos, existe outra passagem no Talmud, nesse mesmo Tratado Yebamot 8:3, que fala do “saris chama”, ou seja, o impotente ou castrado de nascimento. Estas criaturas não tiveram culpa alguma de sua triste situação fisiológica e psicológica, e, portanto, “eles sim poderão ser aceitos na Congregação de Israel”.
Hoje, a ideia de impotência ou disfunção sexual está bem longe da antiga ideia de castração. Atualmente sabemos que o impotente (ou a estéril) não é de forma alguma um ser castrado. Eles possuem seus órgãos sexuais, porém estes não tem funcionalidade no processo de procriação.
Na antiguidade não foi assim. O comentarista e exegeta francês Rashi (Rabi Shelomo Itzhaki) interpretou os trechos de Yebamot 8:3 e 97 de forma peculiar. Segundo ele: “A impotência é uma situação patológica, fruto de uma castração única, ímpar; pois a pessoa apresenta falta de desenvolvimento dos testículos ou falta deles terem sido retirados”. Seja como for, para Rashi esta situação de impotência está fora do controle da própria pessoa, uma vez que a natureza (criada por D´us) intervém na sua conformação.
Abordando impotência e castração, lembramos que existe um belo texto apócrifo intitulado “Sêfer Ben Sirah” (Livro de Ben Sirah), que discute todas estas apreciações. Nele podemos ler uma comovente afirmação: “Quando um eunuco abraça uma moça, dói o coração ao ver tanto sofrimento”.
C. O eunuco Putifar
Na Bíblia, o “saris” pode ser um alto funcionário da corte, uma pessoa a serviço do governante ou ainda um oficial responsável por funções meramente militares, tal como aparece no Livro II dos Reis, 25:19: “Tomou a cidade um eunuco que era encarregado de comandar os homens da guerra…”.
São vários os lugares da antiguidade onde atuavam os eunucos ou “sarisim”. Na civilização egípcia encontramos quantidades de eunucos servindo os mais famosos faraós. Um exemplo é, sem dúvida, o relato bíblico sobre a estadia de José, filho de Jacó, na casa de Putifar. A narrativa do Gênesis 37:36, conta que José foi conduzido ao Egito, e lá, o chefe da guarda do faraó – um eunuco de nome Putifar- comprou-o aos ismaelitas.
Gradualmente, José conquistou a simpatia do egípcio e na casa dele tudo prosperava. O filho preferido de Jacó passou a ser rapidamente a mão direita do egípcio, confiando-lhe negócios, casa, campos e também seus próprios bens. O sucesso e charme do israelita aumentava a cada dia; e foi assim que a esposa de Putifar lançou seus olhos na direção a José. No entanto, também sabemos que todas as artimanhas da egípcia foram em vão, e José nunca consentiu em aceitar suas insinuações.
O texto bíblico, muito lacônico, aponta uma única razão pela qual José teria rejeitado os generosos convites da esposa de Putifar: o fato do egípcio nunca pedir prestação de contas sobre o que se fazia na casa (sem proibir-lhe nada) e haver confiado todos os seus bens, exceto sua mulher (Gênesis 39:9).
A grande interrogação é justamente esta: Porque Putifar, sendo um homem castrado, confiou tudo, exceto sua mulher? Na minha modesta opinião, existe apenas uma hipótese. Mesmo sendo um eunuco, naturalmente Putifar não gostaria de saber que sua esposa mantém relações íntimas com outros homens. Por sua parte, fica evidente que a mulher do egípcio jamais poderia ficar sexualmente satisfeita, sendo seu marido um homem mutilado, portanto imperfeito. Um eunuco nunca conseguiria obter ereção e consequentemente, satisfazê-la.
Recapitulando, Putifar não foi apenas um “saris” (chefe da guarda), mas também um eunuco que em certo momento de sua vida teve seus órgãos reprodutores retirados.
D. Os sete eunucos do Rei Ahasverus
O “Livro de Ester” (Meguilat Ester) que lemos na festa de Purim, menciona os nomes de sete eunucos da corte do rei Ahasverus; o monarca que vivia alcoolizado. Foram eles encarregados de trazer a bela rainha Vasti perante o rei e os nobres, para mostrar o diadema real ao povo. Esses sete eunucos (todos castrados), estavam obrigados a cuidar das mais belas mulheres do reino; zelando pela integridade física e sexual dos homens que frequentavam a corte persa. Eram eles: Mauman, Bazata, Harbona, Bagata, Abgata, Zetar e Carcar (Ester 1: 10-12).
A corte da antiga Pérsia, através de pessoas de seu séquito, tinha como costume importar donzelas virgens para o rei. Era o próprio rei quem enviava pessoas às províncias (satrapias) para procurarem belas mulheres. O “Livro de Ester” menciona outro eunuco do rei de nome Hagai, quem seria responsável por trazer, sob sua vigilância, donzelas à Sussa, a antiga capital do império. A jovem donzela que soubesse agradar o rei Ahasverus, se tornaria a rainha no lugar de Vasti (Ester 2: 3-4).
E. Os eunucos no olhar dos Profetas de Israel
Os grandes Profetas de Israel, Isaías (56:3-5), Jeremias (38:1-3) e Daniel (1:3:17), mencionam eunucos. A seguir, algumas reflexões destes episódios.
- O eunuco Abdelmelec salva Jeremias.
Foi durante o domínio babilônico que o Profeta Jeremias foi tomado prisioneiro. Naquela hora, o profeta anunciou que qualquer pessoa que ficasse na cidade, morreria pela fome e pela peste; enquanto àquele que saísse da mesma, viveria e salvaria sua vida. Os homens da corte queriam eliminar Jeremias, pois ele desencorajava os soldados que ainda restavam na cidade. O rei não adotou postura alguma e acabou deixando seus funcionários resolver a difícil situação.
Seguidamente, por meio de cordas, esses servidores desceram Jeremias na cisterna do pátio do cárcere que pertencia ao príncipe Melquias. Não havia água na cisterna, porém havia lama na qual Jeremias ficou atolado. Foi precisamente naquele instante que entrou um eunuco etíope de nome Abdelmelec (servo do rei) e avistou Jeremias dentro da cisterna. O eunuco, desesperado, apiedando-se do profeta, correu em direção ao rei para informá-lo do que tinham feito os homens da corte.
Imediatamente, o rei ordenou o eunuco africano que tomasse 30 homens e retirasse Jeremias da cisterna, antes que fosse tarde demais. O eunuco atendeu ao pedido do rei , levou os homens consigo, levou do vestiário da tesouraria farrapos e velhos andrajos, e desta forma os homens retiraram Jeremias para fora da cisterna. Lá ficou o profeta no pátio do cárcere aguardando a chegada do rei.
Como podemos apreciar, o eunuco Abdelmelec foi figura central no episódio envolvendo Jeremias. Em Jeremias 39:2 há uma lista de pessoas que deixaram Jerusalém, após a cidade ter sido conquistada: o rei Jaconias, a rainha-mãe, os eunucos, os chefes de Judá e Jerusalém, os carpinteiros e os serralheiros.
Em dois versículos de Jeremias, faz-se referência ao eunuco Nabuzesba. No primeiro, os oficiais da Babilônia penetram em Jerusalém. Eram eles: Nebuzesba, o chefe dos eunucos, Nergal-Seresse, o chefe dos magos, e todos os demais oficiais do rei da Babilônia (Jeremias 39:3). O segundo texto bíblico descreve como Jeremias permaneceu no meio do povo graças à participação de Nabuzesba, do chefe dos guardas e de Nergal-Sersser, o chefe dos magos.
- Eunucos observam “mitzvot” (preceitos)
As profecias relacionadas ao exílio e a restauração do Reino de Israel, aparecem nos capítulos de Isaías 56 em diante. Da leitura fica bastante evidente que eunucos e prosélitos podem, indiscriminadamente, unir-se ao povo de D´us. Fazendo um paralelo entre estrangeiros e eunucos, aponta Isaias: “Que o estrangeiro que deseja aproximar-se ao Senhor, não diga: O Senhor certamente vai me excluir de seu povo. Que o eunuco não diga ‘Oh, sou apenas um lenho seco’, pois eis que diz o Senhor aos eunucos que observarem o sábado, que escolherem o que me é agradável, e se afeiçoarem a minha Aliança, eu darei na minha casa e dentro de minhas muralhas um monumento e um nome de mais valor que filhos e filhas; dar-lhes ei um nome que jamais perecerá”.
Este trecho bíblico é de vital importância, não apenas porque seriam aceitos na Congregação todos aqueles eunucos que guardarem o sábado ou fizerem bem aos olhos de D´us. Ele é significativo porque menciona a expressão “um monumento e um nome“ (Yad Vashem) que jamais será destruído. Foi precisamente este versículo bíblico que inspirou e deu origem ao Museu do Holocausto, fundado em Jerusalém em 1953.
- A profissão de eunuco segundo Daniel
O “Livro de Daniel” descreve o fim do reinado de Nabucodonosor e o primeiro ano do governo persa de Ciro. Daniel é o único dos Profetas de Israel que relata com luxo de detalhes a carreira de eunuco.
A narração começa quando o rei babilônico envia o chefe dos eunucos, de nome Asfenaz, com uma ordem para importar jovens israelitas oriundos de famílias nobres. Isentos de quaisquer defeito corporal, bem dotados, de boas maneiras, instruídos e inteligentes; todos eles estavam destinados a ingressar nos serviços da corte. Imediatamente, eles serão ensinados a escrever e entender a língua dos caldeus, falada na Mesopotâmia.
A alimentação dos eunucos era de alta qualidade, pois o rei destinava uma provisão cotidiana, retirada da própria mesa real. Seus alimentos e seu melhor vinho estariam destinados aos eunucos judeus. O aprendizado demoraria uns três anos, mas logo depois o eunuco estaria prestes a incorporar-se ao serviço da corte.
São quatro os eunucos de origem judaica mencionados no “Livro de Daniel”: Daniel Ananias, Michael e Azarias. Os persas nunca aceitaram de bom grado que os eunucos judeus tivessem nomes israelitas. Por isso, eles solicitaram ao chefe dos eunucos que, obrigatoriamente, mudasse seus nomes. Assim, Daniel passou a ser Baltazar; Ananias foi Sidrac; Michael foi Misac e Azarias passou a denominar-se Abdenago.
A relação do Profeta Daniel com os eunucos judeus é interessante e merece nossa atenção. Daniel e estes eunucos queriam comer e beber “kasher” e, por isso, resolveram abster-se de comer e beber pratos servidos na mesa do rei. O chefe dos eunucos, com temor justificado, atendeu à vontade do profeta, embora o alerta-se que o rei poderia descobrir tudo, notando a diferença na fisionomia (mais frágil) entre ele e as dos outros jovens da mesma idade. Ele temia uma possível retaliação por parte do governante.
Ciente disso, Daniel solicitou ao chefe dos eunucos fazer uma experiência durante dez dias. Neste período, os eunucos e ele comeriam somente legumes e beberiam apenas água. Finalmente, todas as partes concordaram em realizar essa experiência. No final dela, conta a Bíblia, ficou comprovado que os judeus tinham melhor aparência, pois estavam muito melhor alimentados que todos aqueles moços que comiam as delícias da mesa real.
Passados os dez dias, os eunucos Daniel, Ananias, Michael e Azarias foram apresentados a Nabucodonosor, entrando a serviço da corte. Dai em diante, em qualquer tipo de assunto, no qual era necessária a sabedoria e a sutileza, o rei os consultava, “pois os achava dez vezes superiores a todos os escribas e magos do reino” (Daniel 1:20).
O “Livro de Daniel” relata também as qualidades dos eunucos judeus. A estes quatro, “D´us concedeu talento e saber no domínio das letras e das ciências. Daniel era particularmente entendido na interpretação de visões e sonhos” (Daniel 1: 17).
Palavras finais
O tema abordado foi pouco estudado e ainda hoje existem tabus por parte de pesquisadores que acreditam que temas como castração e impotência não devem ser discutidos. Os eunucos que atuavam junto aos reis tiveram um papel relevante na importação e cuidado de donzelas da corte, como no caso do persa Hagai e os sete eunucos de Ahasverus. Alguns deles tomaram parte no comando das forças militares, como no caso de Nebuzesba, e naturalmente destacaram-se na administração e finanças, como no caso do egípcio Putifar.
Os quatro eunucos judeus citados no “Livro de Daniel” nos permitem conhecer com maior profundidade a “profissão” de eunuco, e a importância destes altos funcionários da máquina imperial.
Finalmente, e parafraseando o profeta Isaías, todos os eunucos, sem exceção, estejam na Babilônia, na Pérsia, na Etiópia, no Egito ou na Terra de Israel, não passavam de “lenhos secos”, que tinham como principal obrigação cuidar que a eterna chama do prazer nunca se pague.
Bibliografia
Gênesis, 37: 36; Gênesis, 39: 1-7, 39: 9
Levítico, 21: 18-20; Levítico, 22: 24
Deuteronômio, 23: 1
Reis II, 25: 19
Isaías, 56: 3-5
Jeremias, 29: 2; Jeremias, 38: 1-13; Jeremias 39: 3 e 39: 13-14
Daniel 1: 3-7
Ester 1: 10-12; Ester 2: 3
Ben Sirah 30: 34
Talmud, Yebamot 8: 3, 70a, e 97.