A lenda
Uma lenda sionista muito difundida nos círculos sionistas relata de que maneira, numa manhã chuvosa de 1878, um grupo de pioneiros oriundos de Jerusalém chegou até os pântanos da aldeia árabe de Kfar Umlibs, para cristalizar o sonho de construir a primeira colônia hebraica na Terra de Israel.
Acompanhados pelo Dr. Mazraki, os jovens sionistas foram informados que nesse lugar de morte não se escutava há tempo o som de pássaros e, portanto, teriam dificuldades em erguer uma aldeia agrícola. Somente após Yoel Moshe Salomon (1838-1913) convencer os pássaros a cantar, seria possível construir casas para os primeiros assentados na colônia. Desta forma até hoje a empreitada sionista e a música do eterno Arik Einstein continuam unidas. Surgia assim a colônia de Petach Tikva.
Entre os historiadores paira a dúvida se realmente Thelma Bentwich Yallin, (nascida poucos anos depois na Inglaterra), conhecia esta lenda. Porém, fica claro que na sua vida Sionismo e música aparecem fortemente entrelaçados.
Uma família sionista de músicos
O lar de Herbert Zwi e Susanna Lucy Bentwich em Londres vivia impregnado de ideais sionistas. Herbert era advogado e organizou a delegação de representantes britânicos que participaria no Primeiro Congresso Sionista organizado por Theodor Herzl na Basileia em 1895.
Herbert Bentwich (1856-1932) recebeu na sua residência a Theodor Herzl e Israel Zangwill, conhecendo também ao Dr. Chaim Weizmann e ajudando a este último na redação final da “Declaração Balfour” em 1917.
O amor à Terra de Israel que reinava na casa de Herbert Bentwich se aliava ao amor que esta família sentia pela música. Sua esposa Susan (Shoshana) era uma pianista talentosa que havia abdicado de sua carreira profissional para dedicar-se a seus 11 filhos, aconselhando-os na escolha de algum instrumento para tocar. Desta forma, ao lado do quarto de brinquedos; se constituíram pequenas orquestras com trios e quartetos do próprio núcleo familiar. Estes trios eram formados basicamente por um pianista, um violinista e um cellista. Assim, com o passar do tempo, ia-se lapidando o perfil musical da nona filha de Herbert, a pequena cellista Thelma.
Thelma Bentwich Yellin nasceu em Hampstead, Londres, em 1895. Virtuosa, tocava diversos instrumentos musicais, mas o favorito era o cello, treinando obras com uma força e dedicação fora do comum. Ainda jovem, sua dedicação à música a converteu em alvo de vários conjuntos de câmera, que a procuravam para fazer parte deles.
Aos 16 anos, Thelma ganhou uma bolsa por três anos para continuar seus estudos no “Royal College of Music” de Londres, recebendo aulas do cellista espanhol Pablo Casals (1876-1973), conhecido internacionalmente, era o convidado de honra dos maiores auditórios do mundo. Rapidamente, Casals descobriu o talento de Thelma como também o enorme potencial a ser aproveitado.
Margery Bentwich, a irmã de Thelma, na sua obra “Thelma Yellin – Pioneer Musician” (pág. 17) conta uma história em que certa vez Casals lhe confessou a Thelma sua enorme vontade de ser regente de orquestra, ao que Thelma respondeu: “mas… existe apenas um único cellista como o Senhor”. Homem humilde, após escutar os elogios, o maestro espanhol retrucou: “Pois bem, sendo assim, você será esse único cellista”.
O tempo passava e a música ia preenchendo a vida de Thelma. Em 1914, aos 19 anos, escreveu em seu diário pessoal (pág. 18) o seguinte: “Os anos [da 1ª Guerra] foram anos prazerosos, vejo que tudo aquilo que faço tem importância. Não quero que esta época passe rapidamente. Rogo para que a cada dia possa escrever em meu diário uma nova atividade, pois afinal, seja a música ou outra atividade, todas colaboram para colocar um degrau mais na escada…. A vida é curta demais, mas aquele que persiste dia-a-dia em seu ideal, poderá prolongar seus dias”.
Pablo Casals era tido como um músico revolucionário. Em 1909 levou aos auditórios as “Bach Suites for Cello” sem acompanhamentos de outros instrumentos, inaugurando assim um novo repertório para concertos de cello. Seu último concerto, aos 97 anos, foi ministrado a pedido da Primeira Ministra Golda Meir em Jerusalém em agosto de 1973, pouco antes da “Guerra do Yom Kippur”.
Dificuldades e dúvidas
Mesmo aproveitando cada momento que a música lhe brindava, Thelma enfrentava dúvidas e dificuldades, todas legítimas em tempos de uma Guerra Mundial. Uma das inquietações estava vinculada ao fato de trabalhar com algo tão irrelevante como a música no momento em que o mundo enfrentava um conflito bélico em que estava em jogo a vida e a morte. Naquele exato momento ela escreveu em seu diário (pág. 22): “O mundo se apresenta a cada dia mais escuro e triste… durante as noites reflito como tudo isto é terrível, um sentimento de desespero me invade como uma tempestade… Tênues são meus esforços por tentar fazer algo perante as dificuldades avistadas num futuro próximo. Mesmo assim, sei que a música é algo grandioso. Nestes dias tensos, me sinto abençoada por poder pensar… Sei também que posso trazer a beleza [da música] para outros”.
Thelma colaborou com o bloco dos aliados durante a Primeira Guerra apresentando-se diante de soldados que serviam no front, (franceses), realizando uma longa e cansativa turnê, porém extremamente exitosa. Sem dúvida, estes 4 anos de guerra não foram fáceis para Thelma, pois além de viajar muito pela Europa também perdeu sua mãe, a coluna vertebral de sua amada família. Thelma sonhava em seguir o exemplo de sua mãe, uma mulher que conciliava com a maior facilidade música e religião.
Não obstante, logo descobriu que esta dualidade é pouco provável, pois uma boa parte dos concertos realizava-se aos sábados. Somente algumas vezes, levando em conta seu pedido, os organizadores escolhiam outros dias. Sem dúvida, a atividade musical e a religião geravam um grande dilema existencial, pois tocar música era em certa forma sentir-se livre e observar os preceitos judaicos era sentir-se limitada em sua atividade profissional.
A esta controvérsia existencial devemos adicionar um episódio amoroso que aconteceu com Thelma. Nos anos da guerra se apaixonou por um jovem estudante de medicina e amador de música. Sendo filho de pai judeu e mãe cristã, ela decidiu não levar adiante a relação em prol de sua convicção religiosa.
O recomeço em Israel
O retorno a Terra de Israel após a sucedida turnê era o desfecho natural de Thelma Bentwich. Mesmo saudosa das lembranças da infância, a terra prometida aos judeus na controversa “Declaração Balfour” falava mais alto. Duas de suas irmãs haviam chegado a Israel e seu irmão Norman, (conselheiro jurídico para assuntos da Palestina Mandatória) também havia decidido morar com sua esposa naquela disputada região. Em 1919, Thelma juntou-se a seus irmãos indo morar em Jerusalém, acalmando suas angustias e dores pela guerra e a perda da mãe.
No segundo dia de sua estadia em Jerusalém registrou em seu diário (pág. 36): “Jerusalém, com seu seu clima ensolarado e de ventos leves, com seu ar que agita acácias e pinheiros, com suas estradas empoeiradas; satisfaz-me por completo. O bairro dos alemães [heb: moshavá guermanit] é uma aldeia agrícola e sua população está dividida de forma equilibrada entre britânicos e árabes, havendo ainda alguns soldados hindus. Estes últimos costumam rezar num santuário localizado frente à janela de meu quarto…. Agora me sinto mais tranquila que anteriormente. É a primeira vez na vida que o sentimento de competir me abandonou. Me conforta saber que sou apenas uma a mais neste ciclo de seres humano”.
Thelma diminuiu consideravelmente seu ritmo de trabalho em comparação àquele da Europa, mas nunca deixou de viver intensamente para poder cristalizar seus sonhos. Em Jerusalém aprimorou o hebraico e ampliou seus relacionamentos com os nativos, continuou tocando seu cello fazendo apresentações em grupos musicais diversos.
Na Terra de Israel começavam as primeiras sementes de uma cultura musical mais organizada. Em Tel Aviv existia a escola de música “Shulamit”, fundada pela cantora Selma (Shulamit) Ruppin (1873-1912), a primeira esposa do economista, sociólogo e líder sionista, propulsor da colonização agrícola em Eretz Israel e Presidente da Agência Judaica, Arthur Ruppin.
Thelma entendeu rapidamente que o lar nacional judaico nascido da “Declaração Balfour” de 1917 precisava também de música. Thelma Bentwich solicitou ajuda do 1º administrador civil da Palestina, Sir Herbert Samuel, do governador de Jerusalém e de Norman Bentwich, para criar em 1921 a “Musical Society of Jerusalém”, uma entidade que organizaria concertos para judeus, árabes, britânicos, alemães e membros de outras tantas nacionalidades, mas também abrigaria os grupos musicais já existentes na colônia britânica.
Norman Bentwich era um sionista abnegado à causa de um lar nacional judaico, mas pela sua simpatia e dedicação aos interesses britânicos, era também visto por alguns como traidor e até inimigo do Sionismo. Somente após sofrer um sério atentado sendo ferido por um árabe e após ser desonerado do cargo pelos ingleses, Norman ganhou novamente a simpatia dos sionistas.
Entre 1920-1921, Thelma conheceu o amor de sua vida, o engenheiro e arquiteto Eliezer Yellin (1888-1945), filho de Ita e David Yellin (1864-1941), considerado o maior linguista, educador e pedagogo do ishuv, tal como era denominada a sociedade judaica antes da independência do Estado de Israel. Ita, por sua parte, era filha do rabino Yechiel Michel Pines, um membro do “Chovevei Zion” (Amantes de Sion). Casaram-se em 1921 prometendo formar um lar judaico em que Thelma não renunciaria jamais à música mesmo sendo mãe. E assim foi, tiveram 4 filhos: Shoshana, Yehudit, Yona e Julia.
Depois do nascimento de sua primogênita Shoshana, em janeiro de 1922, Thelma registrou em seu diário o seguinte (pág. 50): “Divido meu tempo entre o bebê e a sociedade de música, mas garanto a vocês que esta última me causa mais problemas que a primeira”.
Em Jerusalém se estabeleceram no aristocrático bairro de Rechavia, centro da intelectualidade emergente de Jerusalém. Eliezer Yellin junto a seus sócios Hacker e Kaufman montaram seu escritório em Rechavia construindo por toda Jerusalém. Dentre as construções mais famosas está o prédio do “Seminário de Professores” (Seminar Le-Morim) no bairro de Beit Há-Kerem, depois denominado “Seminário David Yellin”.
Entre o shofar e o cello
Em 1924 o escritório de Eliezer Yellin desenhou e construiu sua própria casa em Rechavia, convertendo-se num breve espaço de tempo em foco de peregrinação de escritores, artistas plásticos e músicos. Nesta residência funcionou ainda o primeiro jardim de infância do bairro frequentado por seu quarteto de filhas.
Nos anos seguintes agilizou Thelma sua atividade musical. Com as filhas já crescidas voltou a apresentar-se na Europa com figuras de projeção internacional. Nos anos 30 começaram a migrar para a Palestina Mandatória músicos que fugiam do antissemitismo propagado pelo regime nacional-socialista de Adolf Hitler. Para ajudar estes músicos refugiados do Nazismo, a cellista organizava alguns concertos em que eles tocavam. Outra forma de aproveita-los era dando aulas nas escolas de música que iam surgindo.
Em 1933 Thelma dirigiu uma escola musical que se converteria no “Conservatório de Música de Jerusalém” fundado naquele mesmo ano. As atividades musicais não pararam naqueles anos 1933-1936. A revolta árabe paralisou a economia do ishuv, mas a música não foi atingida. Em 1936 os músicos judeus que trabalhavam na Palestina tiveram a grande oportunidade de tocar sob a regência do maestro italiano Arturo Toscanini (1867-1957), um virtuoso na regência das operas de Verdi, sinfonias de Bethoveen e composições românticas de Richard Wagner.
Durante os trágicos incidentes entre árabes e judeus dos anos 30, Avinoam Yellin (cunhado de Thelma) foi brutalmente assassinado. Triste pela perda, Thelma não deixou que isto silenciasse a música tocada na Terra de israel. Tempo depois, escreveu um artigo intitulado “A música da Terra de Israel entre as Guerras” em que ela desabafa dizendo “Sempre que nos afogamos precisamos fazer música”. Em outras palavras, em tempos de tristeza, dor e morte só a música poderá nos tirar dessa terrível situação.
A segunda Guerra
Os anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foram anos de enorme tristeza para a família Yellin. Primeiramente, os pais de Eliezer faleceram um atrás do outro, deixando um enorme vazio na família. Desnorteado pela morte dos pais e a grande quantidade de trabalho acumulado no escritório, a saúde de Eliezer Yellin ficou totalmente enfraquecida. Em pouco tempo, ainda antes de encerrar-se a segunda guerra, veio a falecer.
Durante meses Thelma Yellin não conseguiu tocar música. No entanto, gradualmente, as forças para recomeçar foram voltando até prevalecer. A valiosa ajuda de suas filhas, o casamento de Shoshana e o nascimento do primeiro neto, devolveram a Thelma a alegria de viver.
No verão de 1947, Thelma viajou pela primeira vez aos Estados Unidos, desta vez patrocinada pelas instituições que governariam o futuro Estado judeu. Foi escolhida pelos membros da liderança sionista por seu forte patriotismo e seu compromisso com a música. No caminho aos EUA fez uma parada na Inglaterra visitando uma sinagoga em Yom Kipur. Naquele momento entendeu perfeitamente quão longo havia sido o caminho percorrido em meio século de vida. No seu diário (pág. 90) colocou assim: “De lá [sinagoga] continuei rumo ao salão localizado em Westminster para ouvir Fournier tocando com Schnabel a sonata de Brahms. A sensação era de ter minha alma dividida: a música era prioritária ao próprio som do shofar. Não há dúvida alguma que em Israel nos distanciamos, – para bem ou para mal – do Judaísmo tradicional”.
Em palavras simples, para Thelma, correr a um auditório em Westminster e ouvir sonatas de Johannes Brahms pelo cellista francês Pierre Fournier (1906-1986) e pelo pianista austríaco Artur Schnabel (1882-1951), tinha maior significado de que escutar o som do instrumento mais antigo do mundo, testemunho dos principais episódios vividos pelo povo de Israel.
A visita aos EUA trouxe à tona grandes desafios e experiências enriquecedoras. Thelma Yellin se apaixonaria pelas grandes cidades, sentiria a efervescência musical ali presente, adoraria conversar com lideranças comunitárias, e principalmente relataria aos ouvintes a complicada situação que atravessava o ishuv na sua árdua luta pelo Estado.
As vésperas da votação da “Partida da Palestina” nas Nações Unidas Thelma escreveu em seu diário (pág. 93): “Me sinto como se estivesse pendurada do ar entre New York e Jerusalém, sem saber o que nos deparará o amanhã. Um novo volume da nossa história está sendo escrito agora e gostaria de poder ler a última página dele. Poderei dizer que estive presente nesse momento crucial”.
Thelma Yellin voltou à Israel pouco depois de declarada a independência do Estado. Até sua morte em 1959 continuou apresentando-se, lecionando e criando novas instituições musicais. Seu último projeto foi a fundação de uma escola secundária para ensino da música. Nela os alunos poderão dedicar seu tempo a estudos curriculares obrigatórios e a estudos de música avançados. Este colégio de artes abriu suas portas logo depois do falecimento de Thelma Yellin e existe ainda hoje.
Thelma Bentwich Yellin, que certa vez se conformava em ser apenas mais um ser dentre os seres humanos, deixou sua marca no ensino sistemático da música, contribuindo assim para criar uma cultura única na Terra que tanto amou.
Bibliografia
Bentwich, Margery, Thelma Yellin, Pioneer Musician. Jerusalem 1964.
Bohlmann, Philip V., The Land where Two Streams Flow: Music in the German-Jewish Community of Palestine. University of Illinois, 1989.
Bohlmann, Philip V., The world Centre for Jewish Music in Palestine, Oxford 1992
Hirshberg, Jehoash, Music in the Jewish Community of Palestine (1880-1948): A Social History. Clarendon Press, Oxford, 1995.
Thelma Bentwich Yellin. The Jewish Virtual Library. https://www.jewishvirtuallibrary.org/yellin-bentwich-thelma
תלמה ילין – מכתבים מהשנים 1959-1912, כפי שנאספו ונערכו על ידי בתה ויולה הכהן-ילין, תרגום מאנגלית – יוסף אופנר, עריכה דליה זומר, ירושלים 2003
Thelma Yellin, Cartas dfos anos 1912-1959. Segundo foram publicadas e editadas pela sua filha Viola Julia Hacohen-Yellin; traduzidas do inglês por Yoseph Hopner, editadas por Dália Zumer. Jerusalém 2003.