No dia 19 de março de 2024, durante uma visita realizada ao cemitério da Moshavá Kineret, localizado a 6 km da cidade de Tiberíades, tive a oportunidade de conhecer o túmulo da poetisa Rachel Bluwstein (1890-1931); conhecida como a primeira escritora judiada Palestina britânica e um dos pilares da nova literatura israelense.
Diante de sua sepultura escutei pela primeira vez o poema de amor “Encontro, meio encontro”, versos musicados em 1974 pelo jovem cantante israelense Chanan Yovel. (https://youtu.be/UNB2AnUXL1o).
o quebra-mar da felicidade e da dor.
é como se não existisse.
Ao analisar o poema surgem as primeiras perguntas: De que encontro fala a escritora Rachel? Um encontro real ou imaginário? Afinal, existe encontro ou não existe, mas qual o motivo de optar por apenas “meio encontro”?
Revendo meu caderno de anotações e reconstruindo as explicações da nossa guia, resgatarei aquilo que a poetisa quis exprimir. Obviamente, o texto traz um encontro imperceptível entre duas pessoas que já no passado mantiveram um romance, experimentaram vivencias únicas, atravessaram momentos de alegrias e tristezas, acumulando uma sorte de encantos e desencantos.
A poetisa Rachel imagina um encontro breve, fugidio, entre ela e seu amado. Ali não houve tempo para nada, sequer para um olhar mais atento. Foi uma convergência fugaz face a um amor esquecido, que subitamente despertou nela um turbilhão de emoções e sentimentos, de sensações pretéritas que “atormentam” sua alma.
De forma metafórica, Rachel Bluwstein constrói para si mesma uma “represa de esquecimento” para proteger-se de uma aluvião de lembranças vividas junto a seu ex-amado. No entanto, as barreiras levantadas para represar seu passado desabam por completo, retornando, mesmo sem saber, as margens de um lago tempestuoso, quiçá uma metáfora para indicar o perigo de enfrentar memórias do passado, das quais é impossível voltar a beber.
Para analisar este profundo poema da escritora Rachel, é necessário entrar nos meandros de sua personalidade. Ela chegou com uma irmã a Palestina britânica em 1908, com18 anos. Mulher de extrema sensibilidade, conheceu seu marido em Paris, onde foi estudar agronomia. Sua vida amorosa é desconhecida e só sabemos que o casal nunca conseguiu superar a falta de filhos.
O poema “Encontro, meio encontro” escrito em Tel Aviv em 13 de abril de 1925, ilumina o lado psicológico da escritora. Ela tem 35 anos e sofre de tuberculose. A obra de Rachel revela não apenas uma alma em litígio, controversa e dilacerada pela doença; como também uma vida sentimental atribulada e repleta de conflitos.
Raquel Bluwstein percebe rapidamente que o esquecimento do antigo amor surtiu um efeito contrário: ele fez ressurgir o passado com uma intensidade impensável. Talvez seja esse o destino das nossas vidas, afastar acontecimentos indesejáveis, mesmo sabendo que em determinado momento tornarão a irromper em nossas memórias. “Encontro, meio encontro” da escritora Rachel traz um questionamento básico da própria essência humana: não importa quanto nos blindemos do esquecimento da memória, sempre haverá algo prestes a emanar das profundezas da alma. Essa implosão de sentimentos poderá nos afundar ou circunstancialmente gerar uma sensação de nulidade e impotência. Mas, por outro lado, dita implosão poderá alimentar um lado positivo, criando uma vontade especial de querer concertar o mundo (tikun), a ponto de “ajoelhar-se na beira de um lago tempestuoso para beber dele e saciar-se”.
Com uma intuição impressionante, nos versos “Encontro, meio encontro” Rachel cria sua própria concepção de mundo, baseada em ideias extraídas da psicologia: cada ser humano(em lugar e tempo pré-determinado) deverá controlar, moldar e aprimorar seus sentimentos, na felicidade e na dor, na alegria e na tristeza. Quando os sentimentos não são “trabalhados” adequadamente ficando ocultos por trás de muralhas ou -como escreve a poetisa – “represas do esquecimento”, eles tornarão inesperadamente para irromper com maior intensidade.
Raquel é a escritora da Segunda Aliá (2ª leva migratória de judeus do leste europeu), que viveu uma forte crise emocional. Talvez por isso, como válvula de escape, ela optou por escrever. Quem lê seus belos poemas, percebe que há na sua escrita um encontro imaginário entre seu mundo exterior e seu mundo interior. A escrita lhe permite a Rachel enxergar a ordem sequencial das coisas, a saber:
1) Recriar o encontro, 2) Gerar e lidar com uma situação de implosão sentimental resultado do encontro, 3) Ignorar a “represa de contenção” por ela construída, e, finalmente 4) Retornar ao lago tempestuoso para “beber e saciar-se”.
Naquele encontro fortuito, mesmo que não tenhamos a menor ideia se existiu, onde foi e com quem se encontrou; Raquel foi conduzida até as profundezas de um lago (Kineret), e desta forma vivenciou momentos fugidios, tornando a validar suas memórias, reverenciando momentos de alegria e plenitude. Somente após beber das águas abençoadas, ela consegue processar seu passado.
Nesse processamento Raquel Bluwstein não guarda mágoa, ressentimento, rancor ou ódio. Tampouco manifesta um estado de ânimo ruim, nervoso ou infeliz. Ela adora penetrar em seu interior para retroalimentar-se. Certamente, o risco de machucar-se com uma onda gigantesca (misto de felicidade e dor)paira o tempo todo dentro de sua alma. Desta forma, trocar essa ambígua sensação de fortes contrastes pela sensação de saciedade é para Raquel uma opção plausível.
O poema “Encontro, meio encontro” nasce e cresce cercado de água, mesmo que a palavra água (maim) não apareça sequer uma vez nas estrofes. Por quê? Talvez para usar e abusar de metáforas, vivência essencial e única das nossas atribuladas vidas. Afinal, a implosão, a tempestade e o confronto de forças diametralmente opostas como felicidade e dor, são partes inseparáveis do cotidiano.
Para Rachel a água é vida. A água destrói, mas também constrói. Todos devemos reconhecer sua força. Ao beber das águas compreendemos a necessidade de saber encarar a vida com seus momentos bons e não tão bons.
Há nos versos de “Encontro, meio encontro” sete expressões que sinalizam de forma clara a invisibilidade das águas e a visibilidade dos batimentos da alma. São elas: o alagamento (inundação), a agitação (tempestade), o quebra-mar, a represa, o lago tempestuoso e beber e saciar-se. A sólida represa de contenção construída por Rachel caiu no esquecimento; ela “estava como se não existisse” atestam seus melancólicos versos. Mas…como assim? Exatamente assim. Se o objetivo principal da represa é a contenção das águas, sem dúvida essa barreira, (mesmo sem ter desabado), não preenchia mais nenhuma de suas funções. E se ela não mais existe, “beber e saciar-se” são atos que legitimam sua desaparição e, consequentemente, sua funcionalidade.
O “Encontro, meio encontro” descreve um diálogo registrado na Bíblia no “Cântico dos Cânticos” (8:7) do Rei Salomão: “Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-lo na correnteza”. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado”. O texto bíblico fala de um amor desperdiçado, desaproveitado, perdido. Um olhar atento e reflexivo revela que nenhuma das adversidades ocasionadas pela natureza conseguirá resgatar ou reviver um grande amor. Por quê? Porque trata-se aqui de um amor romântico que nenhum encontro fugaz será capaz de ressuscitar.
O encontro de segundos, sustentado num piscar de olhos, poderá jogar um feixe de luz e compreensão nas duas pessoas envolvidas; porém jamais conseguirá reviver tempos idos. É justamente aqui que aparece a ideia mais significativa do poema: Concretizar um encontro ou apenas meio encontro, direcionar um olhar súbito e pronunciar palavras incompreensíveis, já é o suficiente… resta enfim aproximar-se até o lago tempestuoso, ajoelhar-se e beber dele até saciar-se.
A grandeza do poema “Encontro, meio encontro” da escritora Rachel, reside no fato de que, mesmo sendo um texto extremamente curto, consegue aproximar o leitor a um manancial inesgotável de sabedoria e profundidade.
Referências
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BAND, Ora. Modern Hebrew Prose and Poetry. West Orange, NJ: Fitzroy Dearborn, 2003. 826. Ebook 3600. (PDF file).
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GOZLAN, M. Quand Israël rêvait, La vié de Rachel Bluwstein. Paris: Les Éditions du Cerf, 2018.
KARK, R.; SHILO, M.; HASAN-ROKEM, G. Jewish Women in Pre-state Israel. 2008.
KRITZ, R. The Poems of Rahel, the Poetry of Rahel (Hebrew). Tel Aviv, 2003.
KUSHNIR, M., ed. Rachel and her Poetry: Selected Memoirs and Critical Appraisals (Hebrew). Tel Aviv, 1971.
MIRON, D. Founding Mothers, Stepsisters (Hebrew). Tel Aviv, 1991.
Textos de Rachel Bluwstein
https://www.kibutz-poalim.co.il/
https://shironet.mako.co.il/artist?type=lyrics&lang=1&prfid=901&wrkid=3876
Músicas aos poemas de Rachel Bluwstein
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