Uma arqueóloga na Terra Santa: Lady Hester Lucy Stanhope (1776-1839).

No início do século 19, Hester Stanhope, uma filha da antiga aristocracia inglesa de temperamento forte, porém solitária e esquisita, chegou ao vilarejo árabe Aljún, ao sul do Líbano; e lá se estabeleceu cercada de um pequeno exército de funcionários que a serviam dia e noite. Para a severa formalidade britânica Lady Hester apresentava um caráter dócil e romântico; alternando pitadas de mistério e exotismo. Na opinião de muitos, não seria a primeira nem a última moça de posses a trocar Londres por um isolamento voluntário no Oriente.

Viajantes que ancoravam no pequeno porto de Beirute, um percurso obrigatório na peregrinação à Terra Santa; faziam questão de visitar a Lady; verdadeira atração da região. Hester não costumava agendar com facilidade seus hóspedes, e todos aqueles que conseguiram um encontro deixavam suas impressões por escrito.

A visita de Alphose Lamartine

O escritor e diplomata francês Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine (1790-1869), que visitou a Síria e a Palestina turco-otomana; descreveu o percurso exaustivo feito à cavalo pelas montanhas e ladeiras desde Sidon até a afastada aldeia de Aljún, localidade de Lady Hester e sua comitiva.

Hester Lucy Stanhope recebeu Lamartine durante a noite, pois segundo ela “o dia estava destinado para o descanso”. Seu quarto, mobiliado e decorado no mais típico estilo oriental com vários tapetes, cortinas coloridas, espelhos de diferentes tamanhos, narguilas, um delicado jogo de samobar com xícaras de café e finjan; tudo contrastando com sua esbelta figura, alta como uma palmeira, com seus olhos azuis e seus vestidos longos à moda árabe.

Lamartine contou ainda que ao longo da entrevista com Lady Hester, com duração de uma hora, ela fumou uma das narguilas, algo bem exótico para a época. Com pretensões de ser a rainha da Inglaterra, ela era muito carismática e falava com as pessoas, sem parar, de 10 a 12 horas diárias.

A hospitalidade de Hester Lucy Stanhope era mencionada por Charles L. Meyron, seu médico e amigo pessoal:

“Ela me recebeu com grande prazer, me beijou as faces, me convidou com cachimbo, café, e uma jarra de água de rosas; tudo de forma civilizada; e isto era tido no Oriente como modos de cordialidade e distinção”.

 

A linhagem da Lady

Hester Lucy Stanhope nasceu em 12 de março de 1776 em Londres, no berço de uma família nobre. Seu avô, Lord Chatham, havia sido um dos fundadores do Império britânico, e sua mãe era irmã de William Pitt 1st Earl Chatham, o político mais novo a ocupar por duas vezes (1783-1801 e 1804-1806) o cargo de Primeiro Ministro da Grã Bretanha durante o reinado de George III. Pitt foi responsável pelos violentos combates marítimos entre a Inglaterra e a França de Napoleão Bonaparte.

Em 1800 foi morar com sua avó quem a criou. Passados alguns anos, seu tio Sir William Pitt ficou viúvo jovem e Hester lhe organizava a casa servindo-lhe também como uma espécie de dama de companhia, secretária particular e até conselheira. Durante dois anos sua influência na política britânica foi marcante. Ao morrer o tio William, Hester Lucy sentiu uma queda drástica na sua situação financeira.

Por 1810, sérias dificuldades na situação econômica da mãe (nada sabemos do pai) levaram Hester Stanhope a viajar ao Oriente. Durante a viagem, em Malta, a inglesa de 34 anos conheceu um belo rapaz de nome Michael Bruce, filho de uma rica família escocesa; 11 anos mais jovem que Hester; os dois se apaixonaram e decidiram continuar juntos a viagem. O pai do Michael, que era um homem de posses, não aprovava a relação, e a desgosto bancava as despesas dos pombinhos.

Lady Hester e Michael Bruce visitaram as ilhas gregas, conheceram o poeta Lord Byron, passearam por Istambul e Cairo, chegando a Síria e Terra Santa. Hester foi a primeira mulher a visitar Palmira, uma cidade surgida no período romano.

Várias lendas circulavam na Inglaterra acerca da figura de Hester Stanhope. Uma delas dizia que em Palmira, Hester foi coroada por xeiques beduínos como a Rainha dos Árabes. Documentos descobertos há 30 anos atrás, revelam que, de fato, não aconteceu exatamente uma coroação. Comprados com bons presentes pagos com o dinheiro do pai de Michel Bruce, os beduínos prepararam para Hester uma recepção digna de uma rainha, com direito a uma “fantasia” como mandam seus costumes. Esta pseudo-coroação foi totalmente fictícia e servia como jogada de marketing para difundir a imagem da própria Lady na Europa.

As longas viagens de Hester e Michel eram bem caras para a época. O pai de dele, já cansando de desperdiçar dinheiro com as loucuras do casal, pediu para que seu filho Michael retornasse a Grã Bretanha. Certamente, a esta altura da vida conjugal Hester devia achar a companhia de Michel Bruce monótona e o enviou para casa, passando assim a se sentir totalmente livre para dar continuidade a suas próximas aventuras. Ela não queria voltar para Londres, pois foi ali que havia vivido parte de seu infeliz passado. Sua relação com a metrópole e sua população era uma mescla de desprezo e desapontamento; preferindo ficar no mágico Oriente; como sempre repleto de contos e lendas.

Manuscrito indica tesouro

Naqueles tempos, começavam as expedições arqueológicas na Terra Santa. Certo dia, Hester adquiriu um manuscrito italiano, escrito por um padre antes de morrer. O manuscrito falava da existência de um tesouro de 3.000.000 de moedas de prata, ocultos entre as ruínas de um antigo templo de Asquelon. Então, tendo em mãos este dado, a inglesa solicitou aos políticos turcos autorização para procurar aquele tesouro para eles.

A sugestão de Hester fascinou as autoridades turcas que enviaram uma carta desde Constantinopla para o kamaikan (prefeito) de Yaffo, Aga Mohamad (mais conhecido como Abu-Nabot); solicitando ajuda em tudo aquilo que ela precisar. O kamaikan de Acre de nome Solimão, subalterno do exigente Abu-Nabot; também deu ordens a seu secretário Chaim Farchi para dar suporte à Lady Hester. A rigor, o cheiro do dinheiro motivou todos a participar da caçada ao tesouro.

As fontes para entender o episódio de Asquelon são as próprias cartas de Hester e o depoimento de seu médico particular, o Dr. Charles Meryon, que a acompanhava durante anos pela região. Sobre a chegada da caravana turca ao acampamento para dar início às escavações, ele escreve:

“Nunca vi tamanha pompa e luxo. Desde Acre avançava a caravana custodiada pelos soldados e com ela o Ministro turco. Hester cavalgava uma égua cuja cela era típica de dignitários que viajam à Meca. Sobre os cavalos cavalgavam os homens ricos do Oriente, antecedidos por outros que seguram tochas acesas. A caravana fez duas paradas, em Haifa e Cesaréia; lugares onde foram montadas barracas; mas a de Hester era extremamente luxuosa”.

Seguidamente, continua relatando o médico:

“a população local recebia à caravana ao som de trombetas e pandeiros. Tamanho o alvoroço com a chegada da pálida princesa, que a desceram da cela carregando-a nos ombros”.

Abu Nabot mobilizou aproximadamente 150 pessoas de Asquelon para ir trabalhar nas escavações de Hester. As intermináveis buscas começaram nas proximidades da mesquita, sitio de ruínas onde, -segundo a Lady-, poderia estar oculto o tesouro.

As ferramentas para escavar as ruínas de Asquelon chegaram de navio com ajuda de marinheiros. Eram martelos de diversos tamanhos, picaretas, rastelos, cordas grossas para levantar estatuas e colunas, entre outros. Durante o curto período de escavações Abu Nabot ordenou que 100 homens da redondeza ajudassem nas escavações, sem receber salário, apenas como forma de manifestar sua lealdade ao governo turco. Enquanto as escavações aconteciam, Hester recebia pessoas em sua barraca e pela tarde cavalgava as ruínas de Asquelon montada num jumento para poder apreciar de perto o avanço do trabalho arqueológico.

Quando a Lady se aproximava ao sitio arqueológico, os trabalhadores turcos se empenhavam ainda muito mais nas escavações. Ela proibiu terminantemente no perímetro das escavações todo tipo de abusos (ex: açoites, chicotadas) cometidos pelos governantes e funcionários turcos. Além disso, Hester L. Stanhope obrigou os governantes turcos a alimentar a seus trabalhadores com duas refeições diárias. Os responsáveis pelas escavações eram o francês M. Bodian, o kamaikan de Yaffo, o cônsul da Áustria em Acre, o adido consular de Yaffo Mr. Damiani, e o Dr. Charles Maryon, acima mencionado.

Vestígios arqueológicos

No primeiro dia das escavações de Asquelon foram descobertos restos de colunas de marfim com capitéis de estilo corinthio. Os trabalhadores suspeitaram que o terreno já havia sido escavado anteriormente. Todas as suspeitas recaiam agora sobre Abu Nabot que tinha obtido fama de corrupto e agora fiscalizava os trabalhos arqueológicos. A uma profundidade ainda maior foram achadas colunas de granito.

No quarto dia as escavações revelaram novas surpresas: aparecia uma estatua sem cabeça com sua base quebrada em vários pedaços. A estatua tinha dois metros de cumprimento. Tratava-se de um homem vestido com vestes imperiais, e no seu peito surgia o desenho de uma medusa. O material da estatua era marfim branco (egípcio) conhecido vulgarmente como alabastro. Hester Stanhope e trabalhadores pensavam estar diante de uma peça que imitava alguma divindade; e que haviam desencavado um Templo romano completo que serviu como igreja e mais tarde como mesquita.

Nos outros dias os participantes das escavações de Asquelon desencavaram mais colunas e capitéis, mais utensílios e duas velas de cerâmica. O Dr. Charles Meryon desenhou a estatua descoberta, enquanto a comitiva turca continuava a procurar o tesouro oculto.

Quatro colunas de granito, uma ao lado da outra, foram achadas no oitavo dia de escavações. Mas, infelizmente, nenhum sinal do tesouro. A expectativa de todo o grupo aumentava o cada hora perdendo-se as esperanças de engordar os cofres particulares. De repente, chegou um boato até Lady Hester que um árabe de nome Jizzar havia descoberto o desejado botim e fugido subitamente de Asquelon. Mesmo sem sucesso, as escavações continuaram por espaço de mais alguns dias.

O amargo retorno

Durante 14 dias se estendeu o sonho arqueológico acalentado por Hester Stanhope, mas nenhum tesouro foi desencavado. Assim sendo, a Lady decretou oficialmente encerradas todas as buscas. Dr. Meryon, em sua vontade de acalmar Lady Hester, lhe disse: “Certamente, você não encontrou um tesouro, mas pelo menos descobriu uma estatua; uma herança cultural e arqueológica, e por isso teu nome será sempre lembrado”. Mas, suas palavras não ecoaram na mulher inglesa que ordenou estilhaçar em vários pedaços a estatua recentemente desencavada, e jogá-la ao mar. O médico Meryon confessa que tentou por todos os meios desencorajar Lady Hester de cometer um imperdoável ato de vandalismo, mas tudo em vão. Ela não escutou as suas palavras e ordenou: “Vão e estilhacem essa estatua!!”

Quando surgiu a original idéia de deixar a estatua como presente para o sultão, ela retrucou:

“Pessoas maliciosas dirão que cheguei para desenterrar antiguidades em prol da Grã Bretanha, e não para o sultão. Não quero que turistas venham aqui [Asquelon] para ver isto. Durante dois dias pensei a respeito, portanto não acho que seja uma decisão precipitada”.

Sem alternativas e evitando discussões desnecessárias com sua antiga paciente, o Dr. Meryon atendeu ao pedido de Hester Stanhope. A sua imagem positiva não foi prejudicada diante da população local. Alguns até chegaram a comentar que era melhor estilhaçar antiguidades que rouba-las para o Ocidente. Outros acharam que a destruição da estatua tinha como objetivo encontrar o tesouro de 3.000.000 de pratas, e um terceiro grupo dos mais desconfiados, suspeitou que o botim havia sido desenterrado e Lady Hester o dividiu equitativamente com o Sultão.

Impressionado ainda com a grandeza das escavações, mas desapontado e triste por sair de bolsos vazios; Abu Nabot ordenou que todas as descobertas arqueológicas fossem carregadas em navios rumo a Yaffo. As colunas, capitéis e estatuas seriam utilizadas em Yaffo como elementos decorativos dos edifícios públicos e suntuosas mansões da cidade. Atualmente, na mesquita Mahmudia construída por Abu Nabot em Yaffo; podem ser vistos vestígios arqueológicos das escavações de Asquelon.

Lady Hester voltou para Aljún no sul do Líbano. Deu uma carta de recomendação a Abu Nabot e presentes para o kamaikan de Acre Solimão, e seu secretário Chaim Farchi. Para Solimão entregou um relógio especial encomendado na Europa, e para o secretário um relógio inglês e um estojo feito de ossos com material de escrever.

Hester Lucy Stanhope faleceu em 23 de junho de 1839. Os últimos dias ela passou na solidão de seu quarto; cercada por uma forte escolta pessoal de árabes e beduínos. Era vista pela mordomia como louca e santa. Seus funcionários aguardavam com extrema impaciência que fechasse seus olhos para sempre para abocanhar seus bens, acumulados durante quase 30 anos nas áridas montanhas do Líbano.

Em 1845, pouco tempo depois da morte de Hester, Dr. Charles Meryon publicou três volumes com as “Memórias de Lady Hester Stanhope contadas por si mesma nos encontros com seu médico” e as “Viagens de Lady Stanhope retiradas de suas memórias e narradas por seu médico”. Estas duas obras mencionadas descrevem perfeitamente o caráter dessa exótica “Rainha das Arábias”.

Bibliografia

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Ellis, Kirsten, Star of the Morning, The Extraordinary Life of Lady Hester Stanhope. Harper Press, 2008.

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Leslie, Doris, The Desert Queen. Papersback Editions, 1972.

Meryon, Charles L., Memoirs of the Lady Hester Stanhope. London 1845.

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