Artigo publicado na revista Nossa História, Ano 3 / No 32, junho 2006, págs. 62-65.
Depois de colecionar maridos e amantes, lady Jane Digby encontrou seu grande amor: O sheik Medjuel, chefe de beduínos, com quem foi morar no deserto da Síria. E lá conheceu o imperador d. Pedro II. _______________________________________________________________________________________________________
Conforme anotado no seu Diário de viagem à Palestina, d. Pedro II teve oportunidade de conhecer uma das mais charmosas mulheres da história da Grã-Bretanha: a célebre lady Jane Elizabeth Digby, mais conhecida em Damasco e redondezas – onde foi parar depois de uma vida bastante movimentada no Ocidente – como Lady Ellenborough. O encontro deu-se no dia 17 de novembro de 1876, após singela recepção oferecida ao imperador na residência do emir Abd-El-Kader. Mas quem foi lady Ellenborough? Quem era seu esposo, o sheik Medjuel, chefe dos beduínos de Mezrab, na Síria? E que tipo de relação teve o segundo imperador do Brasil com esses dois personagens? É o que contaremos a seguir.
Jane Digby nasceu em Norfolk, Inglaterra, em 1807, sendo batizada na igreja anglicana com o nome de Jane Elizabeth, no dia 23 de outubro do mesmo ano. Pertencia a uma família aristocrática. Era neta de sir Thomas William Coke, conde Leicester of Holkham, e filha do célebre almirante Henry Digby (1770-1842), que lutara contra os exércitos de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Jane Digby nunca conseguiu ter uma vida sentimental estável. Longe disso, embarcou numa trajetória repleta de aventuras, acabando por trocar a rotina da grande metrópole londrina pelo exótico e misterioso Oriente.
Com apenas 16 anos, a ruiva de cabelos cacheados, pupilas translúcidas e corpo escultural, sempre esbanjando beleza e alegria, conforme rezam as crônicas, já frequentava os badalados círculos da nobreza britânica. Foi aí que conheceu Edward Law (1790-1871), ou lorde Ellenborough, viúvo havia quatro anos, com quem casou. Da união nasceu um filho, mas o matrimônio não durou muito. Afinal, tratava-se, para ela de um casamento de pura conveniência. Ao contrário de lorde Ellenborough, que exteriorizava ardentes desejos pela esposa desde a primeira vez que a viu, lady Jane parecia fria e entediada. A relação desgastou-se rapidamente. Enquanto, da parte de lorde Ellenborough, a política ia ocupando cada vez mais espaço na sua vida conjugal, da parte da esposa crescia o ímpeto de libertar-se daquela situação insatisfatória. Procurando alguém com quem dividisse a solidão, ela acabou tomando por amante um certo Madden, pacato empregado do Museu Britânico.
Depois de escandalizar Londres, lady Jane largou o marido e fugiu para Paris, onde buscou consolo nos braços de vários amantes, entre eles Balzac, que a retratou em livro
Depois que esse primeiro escândalo tornou-se público, para desgosto do marido, lady Jane apaixonou-se pelo príncipe Félix Schwartzenberg, adido à embaixada austríaca em Londres. Em 1828, decidiu abandonar o esposo, não sem antes pedir autorização do divórcio ao Parlamento inglês, conforme era costume na época. Mas o príncipe Schwartzenberg acabou cansando de Jane. Fixando-se em Paris, a fogosa lady encontraria a tão sonhada felicidade nos braços de alguns amantes, entre eles o escritor Honoré de Balzac (1799-1850) que a imortalizou na personagem lady Arbelly Dudley, da sua monumental A comédia humana.
De Paris, já com 45 anos, Jane Digby partiu para Munique, na Alemanha, onde conheceu o rei Luís I da Baviera. Este soberano, renomado colecionador de belas mulheres, a acolheu evidentemente com toda simpatia, ordenando ao pintor da corte da bela e fogosa inglesa. No entanto, lady Jane não passou muito tempo desfrutando as mordomias da alcova real: a chama da paixão extinguiu-se rapidamente. Seu casamento seguinte, com o barão Venningen, alto dignitário da corte de Bavária, duraria cerca de três anos, tempo que lady Jane, como era de seu estilo, aproveitou para frequentar outros homens, tendo dado à luz uma criança seis meses após suas núpcias com Venningen.
Um de seus amantes destes tempestuosos tempos foi um conde grego de sobrenome Theotoky. O traído Venningem ainda se deu ao trabalho de perseguir a esposa e o comborço grego, tentando acertar-se com a mulher. A história poderia ter tido um fim trágico – houve um duelo, em que Theotoky quase morreu – mas tudo acabou bem, ou menos mal do que se podia esperar. Venningem se divorciou de lady Jane, que cinco anos mais tarde se casaria com o conde grego. A união acabou porque Jane não conseguiu se adaptar às modestas condições de vida que lhe foram oferecidas pelo novo marido.
Depois disso a inconstante Jane seria amante do rei Otto da Grécia, por sinal filho de seu ex-amante, o rei Luiz I de Baviera. Para desassossego da lady inglesa, Otto tinha uma mulher ciumenta, na pessoa da princesa Amália de Oldenburg, que não deixou os amantes em paz sequer por um momento. Era hora, então, de lady Jane fugir das cortes e juntar-se ao caudilho grego Hadji Petros, um arrogante general que a humilhava, chegando mesmo a afirmar publicamente que “se estava com a britânica era mais por sua fortuna que pelos seus atributos femininos”.
Decepcionada de suas traumáticas aventuras, lady Jane fez então uma viagem pela Itália, Suíça e Turquia, cativando aqui e ali um punhado de amantes. Rumo ao Oriente Médio, ela desfrutou de uma noite de lua cheia acompanhada por Saleh, um jovem e atraente árabe. Esta seria a sua última e fugaz aventura antes de encontrar-se com um mercador chamado Medjuel, se não o verdadeiro amor de sua vida, o último.
Pedro II (1825-1891) registrou no Diário de viagem à Palestina uma detalhada descrição de Medjuel, chefe dos beduínos de Mezrab. Escreve o imperador: “Apareceu-me logo o sheik, bela cara inteligente, muito mais trigueira que a de Abd-El-Kader. É baixo e trajava simplesmente trazendo, como aquele, um anel de aro de prata com pedra de sinete…”.
Acompanhado de um intérprete, Medjuel mostrou seus cavalos de raças árabes a d. Pedro II. O monarca brasileiro, que gostava e entendia de cavalos, não os achou tão belos. Imediatamente, apareceu a esposa de Abd-El-Kader – ou seja, lady Jane Digby em carne e osso – uma mulher “que mostra ter sido muito bela”, conforme a anotação do imperador. As poucas biografias do beduíno comentam que ele era baixinho e tinha pele escura – além de ser simpático e bastante erudito.
Medjuel havia se divorciado da esposa para casar-se em 1853 com lady Jane, então com quase 48 anos. Esta, de sua parte, amadurecida e com experiência de vida, teria concretizado na Síria seu maior sonho: encontrar um homem jovem, gentil e atencioso que, como se não bastasse, a idolatrava. Uma importante fonte histórica, para melhor conhecer Medjuel, é o casal Isabel e Richard Francis Burton, conterrâneos de lady Jane, sendo ele um dublê de diplomata e aventureiro, que passou pelo Brasil na época da Guerra do Paraguai e deixou vários trabalhos literários relevantes, entre eles a tradução das Mil e uma noites para o inglês (ver NH, n. 24, p. 76).
De passagem por Damasco, d. Pedro II se encantou com o talento e a inteligência de lady Jane, mas não teve nenhum caso com ela, como insinuaram alguns historiadores. Certa vez Isabel Burton, que era amiga íntima de lady Jane, admitiu que “Medjuel era um homem inteligente e encantador sob qualquer ponto de vista, exceto o de marido. Seus modos a faziam estremecer: ele levou quinze anos para aprender a usar garfo e faca”. Sir Richard Burton não gostava de Jane Digby, mas Isabel considerava sua amiga uma mulher lindíssima: aos 61 anos, era alta, imponente e tinha ar de rainha. Isabel a via como uma verdadeira dama que, apesar de morar no deserto, parecia ter acabado de sair dos mais suntuosos salões de Londres ou Paris.
Isabel conta ainda que lady Jane falava nove línguas com perfeição e morava metade do ano em Damasco e a outra metade nas tendas do marido. Esplêndida em suas roupas orientais, costumava vestir azul, tinha belos e longos cabelos, arrumados em duas longas tranças que iam até o chão. Como qualquer outra mulher beduína, era honrada e respeitada, figurando como uma espécie de rainha da tribo. Gostava de trabalhar, ordenhava e cuidava do rebanho de camelos, atendia ao marido, preparava comida, servia café e, sentada no chão, lavava os pés dele. Enquanto Medjuel comia, ela ficava em pé, servindo-o e glorificando-o.
Em Damasco, estabelecidos em seu lar, o casal Medjuel era um elo vivo entre Oriente e Ocidente, razão porque era sempre visitado por destacadas personalidades. Durante sua visita ao beduíno, Pedro II ficou maravilhado com os atributos artísticos de lady Jane. Solicitou, então, que ela lhe mostrasse os desenhos que tinha feito do vilarejo de Palmira. Ela foi depressa buscar uma pasta contendo belíssimas aquarelas de sua autoria. Contou que sua mãe era também uma exímia pintora a óleo, tendo retratado paisagens de Palmira, as ruínas da Babilônia, a Acrópole de Atenas e a ilha de Tinos. As obras apresentadas na ocasião revelavam grande talento artístico e, segundo o monarca, “a fisionomia de Mrs. Medjuel (Lady Ellenborough) é de uma pessoa muito inteligente”.
Como bom amante da fotografia, d. Pedro II não perdeu a oportunidade de solicitar como lembrança um retrato dela e do marido. Jane Digby presenteou o imperador com uma foto antiga feita em Roma, quando suas feições eram mais jovens, e um retrato do sheik beduíno feito a lápis por ela mesma, imortalizando o momento precioso de seu casamento. Em seguida, o casal Medjuel convidou d. Pedro II a tomar café num bonito salão decorado ao gosto oriental. Como o casal tinha ainda outros compromissos, acompanharam o ilustre convidado até o jardim, onde se despediram.
Certos historiadores franceses imaginaram a história mirabolante de uma relação amorosa entre d. Pedro II e lady Jane. Um deles, Paul Morand, exagerou quando escreveu: “L´Empereur du Brésil Don Pedro, qui en quelques soirées, tombé sous son charme…” (“O imperador do Brasil Dom Pedro, que em algumas noites não resistiu ao seu charme”). Nada do relatado por Morand, no entanto, poderia ter acontecido, já que nosso monarca visitou-a somente uma vez, e apenas por poucas horas, sem sequer pernoitar na sua casa, seguindo logo depois viagem pelo Levante com a comitiva imperial. Isto exclui e invalida totalmente qualquer hipótese de “lhe ter caído aos pés”, como insinuou Morand.
Lady Ellenborough morreu aos 74 anos, em agosto de 1881. Foi enterrada na ala protestante do cemitério de Damasco. Aqueles que a visitaram nos seus últimos dias testemunharam as rugas que já tomavam conta do seu rosto. Porém ela se mantinha sorridente, ativa e ajudando os pobres do lugar. D. Pedro II também a conheceu em idade já avançada, sem o viço juvenil que encantou tantos homens, mas mesmo assim a “mãe de leite” (como era conhecida pelos árabes por causa de sua cor), representou sem dúvida uma das mais curiosas atrações de sua peregrinação pelo Oriente Médio.
Bibliografia
Calmon, Pedro. História de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975.
Lyra, Heitor. História de D. Pedro II. São Paulo 1938.
Schwarcz, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Valadares, Paulo. A viagem do orientalista de D. Pedro II a Israel. In: O Boêmio nº 102 (20/03/1998) pág. 11.