Há mais de 80 anos, o infame médico de Auschwitz, Dr. Josef Mengele, removeu um rim de Yitzhak Ganon sem anestesia. Depois disso, Ganon jurou de pés juntos que jamais consultaria médicos. No entanto, em dezembro de 2009, um fulminante ataque cardíaco fez que o destino do prisioneiro mudasse e sua história de vida fosse revelada ao público.
Yitzhak Ganon é um sobrevivente do Holocausto nascido em 1924 na cidade de Arta (antiga Ambrácia), noroeste da Grécia, numa família judia de 5 filhos. Trata-se de um homem magro, o suéter que veste é grande em seu corpo e suas pernas são como duas varas finas dentro da calça marrom. Mas ele se cuida, está recém barbeado e o seu bigode branco é bem cuidado. O homem tem idade, senta-se em um sofá com uma almofada para apoiar as suas costas. Quem o vê logo percebe que está debilitado para levantar-se por conta própria, e mesmo ainda fraco, ele cumprimenta em alemão o jornalista que o visita.
Ganon é entrevistado, mas sente dificuldade em falar. “Devagar, Abba”, diz a filha Iris, trazendo um copo d’água para seu pai. Ela conta que durante toda sua vida o pai jamais reclamou de uma dor sequer. Há aproximadamente um mês ele chegou da sua caminhada matinal e deitou-se. “Você está doente, papai?”, perguntou Iris. “Não, só um pouco cansado”, respondeu Yitzhak Ganon, antes de dormir. Mas, horas depois, ele ainda estava cansado. “Não preciso de nenhum médico”, disse ele à filha.
Na manhã seguinte, a situação dele piorou. A mulher e a filha de Ganon ligaram para um médico, que diagnosticou uma infecção viral e pediu que fosse imediatamente para o hospital. Ele resistiu, mas finalmente percebeu que se não fosse, sua vida corria perigo. Em determinado momento, deixou de resistir às ordens médicas.
A família o levou ao hospital da sua cidade, Petach Tikva, próxima a Tel Aviv. Assim que deu entrada no hospital, ele perdeu a consciência. “É um ataque cardíaco”, disse o médico. Ganon foi operado às pressas. Na cirurgia os coágulos sanguíneos foram retirados com o auxílio de pequenos balões, e os médicos colocaram cinco stents, dispositivos para desobstruir vasos sanguíneos. “Nós achamos que ele não fosse sobreviver à cirurgia, especialmente porque ele só tem um rim”, conta o Dr. Eli Lev, o médico cardiologista.
Quando Yitzhak Ganon recobrou a consciência, contou aos médicos onde perdeu o outro rim e por que evitou consultas médicas durante 65 anos. Algumas semanas após a complicada cirurgia, ele estava recuperado e disposto a contar a sua história ao repórter alemão Christoph Schult do jornal alemão “Der Spiegel”, pela primeira vez.
Yitzhak Ganon estica-se e observa uma foto pendurada numa das paredes da sala. A imagem mostra a Acrópole, em Atenas. “Eu vim de Arta, pequena cidade no norte da Grécia. O fato ocorreu num sábado, o 25 de março de 1944. Nós só contávamos com velas para celebrar o Shabat, quando um oficial das SS (Schutzstaffel), esquadrão de elite do regime nazista, e um policial grego, invadiram a nossa casa. Eles nos disseram que tínhamos que nos preparar para uma longa viagem”.
O sobrevivente levanta a manga da camisa e mostra seu antebraço esquerdo. O número 182558 está tatuado em tinta azul escura e, mesmo com o passar do tempo, ele continua visível. O transporte para Auschwitz levou semanas. O pai de Yitzhak Ganon, que já estava doente, morreu durante a longa viagem.
Ao chegarem ao campo de extermínio, os deportados gregos foram obrigados a tirarem suas roupas para submeterem-se à “selektzia”, uma primeira seleção de prisioneiros realizada ainda na plataforma. A mãe e os cinco irmãos de Ganon foram enviados rapidamente para as câmaras de gás. Yitzhak foi poupado, mas levado para o Hospital Auschwitz-Birkenau, lugar em que o “Anjo da Morte”, Joseph Mengele, realizava experiências sinistras com prisioneiros judeus.
Ganon teve que deitar-se em uma mesa, onde foi amarrado com força. Sem anestesia, o Dr. Mengele (1911-1979) fez uma incisão na parte inferior do seu dorso e extraiu um dos seus rins. “Eu vi o rim pulsando na mão dele e chorei como um louco”, conta Ganon. “Eu gritei o Shema Yisrael” (Ouve Yisrael). Trata-se das duas primeiras palavras da porção da Torá que constitui a maior declaração de amor e fé do Judaísmo. “Implorei pela morte, para deixar de sofrer” revela o judeu grego.
Após a extração do rim, Yitzhak Ganon foi obrigado a trabalhar na barraca de costura de Auschwitz, sem tomar nenhum analgésico para acalmar as dores. Não foi seu único trabalho no campo. Entre outras tarefas realizadas, teve que limpar instrumentos médicos ensanguentados utilizados nas experiencias.
Certa vez, Ganon passou a noite inteira em uma banheira com água gelada, porque Dr. Mengele queria “testar” suas funções pulmonares. Ao todo, passou seis meses e meio no hospital do campo de concentração. Quando não viram mais nenhuma utilidade nele, os nazistas o mandaram para a câmara de gás. Ganon sobreviveu à câmara de gás por um golpe de sorte: na câmara só cabiam 200 pessoas e os soldados alemães eram burocráticos ao extremo. Difícil de acreditar, mas ele era o número 201.
Em 27 de janeiro de 1945, o campo de extermínio de Auschwitz foi ocupado por tropas de libertação soviéticas. Em liberdade, Yitzhak Ganon retornou à Grécia e descobriu que seus familiares restantes, um irmão e uma irmã, haviam emigrado para Israel.
Em 1949 Yitzhak Ganon emigrou à Palestina britânica. Casou-se e jurou que jamais faria consultas médicas, mesmo que necessárias. O trauma era enorme. “Em toda ocasião em que esteve doente, mesmo que a situação fosse grave, ele me disse que o problema era apenas fadiga”, conta a mulher de Ganon, Ahuva.
Mas Ganon ficou feliz por ter finalmente ido para o hospital em Petach Tikva após o ataque cardíaco. Uma semana depois, o sobrevivente do Holocausto sofreu um novo ataque cardíaco, e recebeu um marca-passo. “Se os médicos não estivessem por perto, eu agora estaria morto”, diz Ganon, sorrindo pela primeira vez.
O sobrevivente Yitzhak Ganon morreu em Israel em 2021 aos 97 anos.
Bibliografia
Alcalay, Artemis, Itzhak Ganon – Excerpts from his interview with Artemis Alcalay. Greek Jews, Holocaust Survivors: A visual-research Project. (Tel Aviv, 26 february 2017). In: https://greekjewsholocaustsurvivors.art/en/profile/itzhak_ganon/
Hall, Allan and Berlin, ‘Angel of Death’ left man with one kidney (December 12, 2009). https://www.smh.com.au/world/angel-of-death-left-man-with-one-kidney-20091211-kois.html
Harvey, Ian, Jewish Man who hadn’t been to a Doctor in 65 years has a good reason for it (January 7, 2016). https://www.warhistoryonline.com/featured/116538.html
O sobrevivente de Auschwitz que evitou médicos por 65 anos. https://ichi.pro/pt/o-sobrevivente-de-auschwitz-que-evitou-medicos-por-65-anos-28026402631551
Schult, Christoph, Dr. Mengele’s victim: Why One Auschwitz Survivor avoided Doctors for 65 Years. In: https://www.spiegel.de/international/world/dr-mengele-s-victim-why-one-auschwitz-survivor-avoided-doctors-for-65-years-a-666327.html Also in: https://www.facebook.com/groups/HSA.Archive/posts/584782218567573/