A arte de Naftali Bezem

O Museu de Yad Vashem, fundado em 1953, convidou o artista plástico Naftali Bezem para esculpir a parede principal da instituição. Qualquer pessoa familiarizada com os trabalhos de Bezem perceberá, imediatamente, que toda sua produção artística é uma preparação para a execução desta obra-prima, intitulada ’Me-Shoá lê-Tekumá’ (do Holocausto ao Renascimento).

Edição 60 – Abril de 2008


Mesmo não sendo sobrevivente do Holocausto nazista, Naftali Bezem é consciente de tudo o que aconteceu naquele período. Ele se considera parte de uma geração que deve perpetuar a memória dos judeus assassinados.

Na obra de Bezem, os valores estéticos são apenas um meio de expressão, mas nunca uma finalidade em si. Eles relatam experiências nacionais mediante formas simbólicas. É uma linguagem individual, surrealista em suas imagens e repleta de valores judaicos. Os que conhecem trabalhos anteriores de Bezem poderão interpretar facilmente os motivos que aparecem no painel do Museu de Yad Vashem.

O baixo-relevo de Yad Vashem, em alumínio, está instalado numa enorme parede de uns 60 metros quadrados. A escultura descansa sobre um fundo totalmente preto e se compõe de quatro registros, revivendo várias etapas: o Holocausto, o Heroísmo e a Ressurreição.

O Holocausto (Shoá)

Este primeiro registro representa a Shoá e tem no centro um crematório, a figura de uma indústria. O Holocausto é uma empresa industrial. Os campos de extermínio estavam organizados como verdadeiras indústrias, baseados em rendimento diário, lucratividade, e normas severas de produção. No registro aparece a matéria prima do campo: judeus enfileirados.

Abaixo do forno crematório vemos a figura de uma mulher segurando dois candelabros, que é uma associação ao conceito de idische mame e à preparação do Shabat. Os dois candelabros queimam o peito da mulher, cujo leite é a fonte da vida. A profanação do sagrado e a perda não só do corpo, mas também da alma e do espírito, estão representados nos candelabros invertidos. O mundo cotidiano da mulher também ruíram; e nele o sagrado virou profano.

Do lado do crematório há a figura do peixe. Ele tem a cabeça decepada. O silêncio do peixe é o silêncio do povo judeu em sua marcha passiva rumo ao extermínio. O peixe tem asas. São os anjos que acompanham o povo judeu na hora de ascender aos céus. Na arte de Bezem, o peixe aparece em lugar do galo como forma de expiação de pecados. O peixe aparece inúmeras vezes em Chagall, mas para Bezem o peixe é parte essencial da trama escolhida.

A revolta (Mered)

O segundo registro apresenta a revolta dos judeus durante as pressões da época. No centro, há uma sinagoga e uma pequena casa do shtetl, ardendo. No incêndio reparamos membros humanos, um pé calçado com seu respectivo sapato e uma mão segurando uma arma. É o retrato do combatente do gueto.

A rigor, o combatente aparece também ardendo nas labaredas, mas na outra mão segura uma escada, o símbolo da esperança e expressão concreta da aliá (imigração a Israel), um nítido elemento sionista.

A escada nos lembra o sonho do terceiro patriarca (Gên. 28: 12), no qual a Escada de Jacó, apoiada na terra, chegava aos céus, e através dela anjos de D’us subiam e desciam. Estas interpretações outorgam ao simbolismo da escada uma dimensão ímpar, interligada às raízes milenares do povo judeu.

A imigração (Aliá)

O terceiro registro aborda a saída da Europa e o longo caminho de volta, após o Holocausto. Os sobreviventes da Shoá aparecem representados na figura de um homem e pai judeu, que por sua vez contrasta com a figura da mulher e mãe judia e os candelabros, ambos consumidos pelo fogo no primeiro registro.

O homem navega numa barca, escoltado pela asa do anjo. Porém, desta vez não se trata do anjo da morte acompanhando à vítima em seu percurso celestial. É o anjo da vida que protege o sobrevivente, colocando fim a seu sofrimento.

O homem da barca traz suas armas e está pronto para combater. Emerge das labaredas, passa pelo processo de aliá, e se prepara para uma nova luta, desta vez contra os britânicos que não autorizam a chegada dos judeus à Palestina.

A barca em que navega o sobrevivente traz vários meios de locomoção e transporte: um remo, uma roda e uma via férrea em forma de shofar, símbolo da Redenção de Israel. O pé do sobrevivente aparece fora da barca, como se estivesse pisando uma terra a ele prometida.

A ressurreição (Gueulá)

O quarto registro fala da Ressurreição. O judeu que sobreviveu às atribulações da guerra chega finalmente à Terra de Israel. Agora ele é um leão, o leão de Judá. Mas, esse leão está chorando, pois mesmo com toda a sua fortaleza, não consegue apagar da memória seu triste passado. Os candelabros já não estão invertidos, não mais simbolizam a profanação do sagrado. Eles simbolizam o lar judaico, a família judaica enraizada em sua antiga tradição. Por trás do leão brota uma planta com folhas de cacto. É a nova geração de judeus, a dos sabras, engendrada pelos sobreviventes do Holocausto.

Certamente, do ponto de vista artístico, a escultura de Naftali Bezem adquire cada vez maior profundidade. Figuras e estruturas colocadas se definem através de contornos, aliados a uma simplicidade ímpar. A tendência à simetria tenta mostrar a plenitude em toda sua perfeição.

Tentando uma analogia musical, podemos dizer que o clima de solenidade fez da escultura “Do Holocausto ao Levantamento do Estado” uma obra de harmoniosos acordes, sempre presentes no final de uma bela sinfonia.

PS: Importante dizer que, atualmente, esta escultura do artista Naftali Bezem se encontra instalada na parte exterior do museu Yad Vashem.

O Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, Doutor em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém, é Professor no Depto. de História da Arte da FAAP em São Paulo. Leciona também História Judaica no Colégio Iavne e é sócio-fundador da “Sociedade Genealógica Judaica do Brasil”.