A Inquisição em Tomar: Novo documento

Tomar, cidade na província de Estremadura, (região central de Portugal) possui as mais bonitas e antigas paisagens de Lusitânia. Foi lá que, desde o século 14, se desenvolveu uma pequena e ativa comunidade judaica. O primeiro vestígio de vida judaica no lugar é arqueológico. Trata-se de restos do túmulo do rabino Yosef de Tomar, um alto funcionário da comunidade. Sua sepultura, perfeitamente conservada, foi descoberta no cemitério judaico de Faro, ao sul de Portugal.

No decorrer do século 20 as pesquisas referentes aos judeus de Tomar tem avançado a passos agigantados; principalmente graças ao trabalho de J.L. Cardozo de Bethencourt, do engenheiro Sr. Samuel Schwarz e de J.M. Simões (BETHENCOURT, 1903, pág. 7; SCHWARZ, 1923, pág. 28 e SIMÕES, 1943, págs. 35-50).

Além de vestígios arqueológicos e epigráficos, a documentação histórica atual permite explicar a existência de uma sinagoga que estava situada na artéria principal da cidade, eixo conhecido como “Rua Nova da Judiaria”. Esta sinagoga aparece em texto citado pelo historiador A.L. Carvalho onde ficou registrado: “casa dos presos que solya ser esnoga dos judeus” (CARVALHO, 1938, pág. 136).

A importância de Tomar na história judaica é desconhecida à maioria. Para abordar este tema é preciso realizar um estudo aprofundado que leve em consideração quatro assuntos:

  1. A organização e desenvolvimento da “kehilá” na vila entre 1315 e 1497.
  2. As conversões forçadas em Tomar por 1497, o fatídico ano que gerou o denominado “Tempo dos cristãos novos” em Portugal.
  3. O estabelecimento da Inquisição em Tomar e os “autos de fé” organizados na cidade.
  4. A restauração da sinagoga de Tomar em 1921 e a inauguração de um museu judaico em 1939; no mesmo lugar onde funcionava uma igreja cristã 500 anos atrás.

Neste artigo estudaremos somente o terceiro dos assuntos mencionados: o segundo auto de fé realizado em Tomar nos primeiros anos da Inquisição lusitana. Esta será nossa contribuição à historiografia do Santo Ofício em terras de Camões.

Autos de Fé em Tomar

Uma parte da vasta documentação existente sobre os autos de fé organizados pela Inquisição portuguesa relata procissões realizadas nas grandes cidades do país (Lisboa, Coimbra e Évora) a partir de 1540. Contudo, pouco ou nada conhecemos sobre os autos de fé efetuados em localidades menores como Porto ou Tomar. Na monumental obra de Alexandre Herculano “História da Origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal” há uma abordagem sobre os dois únicos autos de fé realizados em Tomar, e apenas em uma frase curta, ele registrou laconicamente que “o Tribunal de Porto celebrou um auto da fé nos princípios de 1543…” (HERCULANO, 1976, pág. 106). De mesma forma, Antônio J. Saraiva, um escritor marxista cuja visão da Inquisição despertou acalentadas polêmicas e duras críticas por parte dos estudiosos sequer citou autos de fé em Porto e Tomar (SARAIVA, 1969, pág. 145 ff.).

Outros destacados estudiosos da Inquisição portuguesa como M. Kayserling (1961), J. Mendes dos Remédios (1895, 1928), J.L. de Azevedo (1921) e A. Baião (1936-1938); não fazem menção aos autos de fé de Tomar em 1543 e 1544. Nos últimos 50 anos, testemunhamos à publicação de uma rica literatura sobre os cristãos novos, mas dificilmente encontramos nela lembranças de Tomar e sua judiaria.

Na obra “História dos Principais Actos e Procedimentos da Inquisição em Portugal” escrita pelos pesquisadores Mendonça e Moreira (MENDONÇA-MOREIRA, 1842, reimpressa 1980, p. 145 ff), há uma lista dos autos de fé, a data e lugar em que eles aconteceram, o número de réus penitenciados (separados homens e mulheres), nomes dos padres de ordens monásticas que pregaram os sermões, tipos de penas aplicadas aos réus e observações gerais sobre estas dramáticas procissões públicas.

Relendo o material publicado por Mendonça e Moreira, observamos que os autos de fé de Tomar foram incluídos, talvez involuntariamente, entre os autos de fé de Lisboa. Mesmo existindo falta de numeração na obra, rapidamente percebemos que os autos de fé 4 e 5 da Inquisição de Lisboa foram realizados em Tomar. Curioso também que, o mesmo erro de incorporar os dois autos de fé de Tomar nos autos de fé de Lisboa, se repete na Enciclopédia Judaica (ENCICLOPÉDIA JUDAICA, vol. 15, pág. 1213, em hebraico).

O primeiro auto de fé aconteceu em 06 de maio de 1543 nas Várzeas de Tomar, saindo como penitenciados 5 homens e 2 mulheres, relaxados em carne 1 pessoa, número total 8 pessoas. Celebrou-se sobre o portal do cerco das Tercenas e celeiro do Convento de Cristo de Tomar, junto ao pelourinho. As sentenças foram publicadas pelo notário apostólico Padre Antônio da Costa. O auto de fé foi realizado em 20 de junho de 1544 nas Várzeas de Tomar, na presença do Inquisidor-mor de Portugal D. Henrique, irmão do rei D. João III. Na ocasião pregou o sermão o Padre Frei Luiz de Lisboa. Na procissão saíram 14 réus penitenciados e a cerimônia foi realizada no mesmo Convento de Cristo em Tomar, junto ao pelourinho.

O documento

À pouca informação obtida pelos pesquisadores Mendonça-Moreira há mais de 170 anos, lhe foi acrescentada um novo documento cristão português. Trata-se de uma nova luz acerca do segundo auto da fé realizado em Tomar em 1544.

O documento é um manuscrito de tabelião, redigido em português; atualmente existente na Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL). Sua leitura é difícil e o texto quase indecifrável, talvez dos anos 40 ou 50 do século 16.

Eis o texto da BNL, cod. 169, fol. 155:

Auto da Fé segundo de Tomar à 20 de julho de 1544 no Domingo, no mesmo lugar em que se fez outro à 06 de Maio de 1543.

Sahirão 14 pessoas, 3 que abjurarão de veemente, 7 reconciliados com sambenitos, 3 relaxados que forão:

Ruy de Andrade

Gaspar Duarte

Jorge Manoel

Todos x.x n.n (cristãos novos) mercadores e moradores na Va. (vila) de Tomar.

Em estatua hum com capada.

Este texto tem uma importância ímpar, mesmo que não permita verificar ou negar os dados trazidos por Mendonça-Moreira (1980). A análise feita do documento demonstra os seguintes fatos:

  1. O segundo auto de fé de Tomar foi realizado no domingo 20 de julho de 1544 e não em 20 de junho desse mesmo ano (um mês antes), como registra a pesquisa de Mendonça-Moreira.
  2. O lugar destinado ao auto de fé foi o Convento de Cristo, pertencente à Ordem dos jesuítas. Nesse mesmo lugar já havia acontecido o primeiro auto de fé de Tomar em 06 de maio de 1543.
  3. Os sentenciados que saíram na procissão são na sua maioria “reconciliados” com a Igreja. O texto ainda revela que de um total de 14 penitenciados participantes neste segundo auto, 3 abjuraram de veemente, e 7 foram reconciliados com sambenito, havendo também 3 relaxados e 1 relaxado em estátua.
  4. O texto acrescenta mencionando que os 3 relaxados são: Ruy de Andrade, Gaspar Duarte e Jorge Manoel, todos cristãos novos registrados como habitantes da vila de Tomar.
  5. Em relação ao padre pregador no Auto de Fé, o documento não adiciona informação. Pela obra de Mendonça-Moreira sabemos que o pregador luso foi Luiz de Lisboa.
  6. Os nomes dos demais funcionários da Inquisição presentes neste Auto de Tomar, não aparecem no documento.

Palavras finais

O estudo deste documento levanta novos fatos acerca da data e lugar preciso do segundo auto de fé de Tomar em 1544. O antigo texto enumera os diferentes tipos de penas aplicadas aos sentenciados “judaizantes” e ainda traz os nomes dos três cristãos novos, judeus portugueses obrigados a converter-se ao Cristianismo. Sabemos que mesmo após serem batizados os convertidos continuavam a observar seus costumes judaicos, denominados na época a “Lei de Moisés”.

Os três penitenciados pagaram um preço elevado por seus atos e comportamentos judaicos. Em relação às identidades dos outros 11 sentenciados, ainda pairam várias dúvidas. Novas descobertas nos arquivos da Inquisição portuguesa poderão elucidar futuros enigmas.

Esta foi uma breve contribuição para entender o segundo Auto de Fé de Tomar. Sem dúvida, resta desencavar um valioso material ainda empoeirado nos sulcos do tempo.

Bibliografia

AZEVEDO, João Lúcio de, História dos cristãos novos portugueses. Livraria Clássica Editora. Lisboa 1921, 2ª edição 1973.

BAIÃO, Antônio, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa. 3 vols. Lisboa 1936-1938.

BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA (BNL), cod. 169, fol. 155.

CARDOZO DE BETHENCOURT, Inscriptions Hebràiques du Portugal. Lisbonne 1903, pág. 7.

CARVALHO, A.L, Judeus em Guimarães. PRISMA (julho 1938), pág. 136.

ENCICLOPÉDIA JUDAICA, vol. 15, pág. 1213 (hebraico).

GARCEZ TEIXEIRA, F.A., A antiga sinagoga de Tomar. Tomar 1925.

HERCULANO, Alexandre, História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Livraria Bertrand. Lisboa, 3 vols.: vol. I 1975, vol. II, 1975, vol. III, 1976.

KAYSERLING, M., História dos Judeus em Portugal. Tradução portuguesa de Gabriele Borchardt Corrêa da Silva e Anita Novinsky. Pioneira. São Paulo 1971.

MENDONÇA, J.LOURENÇO de – MOREIRA, A.J., História dos Principais Actos e Procedimentos da Inquisição em Portugal. Biblioteca de Autores Portugueses. Imprensa Nacional. Casa da Moeda. 1ª edição, Lisboa 1842. Reimpresso: Lisboa, 1980. Esp. pág. 145 ff.

REMÉDIOS, J. MENDES DOS, Os Judeus em Portugal. Coimbra, vol. I (1895), vol. II (1928).

SARAIVA, Antônio José, Inquisição e cristãos novos. Porto 1969, esp. cap. VI.

SCHWARZ, Samuel, Inscrições hebraicas em Portugal. Lisboa 1923, pág. 28.

SIMÕES, J.M., Tomar e sua Judiaria. Edição do Museu Luso-Hebraico. Tomar 1943, págs. 35-50.