Alheira de Mirandela – O “chouriço dos judeus” que enganou os inquisidores

O famoso “enchido” (sinônimo de chouriço em Portugal) é uma das comidas mais antigas e mais tradicionais da cozinha lusitana, chegando inclusive a fazer parte da mesa de uruguaios e argentinos. Encontrada facilmente em restaurantes do país, a famosa alheira, é recheada com carne suína, bovina, ou frango com pão.

Reza uma velha lenda que esta última versão da receita, a alheira que mistura carne de frango e pão, ajudou a salvar numerosos judeus durante as perseguições inquisitoriais. Ao visitar a terra de Luiz Vaz de Camões, é comum experimentar algum dos 7 pratos típicos da culinária portuguesa: caldo verde, pastel de Belém, queijo Serra da Estrela, sardinha assada, arroz com marisco, leitão da Bairrada e naturalmente a famosa “alheira de Mirandela”.

A história contada hoje em Portugal pelos guias de turismo tem início em 1492, quando Dom Fernando de Aragão e sua esposa, a rainha Dona Isabel de Castela, invadiram o “Palácio de Alhambra” em Granada, o último reduto mouro dentro da Península Ibérica. Conhecidos como os “Reis Católicos” pela forte devoção cristã, o casal passou a perseguir os judeus hispanos por acreditarem que a vida religiosa deles poderia estimular os novos convertidos a retornar ao Judaísmo.

Perseguidos pela Inquisição espanhola, os judeus castelhanos fugiram para Lisboa, onde o rei D. João II permitiu sua entrada a troco do “pagamento de oito cruzados per capita”, recebendo refúgio. Profundamente cristão, o reino português não se alinhou tão rapidamente à política da Espanha na caça a qualquer pessoa que não fosse católica. O motivo era até compreensível: na era das navegações e descobertas ultramarinas, os judeus exerciam em Portugal um papel destacado, colaborando com dinheiro e conhecimento na abertura de novas rotas marítimas e comerciais no Oriente.

A rigor, esse teria sido o motivo para que D. João II autorizasse a entrada dos exilados hispanos em território português. O cálculo apresentado pelos cronistas cristãos e judeus da época é controverso.  O cronista luso Damião de Góis escreve que teriam entrado em Portugal 20.000 casais, alguns com dez ou doze pessoas; o que percorreria mais de 100.000 indivíduos. Já o cronista judeu Abrão Zacuto mencionaria 120.000 exilados vindos de Castela. Alguns ficaram definitivamente em terras lusas, enquanto outros utilizaram Portugal como uma “estação de trânsito”; rumo às comunidades judaicas do norte da África e da Europa.

Uma parte dos judeus convertidos, sem ter para onde ir, encontrou uma forma de burlar as punições dos monarcas “fingindo-se cristãos”. Assim, eles participavam frequentemente das missas e procissões, discutiam trechos da Bíblia e escreviam seus textos em hebraico.

Na região de Trás-os-Montes, ao norte de Portugal, especialmente no vilarejo de Mirandela, o disfarce de “criptojudaísmo” (Judaísmo oculto), foi ainda mais longe: uma vez que o Judaísmo proíbe terminantemente a ingestão de carne de porco, uma das formas que os inquisidores encontraram para descobrir “falsos cristãos” era ver se na porta de suas casas havia linguiças de porco penduradas.

A história da alheira

Como dizemos, em Mirandela (situada a 426 km de Lisboa), era costume das famílias cristãs, deixarem ao ar livre cachos de linguiças de porco nas entradas das residências, e desta forma seria fácil identificar imigrantes “estrangeiros”.

A Inquisição de Portugal foi estabelecida em 23 de maio de 1536, por ordem do Papa Paulo III pela bula “Cum ad Nihil Magis”. Havia naqueles dias uma censura de publicações impressas, começando pela proibição da Bíblia em outras línguas que não o Latim. Diariamente, as casas dos cristãos novos sofriam devassas, sendo estritamente revistadas à procura de provas de Judaísmo.

Sem piedade, dia após dia, os cristãos novos eram pegos e levados ao Tribunal da Inquisição para responderem a processo. As provas eram criadas diariamente sem nenhuma sustentação. Condenados por “judaizar”, os réus recebiam seus castigos em praça pública, não sem antes ser proferido um sermão antijudaico por parte de um padre franciscano, dominicano, jesuíta, carmelita ou de outra ordem monástica. Um verdadeiro mar de gente assistia aos “Autos da Fé”, pomposas procissões católicas resultantes de um conluio orquestrado entre o Santo Ofício e a Coroa. Nessas festas populares, “pão e circo”; tanto os judeus como os cristãos novos eram humilhados e queimados nas fogueiras da Praça do Rossio em Lisboa como também em Coimbra e Évora.

Para driblar os inquisidores nas desenfreadas buscas por cristãos novos, os judeus criaram uma “linguiça própria”, toda ela feita de pão e frango, que muito se parecia à tradicional linguiça suína. Denominada “alheira”, enganou durante anos os treinados funcionários do Santo Ofício e os membros da realeza.

As receitas originais da alheira exigiam muitos pedaços de pão, porque era a forma encontrada pelos judeus para dar consistência sólida à linguiça. Dentro dela, um recheio de carne bovina, frango, coelho, peru ou pato. Depois, quando a Inquisição acabou, a linguiça alternativa teria caído no gosto dos próprios cristãos ibéricos, que passaram a comê-la e incorporaram-na aos pratos típicos da gastronomia de Espanha e Portugal.

O documento mais importante sobre a história da alheia é um texto atribuído a Dom Francisco Manuel Alves (1865-1947), o abade da vila de Baçal, uma cidade localizada a 494 km de Lisboa. Segundo os escritos deste sacerdote, historiador, arqueólogo e genealogista, os judeus “…não podendo estes comer carne de porco por imposição da sua fé, imaginaram um enchido, que, embora semelhante aos enchidos que por essa época eram o prato forte das gentes, não levasse a carne proibida”. Em outro trecho, o abade de Baçal denomina a linguiça de “chouriço dos judeus”.

Nos dias de hoje, a alheira de Mirandela é um dos pratos típicos de Portugal. Depois de salvar milhares de judeus, ela migrou das montanhas de Trás-os-Montes para o resto do país.

BIBLIOGRAFIA

A incrível história da alheira: Um enchido que enganou os inquisidores. 14 de fevereiro de 2019. https://portaldeportugal.com/historia-da-alheira/

 Alves, Francisco Manuel, Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança: repositório amplo de notícias corográficas, hidro-orográficas, geológicas, mineralógicas, hidrológicas, bibliográficas, heráldicas… 2ª edição, Bragança 2000.

Conheça a origem da alheira de Mirandela – Ajudou a salvar judeus. Setembro 6, 2019. https://alheira.net/conheca-a-origem-da-alheira-de-mirandela-ajudou-a-salvar-judeus/

Gonçalves, Iria, Estudos Medievais – Entre a abundância e a miséria: Práticas alimentares na Idade Média portuguesa. Livros Horizonte, Lisboa 2004.