Aviziboa: a feiticeira judia de Torres Vedras em 1492

Na história do Ocidente, particularmente na Idade Média e durante o Renascimento, não se distinguia magia, feitiços e ciências naturais. A filosofia e a teologia, por exemplo, focavam a sua atenção separando a “magia natural” da “magia popular”; esta última relacionada com forças demoníacas.

Palavras-chave: Feitiçaria. Intolerância. Judaísmo.

Abstract: In the history of the West, particularly in the Middle Age and during the Renaissance, not distinguished magic, spells and natural sciences. Philosophy and Theology, for example, focused his attention separating the “magic” of “popular natural magic;” the latter related to demonic forces.

Keywords: Witchcraft. Intolerance. Judaism.

1. Magia e herança medieval

A crença em forças ocultas e a possibilidade de acioná-las através da magia e dos feitiços foi uma herança medieval que penetrou com intensidade em diferentes círculos judaicos. Essas atividades, quase sempre proibidas, geraram movimentos no mundo mediterrâneo em geral e nos países ibéricos em particular, atingindo dimensões pouco comuns no final do século 14 e durante os séculos posteriores.

Na história do Ocidente, particularmente na Idade Média e durante o Renascimento, não se distinguia magia, feitiços e ciências naturais. A filosofia e a teologia, por exemplo, focavam a sua atenção separando a “magia natural” da “magia popular”; esta última relacionada com forças demoníacas. Seguindo essa linha de pensamento, a alquimia era vista como sinônimo de “magia natural” enquanto o “feitiço” era tido como crime, um verdadeiro pecado contra Deus e contra o próprio homem. Em outras palavras, a magia era entendida como uma transgressão grave que devia ser punida com todo rigor. Nas pequenas vilas e aldeias distanciadas dos grandes centros urbanos, nas quais moravam pessoas simples e carentes de recursos, esse tipo de crença popular se expandiu com extrema facilidade.

O período 1470-1570 apresenta uma guinada no desenvolvimento da magia entre os intelectuais europeus, e, consequentemente, entre os judeus. Nesses anos, a magia e os magos foram alvos de fortes polêmicas; especialmente no Renascimento italiano e suas áreas de influência. No fim da Idade Média, a Igreja cristã se encontra numa verdadeira encruzilhada, mostrando-se totalmente contrária a atos de feitiçaria, argumentando que estes não fazem nenhum sentido,
pois nunca poderão superar as forças que emanam de Deus. Tudo indica que as duras perseguições aos culpados de feitiços e magia, estavam sustentadas por superstições, crenças populares e tradições transmitidas por via oral de geração em geração.

Os primeiros historiadores que estudaram a relação do Cristianismo para com a magia, concluíram que esta religião, apesar de contar com uma maioria absoluta na Europa, se opôs drasticamente a essa atividade supersticiosa. Por isso, a Inquisição perseguiu essa heresia até seu desaparecimento. Nos últimos anos vem surgindo trabalhos de pesquisa que propõem uma nova leitura da magia, chegando-se a conclusões contrárias: não só a Igreja fez vista grossa à magia e feitiços, como também utilizou essas crenças para impor sua superioridade sobre as heresias. Para realizar as referidas pesquisas, os historiadores penetraram profundamente no complexo universo das classes populares; a rigor uma população geralmente marginalizada do processo histórico majoritário. Afinal, o registro dos acontecimentos foi sempre obra das classes privilegiadas e urbanas, que sabiam ler e escrever.

É notório também que, nas últimas décadas do Renascimento, tenham sido publicadas obras de cunho cabalístico-mágico como o “Sêfer Há-Meshiv” (Livro das Respostas), abordando com detalhes o tema da magia e a caça às bruxas. Cabe destacar, nesse contexto, a repercussão que teve o movimento de repressão à bruxaria na cidade de Logronho, território vasco, ao norte da Espanha.

No acervo documental da chancelaria do rei D. João II de Portugal (1481-1495), preservado no ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo), descobri e decifrei um curioso documento que relata atos de magia e feitiços acontecidos na vila de Torres Vedras, ao nordeste de Lisboa. Nele tomamos conhecimento da realização de uma cerimônia de “magia negra”, envolvendo um casal local e uma judia. A seguir, tentarei incorporar novos elementos à história da magia em Portugal.

2. A magia no Judaísmo

No Judaísmo, o termo “magia” é atribuído a atos que desde tempos remotos eram considerados abomináveis, pecaminosos e totalmente proibidos. Estes eram tidos como atos relacionados aos antigos cultos pagãos. O versículo bíblico “Não deixarás viver uma feiticeira” (Ex 22:18) ensina claramente que as mulheres apareciam, com maior frequência, envolvidas em feitiços. Um antigo ditado da autoria do rabino Meir Aldabi esclarece: “Muitas mulheres representam muitos feitiços” (heb. Harbé nashim, harbé kshafim). Há outros documentos em que judeus testemunham uma variedade de atos mágicos, cultos da morte e leitura de augúrios ou do zodíaco. No entanto, a Bíblia não especifica a essência da magia, a força em que age, sua relação com os diferentes deuses, entre outros.

O Talmude, a Lei Oral judaica, está repleta de contos sobre magia, feitiços e superstição em geral, mas estes atos são concebidos como uma forma de cegueira e desvio de comportamento. No Judaísmo um desvio de atitude e de caráter pode ser interpretado como esperteza, trambique ou enganação. Embora exista um significado negativo nas concepções bíblicas e talmúdicas, tudo indica que no universo medieval essas ideias eram comuns, carregando uma aura de negativismo.

Geralmente, toda feiticeira era associada a uma mulher não-judia, e apenas algumas vezes encontramos uma judia ganhando sua vida com essa atividade. Contrário a pensamentos averroistas (filosofia de Averroes), Maimônides rejeitou a ideia de que feitiços e magia fazem parte do cotidiano. Já o rabino de Barcelona Moisés ben Nachman (Nachmânides), revendo afirmações do primeiro, acha extremamente necessário conhecer fatos vinculados com magia e feitiços, para fazer a eles oposição.

Para os judeus, magia e feitiços são quase sempre encarados como uma atividade satânica. Nesse sentido, as atividades desenvolvidas em Portugal não foram menos diabólicas e macabras das registradas em outras partes da Europa como no leste da França, sul-oeste da Alemanha, centro da Inglaterra e Países Baixos. Portugal nos legou menos casos de feitiços e magia, mas o tema foi tratado de forma marcante nas palavras do médico luso Teixeira de Aragão (1823-1903) que teria afirmado que: “As feiticeiras levam muito longe as suas crueldades pelas sugestões do diabo no seu intestino de ódio. Chegam a fazer bonequinhos de cera, barro ou trapo, figurando a pessoa que pretendem martyrisar (sic), e, conforme a aversão que lhes tem, com instrumentos, quase sempre agulhas ou alfinetes, vão picando o coração, os olhos, os rins e outras partes do boneco, invocando sempre o demônio”. (Cf. Diaburas, Santidades e Prophecias, 1894, p. 43).

Que podemos extrair desse culto macabro? As terríveis dores ocasionadas à boneca são transferidas ininterruptamente ao corpo do homem que deseja ser enfeitiçado. Mesmo que na Idade Média e no Renascimento ficasse difícil distinguir feitiços de outras tantas áreas científicas como a medicina; a dor provocada aparece inúmeras vezes em descrições citadas pela literatura médica. Uma fonte sobre este tipo de procedimento é o tratado “De Praxi Medica” (livro III, p. 139) do sábio judeu português Abrão Zacuto.

Uma sensação de medo se apoderou das mulheres portuguesas no final do século 15. Por diversos motivos elas temiam perder seus maridos. Então, para retornar seus amados ao convívio diário, optavam pelos caminhos da magia e da superstição. Algumas fontes testemunham essas antigas crenças. Exemplos:

1. Em 18/03/1435, Maria Secco e sua irmã Catarina, filhas de Pedro Secco, não acreditavam em Deus e, por isso, faziam feitiços; como meretrizes, deitavam com homens casados, padres, etc.;
2. Em 24/11/1441, Beatriz de Sousa fez atos de feiticeira a mulheres casadas ou prestes a casar, para que seus esposos “possam saciar suas vontades”;
3. Em 04/07/1442, Leonor Affonso deitou com seu marido Martins Queixada causando nele feitiços;
4. Em 27/02/1486, Beatriz Roiz, mulher de Pedro Gonçalves fez feitiços na mulher de Rui Gonçalves, para que esta melhore o trato de seu marido;
5. Em 15/07/1486, Isabel Pires era tida como “feiticeira pública” realizando feitiços e magia em alguns homens “para que amassem mais as respectivas mulheres”. Assim, ela teria enfeitiçado o serralheiro João Fernandes e o procurador Rui Gomes, ambos moradores de Lisboa;
6. Em 09/02/1487, Maria Eanes teria dito ao tribunal que Catarina Esteves era uma feiticeira pública que enfeitiçou seu marido, ao ser pego em flagrante com uma amante;
7. Em 29/08/1487, Maria Affonso teria feito feitiços contra o marido de Joana Gomes, pois este a teria desapontado;
8. Em 02/07/1488, Isabel Martins foi acusada de realizar feitiços em Affonso Camagueiro e em Pedro Martins, “para que os dois amassem mais suas respectivas mulheres”;
9. Em 23/10/1490, Inês, mulher solteira, filha de Catalina Affonso, fez magia em Lopo Fernandes. Ela o advertiu para que se cuidasse por onde andava, já que era visto como “uma pessoa desonesta e falta de credibilidade diante das mulheres”;
10. Em 11/08/1491, dona Beatriz Eanes, moradora da ilha de Madeira, realizava feitiços com cera e água. Corria o rumor que era amante do clérigo de missa João Gonçalves, também habitante da ilha. Na hora em que foi pega no “pecado mortal” ela decidiu distanciar-se dele.

Esse breve levantamento prova que quando um homem não honra a sua mulher ou descumpre suas promessas em relação a sua parceira, quando a desaponta em seus relacionamentos sexuais ou quando a trai com amantes, era comum que este fosse enfeitiçado pelas feiticeiras da aldeia. Essa era a fórmula mais frequente de afastar os maus espíritos que corrompem o interior do ser humano.

3. Atos de magia em Portugal

Em 10 de maio de 1492, ano da descoberta do Novo Mundo e da expulsão dos judeus da Espanha, a Chancelaria Real Portuguesa se dirigiu ao rei D. João II, para que este emitisse sua opinião sobre um episódio de feitiços acontecido na vila de Torres Vedras, envolvendo uma judia. Esse pedido, enviado ao monarca, documentado no Livro de Chancellaria V, fol. 34v, teria partido de uma moradora da região chamada Lianor Pires, que denunciou a “hua judia [Aviziboa] que hordenara feitiços ao dito seu marido [Pero Nunes]”.

Da leitura do documento surge, então, a pergunta: Quais seriam os feitiços atribuídos a essa mulher judia? Revisando os textos, vemos que os feitiços efetuados na vila de Torres Vedras divergem das cerimônias mencionadas acima na lista cronológica. Há nesse culto mágico duas etapas distintas:

1. Aviziboa prepara “hum bollo para lhe dar a comer e elle lhe querer bem e outras cousas, na[m] declarando que cousas eram…”.

2. Aviziboa “tomava chumbo derretjdo com terra e lançava-o em aguoa, e fazia hua fegura [figura] de homem e outra de molher de barro, e que lhes dava com hum cordell e dizia sobresto [sobre isto] suas horações e pallavras, e que per esta via o dito seu maridolhe querrya grande bem e não seria sallvo o que ella sopricamte quisesse…”.

O costume de assar um bolo para os maridos aparece com muita freqüência em Portugal. Tudo indica que era um culto essencial para o sucesso dos feitiços. Mas, nem sempre os preparativos ajudavam a enfeitiçar. Assim, em 10 de abril de 1490, “huma Maria Álvares fizera hum bollo, e que fizera feitiços e o dera a comer a hum homem seu amigo… etc” (Liv. XII, fol. 115). Desse bolo não teriam surgido seus feitiços, como o bolo da judia Aviziboa tampouco teria ajudado a enfeitiçar Pedro Nunes.

Então, o que fazer quando o bolo não ajuda na hora dos feitiços? Num momento como esse, para obter êxito, a feiticeira deve passar a um outro culto. Ela prepara uma escultura ou um desenho de boneca que represente a figura à qual estariam direcionados os feitiços.

Os elementos que possibilitam feitiços são de vários tipos e cada um deles tem uma função específica, a saber: feitiços através do ar são denominados aerimância; por meio de água hydromância e por ação do fogo pyromância. Feitiços através da terra ou barro são conhecidos como feitiços de geomância. O caso de magia acontecido em Torres Vedras com Aviziboa enquadra-se, portanto, nessa última categoria.

De que forma entender os atos de magia relatados no trecho citado? Primeiramente, devemos dizer que modelar uma figura de chumbo ou de qualquer outro material sólido é um fenômeno aceito e inclusive “permitido” no Judaísmo. Rash”ba (R. Shelomo ben Aderet), um dos maiores exegetas sefaraditas, permitia essa atividade em consultas incluídas na sua literatura de Responsa. Da mesma forma, proferir preces, salmos ou apenas palavras sagradas com pedidos especiais eram frequentes nos círculos hispano-judaicos medievais. O Judaísmo recebeu essas influências externas das sociedades em que os judeus participavam, dentre elas, sociedades em que se estudava a Cabalá.

Os judeus do século 19 que condenavam a Cabalá representada pelo Chassidismo, aceitavam a superstição com facilidade. Porém, um estudo detalhado do perfil dos feiticeiros ou das feiticeiras nos revela que estes não sabiam quase nada acerca de mística, pois nela não havia sequer vestígios de uma literatura ocultista ou das Sefirot. O Zohar serviu como texto de magia tanto quanto o “Livro dos Salmos”. Para os judeus ibéricos, a força dos nomes, das letras, das palavras e dos números, poderia ajudar a preconizar o futuro, decifrar enigmas e preparar o homem para uma determinada situação. Essa força é basicamente celestial e aparece na época do Talmude como literatura da charrete ou merkavá.

Não há como afirmar que Portugal tenha desenvolvido uma tradição cabalística própria, similar daquela encontrada na vizinha Espanha. Pelo contrário, no decorrer do profícuo século 16 os textos lusitanos não lembram o uso da literatura mística e/ou cabalística nos diversos círculos de cristãos novos. O silêncio das fontes é total e basta lembrar que somente em 1724 aparecerá em Lisboa o primeiro texto de um cabalista de nome Francisco Manuel de Mello. Em seu “Tratado da Ciência Cabala” ou “Notícia de Arte Cabalística”, ele registra, como meta principal, mesmo que resumidamente, ensinar ao leitor lusitano os rudimentos da Cabalá. Já no início do seu texto, explica o conceito “cabalá” a partir de pensamentos expressos pelos próprios rabinos: “Est enim cabala, divinae revelationis ad salutiferam Dei et formarum separatarum contemplationem traditae symbolica receptio, quam qui coelesti afflatur sequuntur recto nomine Cabalici dicuntur” (Tratado da Ciência Cabala, 1724, cap. VI, p. 35).

Em relação aos feitiços aplicados num homem casado, encontramos na literatura duas situações contrárias nas quais é permitido realiza-los: primeiro, quando o homem “não ama sua mulher”, e, em segundo lugar, quando o homem “ama demais sua mulher” servindo, nesse caso, para atender a todas suas carências, vontades e/ou necessidades.

A seguir, apresento uma breve análise de um documento da Chancelaria Real Portuguesa que descreve atos de feitiçaria.

4. Quem era Aviziboa?

Quem era essa enigmática figura de nome Aviziboa? Quais eram seus atributos e qualidades? A primeira leitura não permite obter maiores informações da judia Aviziboa. Não há referências a idade, inserção social nem aos seus hábitos ou estilo de vida. Não obstante, há três possibilidades para identificá-la:

1. É plausível que seja uma figura de carne e osso, que tenha realmente existido e habitado na antiga vila de Torres Vedras, porém, com o seu nome não foi possível identificar nos arquivos da cidade, perdidos no tempo;
2. O documento descreve os fatos acontecidos com uma mulher que habita na periferia de Torres Vedras e visitou o lugar por um período relativamente curto. Também aqui não há certeza alguma;
3. É possível que Aviziboa seja um personagem imaginário, uma figura fictícia, uma mulher que legitime imputar sérias culpas à população judaica local.

Uma vez que a documentação está incompleta, as duas primeiras possibilidades não fazem nenhum sentido, restando apenas acreditar que a terceira possibilidade, mesmo especulativa, possa elucidar. Por que seria, pois, Aviziboa um personagem imaginário?

Primeiramente, o nome Aviziboa desperta perplexidade. Numa revista sistemática de nomes, sobrenomes e toponímicos portugueses do século 15, não consta o nome. Parece difícil também acreditar que possa ser um nome de uso comum entre judeus. Sobre o significado filológico do nome há lugar para várias interpretações. Encontramos a forma Avi-ziboa que na tradução ao árabe seria “Ibn Ziboa”, da mesma forma que Avi-cena aceitaria o árabe “Ibn Sina”, ou Avizohr seria a tradução para o árabe da forma “Ibn Zohr”. Seja como for, todas essas variações são apenas hipóteses do significado e da grafia da forma Aviziboa.

Em segundo lugar, em relação aos nomes do casal Pires e Nunes, não há motivo para especulações. Ambos são nomes ou sobrenomes bastante difundidos que aparecem com frequência também entre os judeus, antes e depois da conversão forçada de 1497, decretada pelo édito do rei D. Manuel I de Portugal. O nome Pires aparece em vilas de judeus tais como Torre de Moncorvo, Trancoso, Barcelos, Fundão, Covilã e Lamego. Vale lembrar que Diogo Pires, um personagem cujos poderes mágicos o fizeram centro das atrações na História de Portugal e na História Judaica, era Salomão Molcho (Shelomó Molko), um dos mais importantes falsos messias, discípulo de David Reuveni, o judeu responsável por uma forte onda messiânica entre cristãos novos portugueses do século 16.

O sobrenome Nunes aparece difundido especialmente entre judeus e conversos. Basta mencionar o nome de Heitor Nunes, judeu que migrou para Inglaterra na segunda metade do século 16, ou o célebre geógrafo e matemático Pedro Nunes, autor do Tratado da Esfera. Este último lecionou na Universidade de Coimbra e em 1529 foi agraciado com o título de “Cosmógrafo da Corte”. Mas, após as perseguições terem atingido também numerosos cientistas, Pedro Nunes e seus familiares foram presos e processados pelo Santo Ofício da Inquisição.

Terceiro, os feitiços de Aviziboa não permitem determinar se eles eram aplicados num espaço aberto ou fechado. Na Idade Média, era freqüente observar atos de magia ao ar livre, em meio a natureza. Vejamos alguns exemplos:

1. Em 13/11/1453, Gil Lourenço costumava fazer feitiços e magia nos caminhos e cruzamentos de caminhos;
2. Em 21/07/1462, Elvira de Ribeiro fazia feitiços causando danos graves à terra, atingindo [com seus atos] moinhos de farinha e máquinas para triturar cereais.

A leitura do documento referente aos feitiços de Aviziboa, no entanto, permite concluir que seus atos teriam sido realizados em lugares fechados longe do grande público.

5. A magia na legislação portuguesa

Nos diferentes sistemas legislativos vigentes na Europa medieval e nos países mediterrâneos, foram fixados processos e punições para todos aqueles que foram acusados por feitiços e/ou magia. As penas aplicadas variavam desde reclusão perpétua para casos leves, até morte na fogueira, para casos mais graves. Nas leis bíblicas (depois, talmúdicas) os castigos aplicados aos feiticeiros (1 Sm. 28) também incluíam a morte.

Na Espanha cristã, as penas aplicadas àqueles que realizassem atos de magia e/ou feitiços, ficaram registradas no “Livro de las Siete Partidas”, compiladas por Alfonso X, “O Sábio”. Outras penas podem ser encontradas nos protocolos dos Conselhos das cortes medievais.

O sistema jurídico lusitano foi solidamente representado nas “Ordenações Manuelinas” compiladas pelo rei Manuel I em 1516. Ali foram publicadas as penas que deveriam ser aplicadas a todos aqueles que realizam curas com feitiços. Diz o texto: “se for piam ou di pera bayxo, seja pubricamente açoutado com baraço e preguam pola villa, e mais pague dous mil reaes pera quem o acusar. E se for vassallo ou escudeiro ou di pera cima, ou molher de cada hum destes, seja degradado pera cada hum dos lugares dalém [= d’além] em África por dous annos, e mais pague quatro mil reaes pera que[m] o acussar. Pero esto nom [h]averá lugar os astrologos que por sciencia e arte de astrologia”. (Ordenações Manuelinas, Liv. V, fol. 33).

Emitir uma opinião definitiva sobre o grau de rigor das penas aplicadas é impossível.

Tampouco sobre o conceito de justiça existente naquela época. Pela documentação sabemos apenas que Aviziboa não foi punida por seus atos, e isso gera dúvidas e suspeitas; ainda mais no século 15, quando magia e feitiços eram punidos rigorosamente com cárcere, expulsão da cidade ou do distrito, açoites em público, multas, e uma série de “medidas educativas”
destinadas a ensinar o que é proibido e o que é permitido.

A falta de um castigo diante dos feitiços reforça a idéia de que estes foram feitos num recinto fechado longe do público. Talvez seja por isso que esse episódio não teve repercussão geral. É possível também que nos documentos de chancelaria achados em Portugal não era costume registrar as medidas judiciais aplicadas aos transgressores da lei. Era comum, pois, colocar as penalidades em outros documentos jurídicos. Portanto, as penas aplicadas a Aviziboa ficarão como um verdadeiro enigma.

Palavras finais

Mesmo existindo uma total proibição nas fontes judaicas, os atos que envolviam tanto feitiços como também magia negra, conquistaram espaços significativos na vida judaica medieval, principalmente entre os judeus portugueses. Contrariando as afirmações do historiador Pedro de Azevedo, que afirmava existir “uma supremacia intelectual entre os judeus e era de certo que entre eles se recrutavam os feiticeiros mais famosos”, a nossa opinião é bastante diferente:

Não existe relação alguma entre o nível intelectual dos judeus com a cura através da magia ou dos feitiços. Até por que a magia nunca foi uma atividade das elites. Pelo contrário, a história de Aviziboa representa um episódio único dessa natureza. Ele nos ensina também que crenças e superstições populares penetraram de forma profunda na tradição judeu-portuguesa no medievo.

Concluímos este estudo com a célebre frase do inquisidor espanhol D. Alonso de Salazar, o homem que reprimiu o forte movimento de bruxaria em Logronho, na região dos vascos, entre 1609 e 1614: “No hubo brujos ni embrujados en el lugar hasta que se comenzó a tratar y escribir de ellos”.

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