“Bibliocausto” nazista em 1933

Jorge Luis Borges em El libro afirmou que “de todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo… Mas o livro é algo diferente: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.

“Praça da Ópera” (Opernplatz), atual Bebelplatz, 10 de maio 1933. Noite de chuva fina e céu nublado em Berlim. Quarenta mil pessoas, a maioria jovens, aguardam ansiosas, o inicio de um grande evento. No meio da praça, uma imensa estrutura de toras entrelaçadas de quase dois metros de altura é posta em chamas. As labaredas lançam um clarão que alucina as massas. Como num desfile militar, milhares de estudantes marcham exibindo com orgulho as cores de suas universidades. Ao se aproximarem da pira, atiram pequenos volumes ao fogo.

No entorno da cerimônia, carros chegam com seus porta-malas abarrotados da mesma carga que era incinerada. Alunos passam de mão em mão os pacotes até que o material chegue à combustão final. Apesar de inflamáveis, esses objetos não foram produzidos com essa intenção. No mesmo país em que há 500 anos Johannes Gutemberg inventava a impressão em série, a ignorância nacional socialista sepultava sua criação.

Um dos maiores crimes que se pode cometer contra a cultura de um país ou de um povo é destruir sua memória, seus registros e sua história. Queimar livros como forma de punir e eliminar inimigos políticos, etnias minoritárias, modos de pensar e de viver diferentes é um ato tão bárbaro e cruel que deveria ser condenado por toda a humanidade.

Estima-se que naquela noite perversa, estudantes e membros do partido nazista tenham incinerado 20 mil livros. Entre os autores alvos da fúria intolerante: Sigmund Freud, Karl Marx, os irmãos Thomas e Heinrich Mann, Albert Einstein, Franz Kafka, Karl Kraus, Ernst Bloch, Robert Musil, Rosa Luxemburgo, Emil Ludwig, Bertolt Brecht, Arnold Zweig, Erich Maria Remarque, Erwin Piscator, Walter Benjamin, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler, Marcel Proust, Romain Rolland, Emile Zola, Máximo Gorki, H. G. Wells e Ernest Hemingway.

O ato, intitulado “Ação contra o espírito não alemão”, foi transmitido ao vivo pelo rádio e filmado para depois ser exibido nos cinemas. Um estudante fez um discurso contando sobre o objetivo do extermínio das obras daqueles autores em solo alemão. Pouco depois, outro aluno leu uma lista para que esses nomes ficassem gravados na mente de todos os espectadores.

O ponto alto do evento foi o discurso de Joseph Goebbels. O Ministro da Propaganda de Hitler falou do surgimento de um novo homem alemão, livre do intelectualismo judaico. Eis suas palavras: “Esta é a missão dos jovens, por isso vocês estão certos de, nesta hora tardia, entregar o lixo intelectual do passado às chamas. É esta uma forte, grandiosa e simbólica responsabilidade, uma responsabilidade que irá provar a todo o mundo que a base intelectual da República de Weimar está sendo derrubada agora; mas que a partir das ruínas irá a crescer, vitorioso, o senhor de um novo espírito”.

A opinião pública e a intelectualidade alemã ofereceram pouca resistência à queima. Editoras e distribuidoras reagiram com oportunismo, enquanto a burguesia tomou distância, passando a responsabilidade aos universitários. Vários países acompanharam os acontecimentos à distância, chegando inclusive a minimizar a queima como resultado do “fanatismo estudantil”. Realmente, a queima havia sido organizada pela estrutura estatal nazista, pelo “Comitê Geral dos Estudantes” e pela “União Estudantil Nacional-Socialista”. Ela contou com a presença de reitores, professores universitários e líderes estudantis, além da alta cúpula de Hitler.

O evento ocorreu simultaneamente em 34 cidades alemãs. Com transmissão pelo rádio, exibições nos cinemas e forte cobertura da imprensa, outras fogueiras foram organizadas nos pequenos centros urbanos. A partir daí, deu-se início a uma caçada a toda e qualquer obra que fosse considerada impura, decadente e degenerada. Tropas nazistas invadiam casas, livrarias e bibliotecas a procura dos títulos listados.

O escritor e crítico Erich Kästner (1899-1974) foi testemunha da queima de seus escritos e registrou sua consternação no texto “Sabe a terra onde florescem as armas?” (Kennst du das Land, in dem die Kanonen blühen?). O psicanalista judeu austríaco Sigmund Freud (1856-1939), ao tomar conhecimento de que seus textos haviam sido queimados, ironizou: “Que progresso! Na Idade Média teriam me queimado. Hoje só queimam meus livros”.

Entre os escritores que reconheceram o perigo de queimar livros esteve Thomas Mann, Prêmio Nobel de Literatura em 1929. Em 1933, após perder a cidadania alemã, emigrou para a Suíça e, em 1939, para os EUA. Quando a Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn lhe cassou o título “doutor honoris causa”, escreveu ao reitor: “Nestes quatro anos de exílio involuntário, nunca parei de meditar sobre minha situação. Se tivesse ficado ou retornado à Alemanha, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade, vivendo desta maneira!”.

“Queimem-me!” (Verbrennt mich!), bradou o escritor alemão Oskar Maria Graf (1894-1967) em um artigo de jornal, ao saber que seu nome não estava entre os autores condenados pelo regime. “Estou na lista branca dos autores da nova Alemanha e todos os meus livros, à exceção de minha obra principal “Somos prisioneiros” (Wir sind Gefangene), foram poupados! Com isso, fui conclamado a ser um dos expoentes do novo espírito alemão! Não merecia esta desonra! Com relação a toda minha vida e toda minha obra, tenho o direito de exigir que meus livros sejam lançados à chama pura da fogueira e não venham parar nas mãos sangrentas e nos cérebros podres dos bandos assassinos marrons”. Meses depois, o pedido de Graf foi atendido.

O teatrólogo comunista alemão Bertolt Brecht (1898-1956), escreveu um poema para elogiar a coragem do amigo Graf de publicar tais dizeres:

“Quando o Regime ordenou que queimassem em público

Os livros de saber nocivo, e por toda a parte

Os bois foram forçados a puxar carroças

Carregadas de livros para a fogueira, um poeta

Expulso, um dos melhores, ao estudar a lista

Dos queimados descobriu, horrorizado, que os seus

Livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária

Alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.

Queima-me! escreveu com pena veloz, queima-me!

Não me façais isso! Não me deixes de fora! Não disse eu

Sempre a verdade nos meus livros? E agora

Tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos:

Queimai-me!”

O termo Undeutsch, (não alemães) era como alemães se referiam aos autores perseguidos. Esses escritores, filósofos, cientistas, artistas sofreram com a censura, com o confisco de seus bens, com a cassação de seus títulos acadêmicos, com a perda da cidadania alemã, com o exílio forçado. Muitos tiveram familiares mortos por decorrência da ação das forças nazistas, por conta do desespero provocado pela situação, pelo desenrolar da guerra ou pelo envio aos campos de concentração.

Também Ricarda Huch (1864 – 1947) retirou-se da conceituada Academia Prussiana de Artes. Numa carta ao seu presidente, redigida em 09 de abril de 1933, a escritora criticou os ditames culturais do Nazismo: “A centralização, a opressão, os métodos brutais, a difamação dos que pensam diferente, os autoelogios, tudo isso não combina com meu modo de pensar”, justificou. Em 1934, a “lista negra” incluía mais de 3.000 obras proibidas.

Com a expansão do território alemão, os livros e todo material “não alemão” desapareceram. Bibliotecas e livrarias foram devastadas. A caçada aos autores “degenerados” demarcou um novo episódio do horror nazista. Até 08/05/1945 cem milhões de livros haviam sido destruídos na Europa. A queima de obras neste período gerou manifestações, principalmente nos Estados Unidos. Houve protestos em Nova York, com 80.000 pessoas; em Chicago com 50.000 e na Filadélfia com 20.000. Na imprensa americana os atos foram denominados de “Holocausto Literário” pelo New York Times e de “Bibliocausto” pela revista Times.

A maior parte dos 20.000 livros queimados naquele dia em Berlim pertencia à Biblioteca da Universität Unter den Linden, (hoje Universidade Humboldt), situada ao lado da Opernplatz. Passaram por ela parte significativa da filosofia e do pensamento alemão: Johann Fichte, Georg Wilhelm Hegel, Arthur Schopenhauer, Friedrich Schelling, Karl Marx, Friedrich Engels; físicos famosos como Albert Einstein e Max Planck; e o geólogo Alfred Wegener. Além disso, esta universidade contou com 29 vencedores do Prêmio Nobel.

A escritora Helen Adams Keller (1880 – 1968), primeira pessoa surda e cega a conquistar um bacharelado, foi uma ativista política americana. Ela também teve seus textos queimados. Quando soube do ocorrido em Berlim redigiu uma carta aos estudantes envolvidos naquele crematório da cultura e do pensamento crítico, expressando sua incredulidade sobre aquele fato ocorrer justamente numa terra marcada pela popularização dos livros e da universalidade das ideias. Ela escreveu: “Se vocês acham que podem matar as ideias, a história não lhes ensinou nada. (…) Os tiranos muitas vezes tentaram fazer isso antes, e as ideias se ergueram com toda a força e os destruíram. (…) Vocês podem queimar meus livros e os livros das maiores mentes da Europa, mas as ideias neles contidas já se infiltraram através de milhões de canais e continuarão a estimular outras mentes”.

Memorial lembra queima de livros

Opernplatz era uma praça no lado sul da avenida Unter den Linden, centro do bairro de Mitte em Berlim oriental. No lado oeste havia prédios da Universidade Humboldt, dentre eles, o que fica mais próximo é o da Alte Bibliothek (Biblioteca Antiga). Ao sudoeste está localizada a Catedral de Santa Edwiges, primeira igreja católica construída na Prússia depois da Reforma de Lutero. O edifício que nomeava o espaço ficava no lado leste, a Staatsoper ou Ópera Estatal.

Toda a concepção urbanística da praça foi pensada e planejada no século 18 por Frederico II para ser o Forum Fridericianum. Exemplo de déspota esclarecido, Frederico o Grande, foi patrono das artes e do estímulo ao pensamento na Prússia. Por conta disso, surgiu a ideia da praça congregar uma ópera, uma igreja, uma biblioteca e uma residência real. Posteriormente, essas duas últimas fariam parte da Universidade Humboldt.

A Opernplatz foi rebatizada de Bebelplatz no final da década de 40, em homenagem ao político esquerdista August Bebel, um dos fundadores do Partido Social Democrata Alemão. Toda a região de Mitte fez parte do lado comunista até novembro de 1989, quando o Muro caiu. Depois da reunificação, em 1995, o artista israelense Micha Ullman (1939 –      ), foi convidado para fazer um monumento em memória dos livros que ali foram queimados.

Exatamente onde se localizou a grande fogueira que incendiou parte dos livros da biblioteca da Universidade Humboldt, Ullman criou um simbólico espaço para relembrar aquele dia trágico. A obra “Denkmal zur Erinnerung an die Bücherverbrennung” (Memorial de Recordação da Queima de Livros) foi inaugurado em 2006. No chão, em meio aos paralelepípedos, surge uma placa de vidro transparente. Através dela, é possível observar uma sala subterrânea sem cor e sem vida. Nela, há estantes vazias, sem um livro sequer. As estantes são grandes o suficiente para acomodar os 20.000 livros que foram destruídos naquela noite. O monumento é um memorial ao vazio deixado por esse ato, um símbolo à consternação diante de um fato chocante.

A visão proporcionada pela sala subterrânea é perturbadora. Próximo da abertura de vidro há duas placas de ferro [foto abaixo]. Numa delas, estão os dizeres: “No centro deste lugar, em 10 de maio de 1933; estudantes nacional socialistas queimaram obras de centenas de escritores, editores, filósofos e cientistas”.

A ausência dos livros leva o visitante a pensar também na falta dos milhões que morreram por conta da ideologia nazista; de todos os perseguidos, torturados, humilhados e destruídos por terem diferenças no modo de pensar, na forma de representar a cultura, a política e a religião. O extermínio gratuito motivado pelo ódio, tanto de livros, como de seres humanos é o mote da ideia expressada na outra placa de ferro.

Nela está inscrito um trecho da tragédia Almansor, de 1820. Um poeta romântico de origem judaica, Heinrich Heine (1797-1856), é o autor da obra. Ele teve seus livros queimados na ação dos nazistas. O tema é a Inquisição espanhola na guerra pela reconquista de Granada no fim do século 15. Na peça, o personagem Hassan, ao ver o Alcorão ser queimado pela intolerância religiosa, lança uma fala que teria um tom profético diante dos nefastos eventos futuros produzidos pelos nazistas: “Aquilo foi somente um prelúdio; onde se queimam livros, no final também se queimarão pessoas”.

Todo ano, no dia 10 de maio, é realizada uma leitura pública de trechos de livros queimados pelos nazistas. O evento é organizado pelo partido alemão “Die Linke”, fundado em 2007. A praça é hoje palco de manifestações simbólicas com a intenção de relembrar a importância da leitura e da liberdade de expressão. Também ali se programam eventos estimulando o acesso aos livros, como a instalação de bibliotecas temporárias acessíveis aos transeuntes.

Em 2006, o governo federal alemão fundou uma organização chamada “Alemanha – Terra de Ideias”. Encarregado de apresentar ao mundo o lado inovador germânico em todos os campos do pensamento, o órgão tem várias formas de atuação. Na época da realização da Copa do Mundo de Futebol, como parte de suas ações, foi criado o “Walk of Ideas”: É um conjunto de seis grandes obras urbanas com temas em que a Alemanha se destacou historicamente.

Na Bebelplatz, foi colocado um enorme monumento chamado “Der moderne Buchdruck” (A moderna impressora de livros). Composto por livros gigantes de autores significativos para a cultura alemã, a monumental escultura pretende perpetuar a invenção de Gutenberg para a popularização, democratização e libertação do pensamento.

Entre os escritores, filósofos e pensadores homenageados estão Gunter Grass, Hannah Arendt, Heinrich Heine, Martinho Lutero, Immanuel Kant, Anna Seghers, Friedrich Hegel, os irmãos Grimm, Karl Marx, Heinrich Böll, Friedrich Schiller, Gotthold Lessing, Hermann Hesse, Theodor Fontane, Thomas Mann, Bertolt Brecht e Johann Wolfgang Von Goethe.

O ensinamento é claro: “Lembrar sempre, esquecer jamais!!”

Bibliografia

Báez, Fernando, História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

Brasil, Paula, O Bibliocausto nazista: A destruição de livros judaicos durante o Terceiro Reich. Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de Bacharel em Biblioteconomia pela UFRG. Porto Alegre 2016, 80 págs.

Confino, Alon, Um novo começo pela Queima de Livros. Em: Um mundo sem judeus: Da Perseguição ao Genocídio: A visão do imaginário nazista. Editora Cultrix. São Paulo 2016, esp. capítulo 1, págs. 41-71.

Fishburn, Matthew. Burning books. London: Palgrave Macmillan, 2008.

Knuth, Rebecca. Burning books and leveling libraries: extremist violence & cultural destruction. Wesport: Praeger Publishers, 2006.