Conversos portugueses nos “Livros de Denunciações do Santo Ofício” – século 16

Um dos pensamentos mais difundidos durante a época em que atuou a Inquisição afirmava categoricamente que o destino final dos conversos judaizantes, criptojudeus ou cristãos-novos estava determinado a priori pelo fato de observarem um modo de vida judaico intenso. A partir das leituras realizadas e mantendo um olhar crítico perante as pesquisas historiográficas acerca dos cristãos-novos, principalmente nas obras de J. Amador de los Rios (AMADOR DE LOS RIOS, 1875-1876), Américo Castro (CASTRO, 1954), C. Sanchez Albornoz (SANCHEZ ALBORNOZ, 1957), I. Baer (BAER, 1945), H. Kamen (KAMEN, 1998) e H. Beinart (BEINART, 1965), percebe-se que a maior parte dos trabalhos discute o dia a dia dos cristãos-novos hispanos, enquanto, por outro lado, pouco foi revelado sobre seus vizinhos lusitanos. Portanto, ainda existe um espaço considerável reservado para reconstruir o cotidiano das comunidades conversas de Portugal, mais especificamente no que tange ao cumprimento de mitzvot (preceitos judaicos) ordenados na Torá, no Talmude e demais textos sagrados.

Uma reconstrução do modus vivendi dos cristãos-novos emerge dos próprios processos de Inquisição e das diferentes fontes geradas por esta instituição, tais como “Monitórios”, “Regimentos”, Index Librorum Proibitorum, “Listas de sentenciados nos Autos da Fé”, “Livros de Confissões e Denunciações”, entre outros. Este artigo está baseado no estudo dos “Livros de Denunciações do Santo Ofício” da Inquisição de Lisboa, textos curtos publicados há mais de um século no AHP (Arquivo Histórico Português) pelo historiador Antônio Baião. Estas fontes históricas incluem um número considerável de denúncias contra cristãos-novos judaizantes.

As investigações inquisitoriais nascem quando o Santo Ofício faz um chamado aberto para que todos os moradores de uma vila ou cidade se apresentassem e confessassem seus pecados, delatando comportamentos suspeitos dos cristãos novos que vivem nas imediações. A confissão seria escutada durante um breve espaço de tempo, conhecido como Tempo de Graça, iniciado em Portugal em 20 de outubro de 1536, por 30 dias. Neste mês, todos aqueles que confessassem abertamente suas culpas seriam agraciados com a remissão dos pecados, uma forma encontrada pela Igreja para limpar suas almas das transgressões religiosas.

O Tempo de Graça era divulgado através do “Édito de Graça”, um cartaz afixado nas portas das igrejas e praças. Ele detalhava os diferentes pecados vistos como verdadeiras transgressões contra a Cristandade. Esta lista era conhecida em Lisboa como “Monitório de 1536”, havendo ali clara menção dos costumes e hábitos observados pelos cristãos-novos, como a guarda do shabat (sábado), varrer a casa às avessas, fazer o abate casher (seguindo o rito judaico), evitar ingerir carne de toucinho, observar o Yom Quipur (Grande Jejum), recitar Salmos “Sem Gloria Patri, et Filii, et Spiritu Sancti”, colocar tefilin (filactérias), cumprir o Jejum da Rainha Esther, realizar o Sêder na Páscoa, preparando pães azemos, respeitar os dias de luto, dar a benção de Efraim e Menasseh (benção específica para filhos), deter a circuncisão, respeitar Sucot (Festa dos Tabernáculos), limpar candeeiros às sextas feiras e vestir camisas brancas e limpas nesse dia sagrado.

No início de 1537, começou a acumular-se uma quantidade de denunciações contra cristãos-novos de Lisboa e outras vilas próximas. Essas denúncias foram registradas em dois grandes livros e, logo depois, serviriam como base legal para abrir um
processo inquisitorial contra determinada pessoa. Como veremos, as denúncias acumuladas contra os cristãos-novos testemunham não só um modo de vida totalmente judaico, mas também um amplo e sincero movimento de retorno à fé mosaica.

Através dos “Livros de Denunciações do Santo Ofício”, é possível avaliar não apenas a expansão das perseguições implantadas pelos tribunais portugueses, como também o regime de terror gerado no seio dos cristãos-novos. Nossas leituras permitem detectar três tipos de denúncias:

1. A autodenúncia: É a denúncia de um cristão-velho (ou cristão novo), que conta suas próprias culpas ou transgressões religiosas. Esta não se nutria de uma convicção pessoal, mas é fruto de contatos rápidos com pessoas próximas. Cabe registrar que nem sempre os inquisidores acabavam aceitando esta autodenúncia. O denunciante era obrigado a informar ao tribunal comportamentos heréticos de familiares, amigos ou conhecidos. Assim, encontramos esposas que denunciam maridos e filhos que entregam pais por ensinarem ritos e preceitos judaicos. Desta forma, foi-se consolidando uma complexa rede de denúncias que ficava à disposição de um sofisticado esquema policial;

2. A denúncia de um cristão-velho contra um cristão-novo: Era talvez a modalidade mais frequente na época. Geralmente, as motivações para este tipo de denúncias atendiam a um caráter social: a cobiça e a inveja originadas de uma forte concorrência diária entre pessoas. Há também motivações religiosas, resultado direto de uma propaganda sistemática imposta à população por círculos vinculados à Igreja Católica;

3. A denúncia de um cristão-novo contra outro: Era talvez o fenômeno mais comum na sociedade portuguesa seiscentista. Tendo como principal meta a sua libertação, o denunciante entregava ao tribunal seus amigos e vizinhos. Para atingir um grande número de denúncias, o tribunal fazia falsas promessas aos denunciantes, promessas que jamais cumpriria. Colaborar com o tribunal era uma conduta normal, extremamente aceita nos momentos de forte pressão.

Ao serem destruídas por completo as comunidades judaicas, não restaram sinagogas, e os cristãos-novos precisaram se adequar a uma nova era de perseguições e conversões forçadas. Sem dúvida, o maior problema na época era encontrar lugares alternativos para conseguir observar ritos e preceitos, especialmente aqueles mantidos em sinagogas e demais espaços públicos.

Comumente, os cristãos-novos congregavam-se em residências particulares; espaços físicos nos quais podiam sentir um pouco de segurança diante das ameaças externas. Unidos por um destino comum, havia “círculos de conversos”, congregados diariamente. Nossa pesquisa, centrada no século 16, revela também a incerteza existencial de comunidades inteiras que saíram do Judaísmo, mas as quais não conseguiram ingressar no Cristianismo. Estas células estavam localizadas na totalidade do território lusitano, um fenômeno que ensina acerca da força dos convertidos no seu estilo judaico de viver.

Cronologicamente, o primeiro núcleo de cristãos-novos era a célula liderada pelo juiz e licenciado Gil Vaz Bugalho, figura proeminente na reconstituição do mundo dos cristãos-novos. No seu longo processo inquisitorial, foi acusado de “judaizar” e
realizar “atos de heresia” contra a doutrina cristã. Para o tribunal, Vaz Bugalho respeitava costumes e ritos judaicos, falava em salvar sua alma, guardava o sábado, evitando qualquer trabalho, preocupava-se sobremaneira que familiares usassem roupas limpas e festivas nos dias santos e recitava trechos da Bíblia que ele mesmo traduzia. O processo fala que este converso “trocava lençóis e cobertores todas as sextas feiras, colocando azeite nos candeeiros, deixando-os acessos até o sábado”.

Ficou registrado também que Vaz Bugalho “comia carne bovina, mas jamais suína. Quando lhe apetecia carne de galinha ele mesmo levava o frango a um abate mantido pelos cristãos-novos” (BAIÃO, VII, 1909, p. 443). Outras informações sobre o modo de vida judaico do licenciado Vaz Bugalho aparecem em 1549 nas denunciações de sua filha Violante Bugalho, dois anos antes de seu pai ser delatado e entregue ao tribunal, presente no único auto de fé realizado naquele ano em Évora. Violante confessou que:

“andara errada há 2 annos, fazendo práticas judaicas, em quanto esteve em casa de seus pais, comendo na Paschoa bolos asmos que vinham da casa de Isabel Mendes, christã nova [e] mãe do licenciado Francisco Mendes. Foi esta Isabel Mendes quem ensinou preceitos judaicos a sua mãe e esta a seu pai, e a casa d´elles era frequentada por vários christãos novos; entre os quaes os Montenegro” (BAIÃO, VII, 1909, Idem).

Dos depoimentos e denúncias mencionados, é possível afirmar que o círculo de Bugalho era uma célula realmente importante de judaizantes. Neste círculo, nos deparamos com conversos destacados, tais como o médico e licenciado Francisco Mendes, Diogo Montenegro e Luiz Dias, o “Messias de Setúbal”, também conhecido como o “heresiarca”. As atividades destes judaizantes são de extrema relevância, uma vez que possibilitaram o surgimento do profeta Gonçalo Aenes de Bandarra, sapateiro de Trancoso. As Trovas de Bandarra, escritas a partir de citações bíblicas, dariam origem ao Sebastianismo, um movimento de caráter messiânico nutrido pela seiva do movimento messiânico judaico.

O segundo núcleo de cristãos-novos lusos tinha por costume congregar-se na moradia do licenciado Simão Dias, ex-procurador da aldeia de Marialva, um pequeno vilarejo localizado na estrada da Torre de Moncorvo. Em 1563, na casa de Simão, costumavam reunir-se os cristãos-novos Ayres Correia, Affonso Castilho, Simão Manuel, Luiz Marcos, Jorge Fernandes e outros.

Na aldeia de Covilhã, região da Guarda, conseguimos mapear um terceiro grupo de cristãos-novos portugueses. Este numeroso círculo de judaizantes acabou processado na cidade de Coimbra, e seus nomes aparecem nas listas do Santo Ofício desta Inquisição. Citamos aqui o casal Diogo Vaz e Filipa Nunes, Luiz Fernandes e sua esposa Violante, o abastado comerciante Diogo Vaz, Branca Fernandes, o comerciante Heitor Lopes, com sua esposa Beatriz Manoel, os mercadores Duarte Dias e Fernão Lopes, com sua mulher Beatriz Fernandes, Francisco Rodrigues, Manuel e Anna Fernandes, o viúvo Antônio Lopes, Maria Martines e outros tantos conversos.

Uma informação significativa sobre outros círculos de cristãos-novos é possível obter das denúncias do dominicano português Frei Antônio Rodrigues. Trata-se de encontros efetuados em lugares afastados. O quarto círculo de conversos se reunia secretamente na cidade de Elvas, à margem da fronteira espanhola. Nesse núcleo de cristãos-novos de Elvas, guardavam preceitos judaicos o monge franciscano Frei Martinho, Manuel Botelho, Manuel de Abreu, Mestre Francisco, Álvaro Affonso e a Bexaninha, uma personagem enigmática da qual não conseguimos maiores detalhes.

O quinto círculo de cristãos-novos costumava congregar-se no vilarejo de Portimão, pequena aldeia ao sul de Portugal. Era um núcleo reduzido, bastante seleto. As frequentes reuniões aconteciam na confortável residência do cristão-novo Antônio de Palma, situada nas proximidades do Convento de São Francisco, em Portimão. Para nossa surpresa, o cristão-novo que comandava o ritual era Frei Martinho, o mesmo responsável pela observância dos preceitos judaicos em Elvas. Certamente, este frade empreendia uma longa jornada entre Portimão e Elvas para poder atender às necessidades religiosas destas duas células criptojudaicas. Ele, Martinho, encontrava-se ali com Duarte Nunes e sua mulher Inês Dias. É importante dizer que Frei Martinho devia contar com enorme prestígio nos círculos de cristãos-novos, pois através de uma denúncia inquisitorial, sabemos que ele foi o responsável pela conversão da cristã Joanna Pinto ao Judaísmo.

Em Alcobaça, modesta localidade próxima de Lisboa, reunia-se diariamente o sexto círculo de cristãos-novos. A principal característica deste núcleo judaico é a observância de preceitos numa vizinhança totalmente hostil, pois a antiga vila dependia das atividades organizadas pelo Monastério de Alcobaça, uma entidade eclesiástica que projetou figuras destacadas, como Frei Francisco Machado, autor em 1541 da obra Espalho dos Cristãos-novos e Convertidos. Segundo a denunciação de Bento Lopes, esta comunidade judaizante contava com Gaspar Luiz, Silvestre de Souza, Bento Sanches, Custódio de Paz, Cristovam Mendes, Dom Diogo de Mansas e sua mulher, Dona Francisca de Mansas, além do converso Bernardino de Alta.

O sétimo grupo de conversos lusitanos funcionou de 1542 a 1543, na vila de Fundão, próxima à de Covilhã. A maioria das informações sobre este foco de judaizantes provém das denúncias encaminhadas ao tribunal da Inquisição por volta de meados do século 16. O maior informante era o cristão-novo Simão Nunes, habitante da vila de Covilhã. Segundo ele, a residência de Fernão Nunes se converteu numa verdadeira sinagoga, e ali vários conversos guardavam seus preceitos judaicos. Fernão Nunes “ensinava aos christãos novos salmos e lhes dizia que o Messias estava ainda para vir; fazendo assim as suas pregações” (OLIVEIRA, 1950, p. 203). Na lista de participantes, achamos sete membros de uma mesma família: Ruy Mendes (habitante do Fundão, falecido em 1542), sua mulher Izabel Mendes, o filho Henriques Mendes (mercador de Extremoz, que praticava o “Jejum de Quipur”) e demais filhos: Duarte Mendes, sua irmã Beatriz Mendes (mulher de Duarte Gonçalves, também mercador de Fundão), Anna Mendes e sua irmã, Branca Mendes (OLIVEIRA, 1950, p. 204).

Em Lamego se localizava o oitavo círculo de cristãos-novos judaizantes. O núcleo funcionou na residência de campo do converso Heitor Lobo entre 1560 e 1570. Ali, vários familiares, amigos e vizinhos de Lobo rezavam, jejuavam e observavam preceitos juntos. Notamos ainda que, na residência de Lobo, a presença do então procurador de Lamego, que também tinha origem cristã-nova, era frequente.

Abundante informação sobre este círculo de Lamego extraímos das pastas de cristãos-novos processados pelo Santo Ofício de Coimbra. Nelas, encontra-se o processo da judaizante Ana Fernandes, com acusações contra 33 cristãos-novos. Há ainda o processo da Izabel Henriques, com acusações contra outros 27 conversos. Em ambos os casos, as culpas são: “judaizar publicamente”. Assim como na vizinha Espanha, também em Portugal a proibição imposta aos cristãos-novos, de imprimir e difundir obras sagradas, era total. Isto aparece em muitas das fontes judaicas, como Eliyahu Capsali (1483-1555) e Abraham ben Samuel Zacuto (1450-1522). Porém, a carência de textos hebraicos não foi considerada um sério problema para os conversos. Desde a mais tenra idade, aprendiam a decorar rezas extraídas de várias citações bíblicas, especialmente Tehilim (Salmos). Assim, o ensino-aprendizagem da ritualística sacra passava de geração em geração.

Naturalmente, a complexa situação gerada pela conversão forçada de 1497 aumentou a proibição de publicar e utilizar textos com caracteres hebraicos. Perante esta censura inquisitorial, as primeiras Bíblias com caracteres latinos, denominadas em Portugal de Brívias (LIPINER, 1977, p. 34), tiveram um papel fundamental na difusão do Judaísmo.

Nos “Livros de Denunciações do Santo Ofício”, encontramos curiosas histórias acerca de textos bíblicos utilizados pelos conversos. A partir de uma denúncia feita em 17/01/1556 ao tribunal pelo cristão-novo Duarte Rodrigues contra a judaizante Maria Lopes, da vila de Santarém, tomamos conhecimento de que a dita Maria acusou frei Antônio d´Almeida (pregador do convento de São Francisco), por proferir palavras duras contra a Bíblia, dizendo inclusive que “a Bíblia na mão de judeus era cortiça queimada” (BAIÃO, VII, 1909, p. 7), fazendo naturalmente uma clara referência aos temidos autos da fé, que já começavam a realizar-se nas grandes cidades lusitanas.

Outro episódio que ensina acerca do empenho e da vontade dos cristãos-novos em estudar textos bíblicos aparece vinculado ao contrabando de Bíblias e livros com caracteres hebraicos dentro de Portugal e desde Lisboa até as colônias d´além-mar, especialmente Goa, Cochim e as capitanias do Brasil. Em 1505, chegou Francisco Pinheiro, filho do corregedor Martim Pinheiro, a Cochim (na Índia), com um caixão repleto de Bíblias hebraicas confiscadas de esnogas ou sinagogas. Francisco começou a comercializar as Bíblias por grandes quantias de dinheiro. Segundo informa a denúncia, naquele tempo, morava em Cochim uma cristã-nova que teria ajudado Francisco na venda dessas obras. As notícias sobre esta grande comercialização de Bíblias na Índia teria chegado aos ouvidos de D. Francisco d´Almeida, um alto funcionário da corte portuguesa. Em pouco tempo, Almeida ordenou encerrar por completo esta atividade, apropriando-se do caixão com livros sagrados. Até o momento do confisco, Francisco Pinheiro conseguiu vender 13 Bíblias ao preço de 4.000 pardais, moeda da época. Por volta de 1506, o corregedor Almeida já havia conseguido devolver as Bíblias a Francisco Pinheiro, e os compradores receberam seu dinheiro de volta.

Em denúncia de 10/04/1556, ficou marcada uma forte discussão acontecida nos cárceres da Inquisição entre o cristão Matheus Fernandes Santiago e o cristão-novo Alonso Nunes acerca do “Bezerro de Ouro”. A discussão girou em torno da pergunta “se os judeus tinham feito bem ou não em adorar o bezerro d´ouro”. (BAIÃO VII, 1909, p. 7). Essa denúncia não esclarece quem defendia cada posição nem quem venceu a controversa discussão. No entanto, a leitura revela que as acusações feitas ao cristão-novo são de caráter econômico, insinuando que o ouro (dinheiro) sempre esteve nos pensamentos dos judeus e, atualmente, dos conversos. Este episódio nos mostra nitidamente como o relato bíblico era conhecido pelos cristãos novos.

Podemos afirmar com total clareza que as orações e rezas sempre estiveram no foco das reuniões dos cristãos-novos, especialmente no Shabat (sábado), nas festividades judaicas e no grande Jejum do Quipur. A reza representava para os conversos uma forma de união entre eles. Era vista como uma forma de laços fraternos em tempos de provações ou testes, particularmente quando eles eram chamados a defender a lei de Moisés em debates públicos ou conversas cotidianas. A oração era também uma forma de implorar a Deus para não caírem nas malhas da Inquisição.

Assim como seus irmãos espanhóis, os cristãos-novos portugueses tinham por costume recitar Salmos. Em 1536, o Monitório da Inquisição solicitava à população das vilas e cidades denunciar aqueles cristãos-novos que recitam orações hebraicas, principalmente “Salmos Penitenciais sem Gloria Patri, Filii et Spiritu Sancto”. Recitar salmos sem mencionar as três pessoas (essências divinas) era negar a Trindade e, consequentemente, o próprio Cristianismo. Na sentença de Frei Diogo da Assunção, ele mesmo acabou confessando que:

“não há Santíssima Trindade senão um só Deus, e não havia Deus Filho e Deus Espírito Santo, e que os cristãos erravam em dizer que havia Trindade porque nisso faziam três Deuses, e por isso ele [Diogo] rezava os Salmos do Breviário sem dizer Gloria Patri” (LIPINER, 1977, p. 78).

Num outro processo inquisitorial, o converso Simão Lopes costumava rezar os Salmos penitenciais 6, 32, 51, e 130 ao amanhecer. Como testemunhamos, uma quantidade de salmos foram copiados nos documentos inquisitoriais. Há também,
nos Livros de Denunciações, orações para o reestabelecimento e cura de cristãos novos doentes. Particularmente curiosa é a história de Manuel Marques, um converso morador de Porto que denunciou três tios residentes em Coimbra, mesmo sabendo que eles rezaram pelo seu reestabelecimento após quarenta dias de doença e repouso absoluto. Durante as rezas, Manuel, delirando de febre, apenas escutou as palavras “Adonay Rei, Adonay Reyna” [Deus é Rei, Deus é Rainha]. Manuel comentou na ocasião que seus tios jamais observaram as leis cristãs (BAIÃO, VII, 1909, p. 140).

Jejuns não faltam nos Livros de Denunciações do Santo Ofício. Eles eram vistos como ferramentas essenciais para libertar os cristãos-novos das garras da Inquisição e, ao mesmo tempo, para aproximar o converso afastado de um Judaísmo cada vez mais fortalecido. Esta ideia aparece na denúncia de Manuel Marques (já citado), que, ao estar preso nos cárceres de Porto junto a seu grande amigo Christovam Dias, “recomendou a este último [Christovam] cumprir os jejuns judaicos para libertar-se”.

Entre outras denúncias, estudamos a de Violante Nunes, que guardava Tanis (Jejum) às terças e quintas-feiras, como também o Jejum Tesabeav (Tishá Beav = Jejum de Nove do mês de Av, pela destruição dos Templos) e o Jejum da Rainha Esther. Em sua denúncia a cristã-nova Margarida Rodrigues recomenda a vários dos cristãos-novos “praticar o Jejum da Rainha Esther para Deus livrar sua irmã, Beatriz Ayres, das garras inquisitoriais, porque ela, Margarida, fazia o mesmo a fim de ser livre o seu marido Manoel João, então preso” (OLIVEIRA, 1950, p. 205). É importante registrar que o Jejum de Purim era tido pelos criptojudeus como uma festa de redenção (LIPINER, 1977, p. 84-93).

Não há documento inquisitorial que ignore o “Grande Jejum” ou Jejum de Quipur. Sabemos que, com o passar do tempo, certos preceitos judaicos poderiam ser esquecidos, mas o Jejum de Yom Quipur sempre esteve presente no pensamento dos convertidos. Francisco Dias “denunciou a sua mulher Branca Rodrigues por fazer o Jejum de Quipur” (BAIÃO, VII, 1909, p. 11), e a mulher de Simão Ribeiro costumava dizer que o “Jejum de Quipur serve para aproximar a Redenção [lembrando o momento], em que Deus tirou os judeus da escravidão do Egito” (LIPINER, 1977, p. 85).

denunciações feitas pelos portugueses ao tribunal da Inquisição em Lisboa trazem informações significativas acerca da observância do shabat diante do olhar atento da população cristã. É natural que quase todo cristão-novo, em maior ou menor grau, respeitasse a santidade do sábado. Isto é possível deduzir da denúncia do padre Vaz Madeira, que presenciou o converso Antônio Fernandes se orgulhar pelo fato de todos guardarem o sábado na sua casa. Em outras denunciações são citadas cristãs-novas preparando a casa às sextas feiras para receber o shabat. A partir da denúncia do torneiro Matheus Dias contra o converso Christovam Lopes (livreiro e encadernador), sabemos que “este último junto a sua esposa Ingêz Delgado guardavam os sábados” (BAIÃO, VII, 1909, p. 8).

Bastante significativa é a história do sapateiro Antônio Luiz, que, durante sua reclusão num “Collegio da Doutrina da Fé” (Escolas Gerais de educação cristã), “denunciou a mãe do cristão-novo Henriques Fernandes por guardar os sábados” (BAIÃO, VII, 1909, p. 141). O dia de sábado era respeitado em todas as camadas da população judaizante. Cristãos-novos que habitavam as zonas rurais também guardavam esse dia santo. Um exemplo é Jerônimo Rodrigues, do vilarejo Freixo de Namão, região norte de Portugal, que, mesmo relaxado à justiça secular em 23/04/1560 (foi perdoado algumas vezes pelo tribunal), “continuava a observar com extremo fervor os sábados” (BAIÃO, VII, 1909, p. 15).

Há, nos “Livros de Denunciações”, descrições sobre a preparação da cera dos pavios (azeite dos candeeiros) para acendimento das velas do shabat. No dia 9 de setembro de 1558, a viúva Gracia Teixeira denunciou a cristã nova Izabel Fernandes, “por mandar acender candeeiros na noite de sexta feira para sábado e trabalhar em dias sanctos” (BAIÃO, VII, 1909, p. 13).

Contrariamente aos conversos espanhóis, seus irmãos portugueses não dedicavam tanto tempo à preparação das velas de cera, nem tampouco trocavam seus candeeiros com tanta frequência. Na documentação estudada, registramos só um
casal de judaizantes que seguia ao pé da letra o costume de colocar azeite aos candeeiros:

“Em 07 de fevereiro de 1543 se apresentou diante do tribunal Domingos (?), natural de Torre de Moncorvo, e disse ter vivido na Guarda em casa de um Ruy Lopes e de sua mulher Leonor Gomes, aonde nas 6as [feiras] à noite limpavam os candeeiros, pondo-lhes novas torcidas [pavios] e guardavam os sábados; não comiam carne de porco” (OLIVEIRA, 1950, p. 204).

Às vésperas do shabat, as residências dos conversos tinham um ar peculiar, sendo as mulheres (mães e filhas) as responsáveis pelo clima festivo reinante nos lares, com direito à gastronomia especial, uso de roupas brancas limpas e acendimento de velas e candeeiros. Em 25 de junho de 1560, o procurador do Convento de Thomar, Filippe da Costa, apresentou-se diante do tribunal de Lisboa e contou que, em visita feita no dia sábado a Trancoso, com a finalidade de arrecadar dinheiro para o monastério, “viu cristãs-novas vestidas de festa e ouviu dizer que, nas suas tendas, não vendiam, o que faziam aos domingos” (BAIÃO, VII, 1909, p. 16). O ambiente de shabat criado pelos cristãos-novos por volta de 1497 em diante permite afirmar que este preceito preservou a vida judaica existente até o momento das conversões forçadas.

A circuncisão foi um preceito milenar decisivo na vida cotidiana dos cristãos-novos que pretendiam voltar a viver como judeus íntegros. Eles entenderam perfeitamente os eminentes perigos surgidos ao observar este preceito, e obviamente todo converso sabia que os inquisidores conheciam o preceito da circuncisão. Devemos entender a diferença existente entre o cumprimento da circuncisão pelos conversos da Espanha e de Portugal. Enquanto os primeiros procuravam circuncidar-se apenas com judeus, os últimos faziam suas circuncisões nas próprias comunidades de cristãos-novos, ou eventualmente no exterior, com algum judeu europeu, para depois retornar a Portugal. Segundo testemunho de Dom Gaspar Ribeiro, “o visitador da Inquisição” em Covilhã, em 12/06/1579, o cristão-novo de Belmonte Manuel Fernandes, circuncidou seu filho. Assim foi seu depoimento ao tribunal:

“Antes de tratar qualquer outro assunto, a vontade dos homens [inquisidores] foi chamar o padre da vila de Covilhã, para que [na sua presença] o filho de Manuel Fernandes seja revisado por um médico; esclarecendo se dita circuncisão foi feita por mão do homem ou se he falto [nasceu circuncidado]. Ao verificar-se que foi feita por mão do homem, decidiram manter Manuel Fernandes no cárcere até ele [Manuel] pagar fiança de 200 cruzados trazidos no prazo de 15 dias junto a seu filho” (OLIVEIRA, 1950, p. 207-208).

Às vezes, fruto do desconhecimento, havia discrepâncias entre os cristãos-novos no que tange à circuncisão. Por volta de 1600, Simão de Proença, um judaizante que fugiu para o Brasil-colônia, discutiu com o poeta Bento Teixeira, autor da Prosopopeia, sobre a circuncisão. Enquanto Proença achava que este preceito representa unicamente o pacto milenar entre Deus e seu Povo (diferenciando-o dos outros povos), Teixeira entendia que a circuncisão tinha a função de retirar o prazer sexual do homem.

Nos textos, achamos cristãos-novos adultos que solicitavam ser circuncidados fora de Portugal. Antônio Paes era um judaizante lusitano que se juntou a seu pai em Flandres e Ferrara, sendo circuncidado no exterior. Antônio mudou ainda seu nome, acreditando salvar-se apenas na “Lei de Moyses”. Pisa e Ferrara foram as duas cidades preferidas dos conversos portugueses.

Através do comportamento do cristão-novo Lopo Luiz de Leão, é possível captar a força indiscutível que tinham os preceitos judaicos observados em tempos de Inquisição. A colocação de tefilim (filactérias), o uso de talit (xale para usar na sinagoga), a preparação do azeite para acender os candeeiros, fazer tzedaká (doações a necessitados), dar a benção aos filhos e ser um bom “casamenteiro de órfãs” (shiduch ietomot) era parte da realidade cotidiana dos conversos.

Cristãos novos sabiam que o lugar escolhido para elevar orações, seja uma moradia seja uma sinagoga, precisa contar com ótima iluminação. Assim, o preceito trumat shemen lamaor (doar o azeite para iluminar espaços), citado em Êxodo 25,6 e 39,7 virou uma obsessão. Em 30 de maio de 1581, foi informado ao tribunal de Lisboa que “em Ferrara havia uma lâmpada de São Vicente, uma do Fundão e outra em Covilhã” (OLIVEIRA, 1950, p. 208).

O tribunal de Pernambuco, que funcionou no Brasil através de “visitações” organizadas desde Portugal, recebeu uma denúncia em 1593, pela qual se soube que o judaizante Thomas Lopes “tinha um sinal na sua perna para que os cristãos novos [o reconhecessem] e doassem azeite para os candeeiros” (LIPINER, 1977, p.22).

Ao longo do processo inquisitorial realizado em Coimbra contra o Dr. Antônio Homem, aparece que “o réu [Antônio] era membro de uma confraria que doava azeite para uma sinagoga”. Segundo Elias Lipiner, é bastante provável que os inquisidores conhecessem este antigo preceito, pois em alguns dos processos perguntam ao réu: “A que sinagoga você doa azeite para candeeiros?” ou “para quem está destinada a doação?” ou “quem receberá a sua doação?” (LIPINER, 1977, Idem).

Doações para judaizantes necessitados eram frequentes nas comunidades conversas. Em sua denúncia contra o médico Manuel Nunes (um cristão novo morador de Lagos), o mercador francês Mathurim Demona afirmou: “quem dá esmolas e casasse órfãs entra no céu, ainda que pesasse a Jesus Christo…” (BAIÃO, VII, 1909, p. 144).

Cristãos-novos lusos se diferenciavam por completo de seus vizinhos cristãos velhos nos hábitos alimentares, nas relações matrimoniais e no luto. Entre as numerosas denúncias, encontramos quatro atitudes diferentes no que se refere ao consumo de carne:

1. há cristãos-novos que costumavam comer carne bovina às sextas-feiras para contrariar o costume cristão de consumir peixe neste dia da semana. A rigor, todo aquele que não comesse peixe era visto como herege. Assim, o sapateiro Antônio Simões denunciou seu colega de profissão Francisco Gonçalves, por haver consumido carne na sexta-feira. Obviamente, cristãos sofreram com este tipo de comportamento, a ponto de acharmos cristãos puros acusados de heresia por haverem ingerido carne às sextas feiras. Numa denúncia contra o padre Gonçalo Affonso e o judaizante João da Rosa (ambos acusados de comer carne), o último chegou a afirmar com convicção que o que entra pela boca não contamina a alma;

2. os cristãos-novos de Portugal, sempre que possível, evitavam ingerir carne de porco. É natural que alguns deles inclusive guardassem carne de porco, caso entrasse algum cristão nas suas casas. Numa denúncia datada de 24/03/1587 presenciamos uma situação bastante peculiar: Antônio, empregado de Catharina Carreira, delatou a cristã-nova Branca Arraes “por mandar dizer a sua filha que não deitasse toucinho na panela” (BAIÃO, VIII, 1910, p. 426).

Naturalmente, a maioria dos judeus convertidos se esquivava em receber convites para comer na mesa dos cristãos. Aceitar um convite desses era, na certa, transgredir as cashrut, antigas normas da gastronomia judaica. Geralmente, eram os médicos e boticários que mais cuidado deveriam tomar, evitando convites de nobres cristãos. Segundo uma denúncia, o cristão-novo Miguel Lopes (médico de Castelo Branco e convidado de honra do bispo de Guarda) não experimentou nem cação nem toucinho;

3. nos “Livros de Denunciações”, não detectamos sinais de abate casher, seguindo o rito judaico. Acreditamos que ele existia, mas era feito longe dos olhos atentos dos cristãos. Em 16 de abril de 1584, apresentou-se diante do tribunal de Lisboa a viúva Maria Ferreira e denunciou sua vizinha, a cristã-nova Leonor Mendes, relatando que “quando lhe vinha carne do açougue, tirava-lhe toda a gordura…” (BAIÃO, VIII, 1910, p. 422). A conversa Ignêz Álvares disse ter por costume “retirar da carne todos seus nervos” (BAIÃO, VIII, 1910, p. 475).

4. informação significativa sobre a forma de cozinhar dos cristãos novos lusos está presente nas numerosas denúncias encaminhadas ao tribunal inquisitorial. O comerciante Gomes Rodrigues delatou a mãe da cristã-nova Guiomar Gomes por “colocar uma galinha com todas suas penas dentro de uma panela com azeite”. Sendo questionada pelo tribunal, a filha Guiomar respondeu que a mãe fazia isto por crença.

Os cristãos-novos preferiam realizar casamentos endogâmicos. No entanto, a existência de casamentos entre eles e cristãos puros foi resultado de uma convivência real e indispensável. Existem provas de que nobres cristãos se relacionavam afetivamente com moças cristãs-novas, e conversos judaizantes com moças cristãs-velhas. Os casamentos eram, pois, o desfecho natural de um convívio cotidiano. Há casos documentados em que os pais se opunham aos casamentos mistos. O pai do cristão-novo Francisco de Oliveira resistia a que seu filho casasse com uma cristã-velha, então, sem que seu pai tomasse conhecimento, já muito deprimido, fugiu para Antuérpia e lá adoeceu. Atendido por duas jovens vizinhas filhas de conversos portugueses, decidiu casar com a irmã de uma delas. Durante o século 16, em Pisa, cidade ao norte da Itália, houve casamentos judaicos entre cristãos-novos vindos de Portugal.

A relação com a morte e o luto rendem depoimentos curiosos. Como de costume, os cristãos-novos estavam preocupados com a purificação do corpo e o posterior sepultamento. Em 17/10/1548, a judaizante Isabel Rodrigues contou ao tribunal que:

costuma amortalhar os cadáveres que lhe pedem e pediram-lhe para ir amortalhar um filho da Morena, [uma] christã nova que foi ama de Duarte Tristão; trabalho em que ajudou Catharina Reinel, e quiseram que ela [Isabel] o amortalhasse como costumam os christãos novos… (BAIÃO, VII, 1909, p. 442).

A cristã-nova Izabel Henriques, esposa do também cristão-novo espanhol Gabriel Gomez Navarro faleceu. Logo, o marido e filha “purificaram seu corpo, cortaram suas unhas e a vestiram com roupas novas, colocando-lhe uma moeda na boca atendendo ao costume dos christãos novos, para depois enterrá-la”. Durante uma semana completa, Gabriel Gomes Navarro e família mantiveram o luto de 7 dias denominado shivá, não deitaram em camas (apenas em colchões), prepararam uma mesa baixa com luz tênue, outra mesa com toalha, um copo de água e uma faca. Todas as noites trocavam o pão e a água. Encerrados os sete dias, a família doou os 7 pães a duas viúvas que guardaram o luto pela alma da falecida.

Na documentação inquisitorial não há menção de cemitérios para sepultamento dos cristãos-novos. É bem provável que os conversos enterrassem seus entes queridos em cemitérios cristãos, observando o ritual judaico. A postura dos judaizantes em relação a suas crenças aparece com clareza nos “Livros de Denunciações do Santo Ofício” de Lisboa. A ideia messiânica era compartilhada sem grandes mudanças pelos conversos. Em outras palavras, os judaizantes lusitanos acreditavam num futuro “redentor” que viria para salvar o Povo de Israel das permanentes tribulações e violentas perseguições.

Sustentando uma ideia clássica e milenar que reivindica um reino judaico-messiânico “neste mundo”, os conversos receberam com grandes esperanças personagens que agitaram suas comunidades como sendo verdadeiros redentores. Em toda a Península Ibérica, foram idolatrados diversos “falsos messias”, oportunistas e impostores que desapontaram e abalaram as estruturas espirituais dos conversos.

No decorrer do século 16, surgiram em Portugal judeus de personalidades complexas e extravagantes, que acreditavam serem enviados de Deus. Dentre eles devemos mencionar David Reuveni (um judeu da África), Shelomó Molcho (discípulo de Reuveni, mais conhecido como Diogo Pires) e Luiz Dias (Messias de Setúbal). Num trecho da sentença do cristão-novo Gil Vaz Bugalho, ficou evidente que ele “estava apartado do caminho da verdade, gostava muito das cartas do apostasiarca Luis Dias de Setúbal, relaxado na Inquisição de Lisboa, que ele réu, e muitos cristãos-novos, tinham por ser o Messias prometido na lei”. Da troca de correspondências entre Vaz Bugalho e Dias, é notória a força da esperança messiânica nas comunidades conversas, e a veneração que conquistou o “Messias de Setúbal”. Numa das cartas Vaz Bugalho clama abertamente: “Eu [lhe] imploro, revele sua identidade, mostre seu semblante de Juiz do Universo, que todos os mortais te reconheçam” (LIPINER, 1977, p. 80). A resposta de Luiz Dias não tardou em chegar:

“Como podereis constatar, o cetro na mão Dele [Messias] trará um grande esplendor [zohar], e a sua força será tão intensa que até os Céus regozijar-se-ão, e ali, pela primeira vez; todos escutarão o som do grande shofar. E isso alegrará ao Criador. E, se por acaso isto acontecer, transmitireis um amor incondicional, pois assim esse amor contagiará os outros fiéis” (OLIVEIRA, 1950, p. 204).

Luiz Dias confessou à Inquisição que todos os seus filhos foram circuncidados, que incentivou cristãos-novos a adentrar no “Pacto de Abraham”, que criou um clima de efervescência messiânica e que falou diretamente com Deus. Por duas vezes, o Santo Ofício abriu contra ele um processo e, no final de 1542, o réu foi sentenciado à morte no auto de fé em Évora.

Nesse mesmo ano de 1542, na vila de Fundão, achamos depoimentos hostis contra o messias cristão. Na denúncia do cristão novo Simão Nunes, o escrivão do Santo Ofício colocou que “o Mesyas não veio ainda” e que, certamente, “o mesyas não tinha necessidade de se meter no ventre de huma molher, e que o Mesyas não [h]avya de ser Deus” (OLIVEIRA, 1950, p. 204). Durante suas confissões, Simão Nunes disse que o médico Luiz Gomes Dias tampouco acreditava que o Messias tivesse chegado.

Na praça central de Torres Novas conversam Bernardino Ferreira, Jerônimo da Costa e o cristão-novo Affonso Rodrigues Pacheco sobre as detenções feitas pela Inquisição na região. No decorrer da conversa, Ferreira disse estar muito surpreso de os judeus ainda persistirem em acreditar que o Messias não chegara, principalmente quando a “Profecia das 70 Semanas” do Profeta Daniel já se havia concretizado. A profecia bíblica (capítulo 9) revela: “Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expirar a iniquidade, para trazer a justiça eterna e para ungir o Santo dos Santos”.

Na consciência dos cristãos-novos, sempre esteve presente a saudosa Terra de Israel, denominada por eles mesmos a Terra de Promissão, um lugar único a ser libertado dos turcos-otomanos. Num diálogo entre o prefeito de Valhelhas Antônio Rico e o cristão novo de Belmonte Arturo Rodrigues, este último disse que “a terra de Jerusalém é estéril, produz somente pão, pelos pecados dos judeus ao crucificar Jesus”. Preocupado com sua afirmação, completou que “ela [Jerusalém] ainda tornar-se-á fértil quando o Messias chegar”.

O antagonismo entre o Judaísmo e o Cristianismo tomou parte considerável do mundo real e imaginário dos cristãos-novos. Assim, numerosos são os diálogos em que cristãos-novos (como Filippa Marques ou Diogo Fernandes) manifestam sua adesão à “lei de Moyses”, pois acham que “o Messias ainda há de vir e trará consigo as doze tribos de Israel” (OLIVEIRA, 1950, p. 212). Em Portugal, alguns cristãos velhos aderem à “Lei de Moysen”, pois ela inclui os dez mandamentos, verdadeiro pilar de sustentação para toda a Humanidade.

PALAVRAS FINAIS

O estudo sistemático dos Livros de Denunciações do Santo Ofício de Lisboa permite revelar a ampla gama de costumes, ritos, hábitos e preceitos judaicos observados pelos conversos. Encontramos comportamentos perfeitamente documentados que fazem parte inseparável do cotidiano, enquanto outros, como o messianismo, constituem o mundo das ideias, um vestígio do universo milenar judaico.

Como tentamos demonstrar, guardar preceitos em Portugal durante o século 16 era uma tarefa extremamente arriscada, policiada quase diariamente pelos olhos atentos dos inquisidores e colaboradores. A rede de denúncias promovida pela Inquisição fez com que os cristãos-novos procurassem formas criativas de driblar esta instituição. Porém, o clima de medo e terror criado os obrigou a delatar um número grande de pessoas, salvando assim suas próprias vidas.

As denunciações estudadas demonstram com clareza que “salvar-se na lei de Moisés” era não apenas um anseio pessoal, mas um forte desejo grupal; um acalentado sonho coletivo e comunitário. Há, nos cristãos-novos portugueses, uma vontade de unir-se em torno de um destino comum; um elo que visa a congregar na Terra de Promissão as almas divididas, aquelas “almas em litígio” do Povo de Israel.