D. Pedro II, manuscritos hebraicos e os orientalistas de São Petersburgo

Este artigo aborda quatro momentos pouco conhecidos da vida do Imperador D. Pedro II. Analisaremos a sua forte paixão pela Bíblia e pelos manuscritos hebraicos da época; lembrando, também que, três dos quatro momentos escolhidos fazem parte da pequena caderneta de viagem (Diários 18‑19, maço 37, doc. 1057), guardada no Museu Imperial de Petrópolis, e publicada há alguns anos em edição crítica.1 São estes os episódios: 1) visita guiada à Universidade de São Petersburgo; 2) traduções realizadas durante sua viagem a Terra Santa; 3) visita aos judeus samaritanos na cidade de Nablus na Samária; 4) crítica aos monges de Saint Sabbá na Judéia.

Palavras-chave: Bíblia. Manuscritos. D. Pedro II.

Abstract: This article discusses four little-known moments of life of the Emperor D. Pedro II. We’ll review his strong passion for the Bible and Hebrew manuscripts of the time; Recalling also that three of the four chosen moments are part of the little book of travel (Daily 18-19, Pack 37, doc. 1057), stored in the Imperial Museum of Petrópolis, and published a few years ago in critical edition. 1 these are the episodes: 1) guided tour of the St. Petersburg University; 2) translations carried out during his trip to the Holy Land; 3) visit to Jews Samaritans in Nablus and in Samaria; 4) critical to the monks of Saint Sabbá in Judea.

Keywords: Bible. Manuscripts. D. Pedro II.

1. D. Pedro II na Universidade de São Petesburgo

D. Pedro II foi recepcionado na famosa Academia de Ciências e Universidade de São Petersburgo em 31 de agosto de 1876 pelo emérito orientalista Elie Nicolaevitch Berezine. Não sendo época de aulas, o monarca percorreu salas vazias, laboratórios, bibliotecas, museus de história natural, mineralogia, zoologia, geologia, botânica, física e química. Com redobrada atenção, observava tudo, ouvindo as explicações que lhe eram dadas, revelando aos professores que o acompanhavam, um vasto conhecimento das ciências.

Na visita, demorou-se no gabinete do professor Dimitri Ivanovitch Mendeleiev (1834-1907), inventor da tabela periódica dos elementos químicos; freqüentemente comparado com o criador da química moderna o francês Antoine Lavoisier (1743-1794). O químico russo havia preparado algumas salas para recorrer durante a visita de Sua Majestade. Ao examinar cada seção, Pedro II falava como conhecedor, e pedia, ao mesmo tempo, novas informações sobre outros mestres russos que visitara antes na Europa. Com o lingüista Vasiliev conversou longamente sobre as línguas chinesas, mostrando-se, ser, também, um erudito filólogo.

Afeiçoado à leitura, durante as explicações fornecidas, o Imperador descobria quase sempre, discordâncias, enganos e lacunas. Assim, compreende-se a forte admiração despertada, entre os professores russos, ao emitir opiniões próprias, pedindo novos esclarecimentos sobre casos controversos. Segundo o escritor Argeu Guimarães, “sua maneira delicada, afável, comunicativa, impressionou os docentes da Universidade de São Petersburgo, os quais, após a partida do monarca, se reuniram para proclamá-lo membro de honra dessa instituição e oferecer-lhe várias obras, tais como a História da Universidade de São Petersburgo de Grivoriev, a Enciclopédia Russa do professor Berezine, uma História Natural e outras publicações acadêmicas”.

Por volta das 11h da manhã, D. Pedro começou uma visita à Biblioteca Imperial. Prolongou-se até as 15h, quando o Imperador examinou com muita atenção todas essas relíquias bibliográficas. Bibliófilo e erudito, surpreendeu a todos com seus conhecimentos. O Imperador lia com facilidade os títulos dos livros em russo, mesmo aqueles gravados em caracteres antigos. Não só o texto russo, mas também o latino, alemão, árabe, hebraico e samaritano, estavam ao alcance do seu saber na seção de manuscritos antigos. Era, segundo relatos, surpreendente a facilidade com que versava sobre importantes questões e, não raro, os especialistas que o acompanhavam e facilitavam as explicações, eram induzidos a desistir, pois o Imperador já estava bem sintonizado com os temas ministrados.

De particular curiosidade para Pedro II foram as seções de história, etnografia, arquitetura, indumentária e ornamentaria russa. Os mais ilustres nomes da literatura, da história, das ciências e das belas artes eram familiares ao monarca, grande admirador das obras do historiador Nicolau Karamzine e do fabulista Ivan Krylov.

Pedro II examinou autógrafos do escritor Alexandre Sergueievich Pushkin (1799-1837), do poeta lírico Nicolau Gogol (1809-1852), do romancista Michail Y. Lermontov (1814-1841), do poeta Gavril Roma-novich Derjavine (1743-1816), do compositor Miguel Ivanovich Glinka (1804-1857), do reformador e estadista Mikhail Speransky (1772-1839), ou seja, toda uma galeria intelectual da Rússia czarista. Numa crônica russa publicada nos dias de sua visita, o dignitário brasileiro é tido como eminente poliglota, linguista e filólogo. Sob esse olhar, ele conquistou um lugar de destaque entre os sábios orientalistas de São Petersburgo. A visita à Biblioteca Imperial terminou pelo exame minucioso de uma coleção de Bíblias impressas em várias línguas. Esteve finalmente na sala da Idade Média, no famoso “Gabinete de Fausto”, cujo gosto e originalidade lhe inspiraram elogios. O Imperador voltou à Biblioteca Imperial uma semana depois, em 6 de setembro, para examinar especialmente os pergaminhos hebraicos e os manuscritos samaritanos da “Coleção Firkovitch”.

Abraham Ben Samuel Firkovitch (1785-1874) foi um renomeado escritor caraíta (judeus que acreditam apenas na lei escrita, na Torá), responsável pelo revival dos estudos caraíticos na Rússia. Protegido pelo sábio Bobovitch, com 25 anos de idade empreende uma viagem à Palestina otomana para depois retornar e fundar, na Criméia, uma sociedade dedicada à publicação de obras caraítas antigas. Na ocasião, faz uma petição ao governo russo para que lhe seja entregue um informe completo sobre as origens da seita. Assim, já consagrado como estudioso, Firkovitch promoveu discussões científicas a respeito dessa literatura, despertando o interesse de pesquisadores judeus e não judeus do mundo inteiro. A fim de demonstrar a antiguidade dessa vertente judaica, no entanto, ele falsifica documentos, mesclando peças autênticas com falsas. Essas falsificações foram descobertas após sua morte.

Firkovitch realizou numerosas expedições arqueológicas, furtou manuscritos dos arquivos das comunidades caraítas da Criméia para, logo depois, vendê-los à biblioteca da Universidade de São Petersburgo. Num primeiro momento, os historiadores judeus aceitaram a autenticidade dos documentos de Firkovitch, mas um tempo depois, suas teorias foram contestadas por Steinschneider, Efraim Deinard, David Kahana. Suas obras são de valor literário limitado. O livro Avnei Zicharon (Pedra da Memória), publicado em 1872, causou grandes polêmicas contra o Judaísmo rabínico. Já seus artigos e poesias formam publicados em Viena (1871) pelo ensaísta judeu Saul Smolenski sob as siglas Abnei Reshef (referindo-se às primeiras letras de Abraham ben Rabbi Shemuel Firkovich).

Na Biblioteca Imperial, Pedro II passou cerca de duas horas com o bibliotecário Garkavine, conversando sobre a data dos manuscritos hebraicos e comentando as ilustrações existentes nas margens dos mesmos. O monarca queria saber detalhes do debate arqueológico envolvendo os judeus da Criméia. Referindo-se aos diferentes temas abordados durante o Terceiro Congresso de Orientalistas, Sua Majestade discursou sobre o tema dos hieroglíficos, e particularmente sobre as inscrições do Rei Mesha, líder dos moabitas. Pediu informação sobre a seita dos samaritanos e sua literatura, fez perguntas e indagou no fim da palestra se haveria indícios comprobatórios de que a sintaxe e a prosódia da literatura hebraica dos tempos antigos foram alterados, se seria possível constatar com documentos fidedignos como se denominavam primitivamente os lugares da Palestina.

Satisfeita a curiosidade do monarca, declarou ele que pretendia ir à Palestina e fazer por lá novas pesquisas. Os convidados ouviam suas palavras com respeito e admiração, especialmente pela vastidão de seus conhecimentos históricos e literários. Em 6 de setembro, pela tarde, o Imperador recebeu uma comissão da Academia de Ciências e da Universidade da São Petersburgo, que lhe entregou os diplomas de membro de honra das duas instituições. Saudado pelo Prof. Brosse e pelo físico e químico Nicolai Nicolaievitch Beketof (1827-1911), Pedro II agradeceu em francês, fazendo elogios à cultura russa. A sessão inaugural se realizou na sala da Biblioteca Imperial. D. Pedro II aceitou o título de membro de honra que lhe fora concedido pelos participantes do evento. Assistiram à solenidade o Ministro de Instrução Pública, numerosos sábios russos, convidados estrangeiros.

A grande ala mostrava um aspecto deslumbrante, toda decorada de flores, bandeiras e tapeçarias. Atrás de um estrado, destacava-se um quadro do czar Alexandre II. Ao fundo, um grupo de habitantes da Sibéria oriental, especialmente convidados pelo governante russo. Junto à mesa central, os representantes do governo, membros de institutos, e jornalistas. Do lado oposto estava o público presente. Na ocasião foram entoados cânticos, e o professor Grigorieff, presidente do congresso, abriu a sessão com um discurso em francês. O Congresso de Orientalistas devia absorver o tempo de Pedro II, sacrificando uma parte de seu programa de visitas e passeios. Mas, como a inauguração do Congresso foi marcada para a tarde, o Imperador aproveitou para ver o Paço de Ekaterinehoff. E, terminada a sessão de abertura, fez uma excursão às ilhas e às belas vilas de Outine e Gromoff.

A Comissão organizadora do Congresso de Orientalistas, convocado pela Universidade de São Petersburgo, compunha-se dos seguintes profissionais: W.W. Grigorieff, professor de História do Oriente e decano da Faculdade de Línguas Orientais; K.P. Pakanoff, catedrático de armênio; Daniel Abramovitch Chwolson, professor de hebraico, caldeu e assírio; A. L. Kuhn, adido ao Governo do Turquestão para pesquisas arqueológicas. O primeiro tema abordado no Congresso tratou do desenvolvimento das disciplinas orientalistas sob os diferentes prismas: arqueológico, epigráfico, geológico e paleontológico. Os participantes se propunham a definir o nexo entre o Oriente e a Europa. As línguas estudadas documentavam a continuidade das raízes arianas e das russas, oferecendo novos caminhos para procurar respostas às interrogações formuladas.

Os russos, assim como os arianos, iam buscar o berço milenar na Ásia central. Tudo em pleno horizonte das predileções de D. Pedro II. Tinha ele a paixão pelo estudo das línguas orientais e das civilizações antigas. A obra do judeu Antoine Isaac Silvestre de Sacy (1758-1838), precursor dos estudos orientais na França, para quem a vida do Oriente não tinha segredos, era uma das leituras favoritas da Biblioteca do Imperador. Ele lera o mestre francês e os seus ilustres discípulos, dentre eles, o famoso Jean François Champollion (1790-1832), tradutor de hieroglíficos da “Pedra Rosetta”, atualmente exposta no Museu Britânico de Londres. Como sabemos, até morrer em Paris em 1891, Pedro II dedicou-se ao estudo sobre textos de línguas mortas. Nas cartas ao Visconde de Tunay o monarca brasileiro relata acerca das suas leituras sobre egiptologia e as traduções dos originais da Bíblia e das Mil e Uma Noites em que se empenhava. Em 1891, durante seu exílio em Paris, Sua Majestade contou com o carinho de outro grande orientalista, o seu quarto mestre de hebraico, Christian Seybold (1859-1921). Esse professor de línguas semíticas morou no Rio de Janeiro e foi membro do “Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” sediado na cidade.

2. Viajar e traduzir

O Imperador D. Pedro II foi um devoto cristão e um profundo crítico da Bíblia. Desde que estudava hebraico em Petrópolis e aprimorava seus conhecimentos da língua com seu primeiro mestre, o cônsul da Suécia no Rio de Janeiro, Leonhard Akerbloom (1830-1896); Sua Majestade traduzia trechos bíblicos dos Salmos, de Isaías, Jeremias, Gênesis e Ruth. Durante a visita de 24

dias a Terra Santa, trabalhou com afinco nas traduções. Sempre achava intervalos para realizar exercícios de tradução com seu mestre de hebraico e sânscrito, o alemão Karl Henning. Horários imprevisíveis e lugares históricos que inspirassem o monarca eram os escolhidos para realizar essas traduções. A primeira tradução dos Atos dos Apóstolos começou depois do almoço às
margens do arroio Dhirani e continuou depois de uma animada festa noturna.

Algumas vezes Pedro II examinava lugares históricos mencionados na Bíblia, mas lamentava-se amargamente de não ter, naquele preciso momento, o texto para traduzir ou ler determinadas passagens. Isso ocorreu na região das aldeias de Naïm e Endor, lugares onde Síssara foi derrotado e morto pela juíza Débora, cujo “Canto de Débora” não foi possível recitar. Obstinado, o monarca queria traduzir o cântico de gloria ao Senhor: começou na minúscula aldeia de Djenine (Jenin) e concluiu em Nablus, com o comentário de que “tinha esquecido bastante o hebraico”.

Geralmente, o monarca traduzia antes de dormir, mesmo depois de uma árdua jornada. Em quase todo lugar, Pedro d’Alcântara revelava sólidos conhecimentos bíblicos, ensaiando digressões filológicas baseadas na onomástica bíblica, para, por exemplo, explicar o nome da histórica “Ponte das Filhas de Jacó”, Guesher Benot iaacov, sobre o rio Jordão. Segundo o versículo em Gn. 32:22, “naquela mesma noite, ele [Jacó] levantou com suas duas mulheres, suas duas servas e seus doze filhos e passou o vau do Jaboc”. Para Pedro II, a ponte adquiriu seu nome de uma corruptela da palavra “Joboc”, que, trocando as letras de lugar deu origem à palavra Jacob. Esse trocadilho é muito curioso com letras latinas, embora as palavras na sua
forma hebraica, não permitam tal especulação.

D. Pedro II também relacionava a leitura e a interpretação da Bíblia às obras de arte visitadas durante suas viagens. Em Gabaon, enquanto revivia o episódio em que Josué ordenou o sol parar, lembrava de ter visto, na Filadélfia, o quadro de um artista francês representando a cena. Traduzir, traduzir, traduzir! Parece que essa atividade se tornou uma verdadeira obsessão. O momento de maior alegria para um cristão é verter do hebraico o Salmo 122 “Vamos subir à Casa do Senhor”, afirma, descrevendo-se ali a chegada dos peregrinos cristãos à Jerusalém.

Outro livro sagrado fascinou sobremaneira o Imperador do Brasil desde sua mocidade, o Livro de Ruth. Trata-se de um romance pastoril lido pelos judeus na festa de Shavuot, data da outorga da Torá no Monte Sinai. A ação transcorre nos antigos campos de Moab, na planície de Jericó. Ali, D. Pedro II olha para as montanhas de Moab e se emociona ao lembrar do texto de Ruth que ele mesmo traduziu para o hebraico.

Durante o retorno de Jerusalém ao porto de Jaffa, hoje Tel-Aviv, o Diário de viagem a Terra Santa cita a planície de Sharon, lugar onde o juiz Sansão, da tribo de Dan, soltou raposas com fachos acesos nas caudas. D. Pedro II encerra seu relato citando a história de Sansão e Dalila, segundo o monarca, um dos capítulos mais curiosos da Bíblia.

3. Uma visita aos judeus samaritanos

Depois de ter visitado Nazaré, a comitiva de D. Pedro II rumou para Djenine, onde pernoitou. Em 25 de novembro, cedo pela manhã, entrou na Samária, um território que muito lhe agradou. Nablus, ou Siquém, uma cidade de ruas estreitas, estava preparada para receber o monarca brasileiro. Como assíduo visitante de templos judaicos, Pedro II conheceu no sábado, a sinagoga frequentada pela seita dos judeus samaritanos. A sinagoga era pequena e Pedro d’Alcântara aguardou pacientemente na porta, enquanto no interior, “homens e meninos de roupa branca” rezavam. Em poucos minutos, foi convidado a entrar. Atendendo a seu pedido, os judeus trouxeram a Torá para fora da sinagoga. O manuscrito de pele de gazela, meio rasgado e com letras bastante apagadas, foi examinado. Alguns defendem que sua antiguidade data de 1.500 a.C, o tempo de Absche filho de Pinéas, filho de Eleazar, filho de Arão. Mas, na opinião de outros, seria do período de Manasses, do Templo de Garizim em 330 a.C, ou mesmo posterior ao nascimento de Cristo.

Apaixonado por manuscritos antigos, Pedro II, três meses antes de chegar a Terra Santa, como já dissemos, tinha inspecionado manuscritos bíblicos e participado de um encontro com orientalistas russos. Na sinagoga dos samaritanos surgiu uma oportunidade única: analisar de perto um manuscrito com caracteres hebraicos. Para ver melhor as letras do manuscrito, pediu que o desenrolassem mais, porém havia ainda linhas que se embaraçavam, e o grande sacerdote samaritano, com um canivete, não quis cortá-las para não infringir o preceito de não trabalhar no sábado. Karl Henning, terceiro mestre de hebraico do Imperador, cortou então as linhas, mas outro judeu prometeu levar ao acampamento dos brasileiros uma folha da cópia do Pentateuco.

O Pentateuco de que trata D. Pedro II estava escrito em letras fenícias, ou cananéias, todas usadas antes do cativeiro da Babilônia em 586 a.C. Deixemos por um instante a antiga sinagoga dos samaritanos e retornemos ao Brasil, mais de um século depois. Em 23 de agosto de 1995 a revista Veja publicou uma nota sob o título “Pergaminho de 24 metros”. A curta matéria, ilustrada com uma fotografia em caracteres hebraicos, informava sobre a existência das três edições mais antigas da Torá: uma no Museu de Israel em Jerusalém, outra nos Estados Unidos e uma terceira no Brasil.

Que sabemos sobre esse texto milenar localizado no Brasil? Tratava-se de um pergaminho de 24 metros de comprimento, dividido em nove rolos de 60 centímetros de altura, todo ele em couro avermelhado de novilho. O livro teria sido copiado por um escriba judeu, sofer, que teria habitava o antigo Egito entre os séculos 1 e 4. Escritos com pigmento vegetal, esses pergaminhos estavam no Museu Nacional do Rio de Janeiro. A nota publicada na revista Veja sugere a formulação da seguinte pergunta: seria esse o manuscrito apresentado ao monarca brasileiro na antiga sinagoga dos samaritanos?

Em visita ao Departamento de Arqueologia do Museu Nacional no Rio de Janeiro para esclarecer essa e outras dúvidas, surgiu meu desapontamento: não é possível afirmar que o manuscrito samaritano citado no Diário de Viagem à Palestina seja aquele do Museu Nacional. Os argumentos que permitem sustentar essa negativa são os seguintes: 1) o Diário de Viagem à Palestina trata de um manuscrito de pele de gazela enquanto o do Rio de Janeiro é todo de couro; 2) as letras do Pentateuco examinado por D. Pedro II dificultavam a leitura e algumas estavam bastante apagadas, os caracteres dos pergaminhos do Museu Nacional estão completamente legíveis; 3) a idade do manuscrito segundo o Diário de Viagem data da época de Absche, Avishua, filho de Pinéias, o sacerdote-mor que atuava no tempo de Josué bin Nun, sucessor de Moisés.

O Pentateuco do Rio de Janeiro teria sido copiado por um escriba (sofer) que viveu no Egito entre os séculos I e IV; a prova mais evidente de que o manuscrito do Museu Nacional não seria o mesmo do Diário de Viagem, reside na forma dos próprios caracteres hebraicos. Por meio da paleografia, é possível concluir que as letras dos escribas samaritanos eram diferentes das letras hebraicas utilizadas pelos escribas judeus. O texto do Rio de Janeiro é perfeitamente legível, enquanto o do Diário não; finalmente, o argumento mais contundente: a promessa dos judeus samaritanos de levar uma cópia do Pentateuco ao Imperador nunca foi cumprida, o que torna ainda mais difícil, a hipótese de que o texto do Museu Nacional seja àquele citado por Sua Majestade D. Pedro II. Certamente, seria necessário um estudo de caráter técnico para avaliar, com precisão, o material do manuscrito, o tamanho e a forma dos caracteres, além das dimensões e dos espaços no próprio texto.

4. A crítica aos monges de Saint Sabbas

O monastério construído em homenagem ao mártir Saint Sabbas (439-532), é um lugar recôndito nas montanhas de Moab, em direção sudoeste de Jerusalém. Para chegar até o convento, caminha-se ao longo do rio Cedrón, cujas ribanceiras têm dezenas de metros de altura. Durante novembro e dezembro, épocas em que o Imperador visitou a região, o leito do rio estava seco. O conjunto do convento é muito antigo e imponente. Ele ficava a três horas de viagem a cavalo de Belém e estava formado de edifícios que parecem agarrados como trepadeiras à ribanceira direita do Cedrón, desembocando no Mar Morto, a maior depressão do mundo. Observando o monastério desde o chão, ele parece fixado às rochas, quase pendurado sobre o abismo. O convento de Saint Sabbas é um labirinto de câmaras e galerias construídas em pleno deserto.

O padre Samuel Manning (1822-1881) visitou o lugar em 1873 e afirmou: “only an inmate of the convent can find his way from one part to another”, ou seja,somente um morador do convento pode achar o caminho de um lugar a outro. O Diário de Viagem à Palestina localizado no Museu Imperial de Petrópolis relata que, em 29 de novembro de 1876, a comitiva de D. Pedro II divide-se temporariamente, pois o caminho até Saint Sabbas seria difícil, as gargantas não permitem uma viagem com tarantuas, liteiras, e o regimento desse lugar sagrado proíbe terminantemente a entrada de mulheres no convento. Afinal, mulheres não faltavam na delegação brasileira composta por quase 200 pessoas, entre elas a própria esposa do monarca, Dona Teresa Cristina, e suas damas de honra na Câmara Imperial: Dona Josefina da Fonseca, e sua criada de quarto, Dona Joaninha. O rígido regulamento, a reclusão e o complicado acesso, geraram problemas. Segundo consta, certa vez ocorreu um misterioso massacre de monges no lugar. Além disso, ninguém poderia ser recebido no monastério sem a permissão oficial da maior autoridade religiosa: o Patriarca Grego de Jerusalém.

O Diário de Viagem à Palestina registra a entrada do Imperador e de seus súditos no recinto. Ela foi solene, sendo recebido com repiques e duas tochas acesas. O encontro de D. Pedro II com os moradores do convento foi tranquilo. O cheiro de incenso impregnava seus largos corredores e os 60 frades gregos esperavam-no com certa impaciência. O soberano surpreendeu-se com vários bandos de melros, cujos ninhos ocupavam os buracos da ribanceira oposta e comiam na mão dos frades. Os monges eram gregos cismáticos. Regidos pela regra de São Basílio, os ascetas possuem uma capela minuciosamente examinada pelo monarca. O exterior do convento é um montículo de pedras, meschakid, aproveitando as grutas do rochedo. Os frades utilizavam pequenos espaços do rochedo para construir minúsculas casas de madeira e plantar flores e arbustos.

Num outro canto do convento, Pedro II distingue um dos símbolos do monastério: a histórica palmeira de Saint Sabbas, que segundo o próprio imperador “é uma palmeira bastante alta que se curva para trás como que precisando do encosto da parede”. Já dentro do convento, Sua Majestade pediu para conhecer a biblioteca. Sob um silencio constrangedor, porque os monges nada explicavam; ele folheou manuscritos dos Evangelhos datados do século 10, coleções de sermões e outros textos sagrados guardados numa pequena sala. O Imperador do Brasil queria obter mais informações sobre aqueles manuscritos, porém, segundo consta, nada obteve dos anfitriões. Depois de muita insistência, o único frade que falava o francês, permitiu que o Dr. Karl Henning examinasse uma outra coleção de livros. Ele garimpou vários manuscritos que o frade afirmou existirem somente impressos. Segundo o monarca, “tal repugnância poder-se-á explicar pela vergonha que eles tenham de não haverem aproveitado, por ignorância, as riquezas literárias que possuam”.

As palavras do Imperador ecoavam com força e indignação. Embora o Levante fosse francófono, apenas um dos 60 monges falava fluentemente o francês, serviu de intérprete e se convenceu que ele como os demais do monastério, não conheciam suas coleções de manuscritos, passando momentos de constrangimento intelectual. Como então estudavam? Como se permitiam ignorar textos sagrados de seu próprio acervo?

Através de um irônico depoimento de Samuel Manning, religioso britânico que visitou os monges gregos três anos antes da visita do chefe de Estado brasileiro, sabemos que esses ascetas eram pouco hospitaleiros. O mesmo padre Manning acrescentou em The Holy Fields: Palestine sobre a biblioteca do monastério: “Though there is a valuable library, it seems to be entirely unused; indeed, a majority of the ascetics are unable to read, and their only recreation consists in drinking raki, and in feeding the birds and jackals, which are very numerous”, ou seja, apesar de existir uma valiosa biblioteca, ela me parece completamente inútil, pois a maioria dos ascetas é incapaz de ler; e o seu único passatempo consiste em beber raki e alimentar pássaros (texto:melros) e chacais que são muito numerosos.

A escritora, filósofa e jornalista britânica Harriet Martineau (1802-1876), renomeada intelectual da época vitoriana, fez também entre outubro de 1846 e junho de 1847 uma viagem ao Oriente Médio, visitando Egito, Líbano, Síria e Palestina. Estudiosa do Egito antigo e dos lugares bíblicos, Martineau foi uma mulher que conseguiu burlar o regulamento e visitar o monastério, expressando com tristeza seu desapontamento sobre os habitantes do convento Saint Sabbas. Em depoimento registrado em Eastern Life (1848) chegou a afirmar de forma contundente e categórica: “[…] the monks are too holy to be hospitable”, ou seja, os monges são demasiadamente sagrados para serem hospitaleiros. Realmente, tudo indica que santidade e hospitalidade não marchavam juntas entre os moradores.

Como constatamos, a opinião de Pedro d’Alcântara, o depoimento da escritora Harriet Martineau e a afirmação do clérigo inglês Samuel Manning, coincidem. A ignorância e o despreparo dos monges de Saint Sabbas eram inegáveis. Após visitar o monastério, a comitiva imperial continuou sua peregrinação pela Terra Santa, rumo à cidade de Jerusalém.

Considerações finais

Analisamos, aqui, quatro momentos que nos permitem entender a cálida relação que tinha Pedro II para com os textos judaicos, sejam Bíblias, pergaminhos ou manuscritos hebraicos antigos. A visita à Universidade de São Petersburgo serviu para conhecer o acervo de livros e manuscritos da instituição, mas acima de tudo, para difundir o apelido de “Rei sábio” nas distanciadas terras russas. Sua curiosidade intelectual e conhecimento impressionaram os orientalistas que o consideravam uma sumidade nas diferentes áreas do saber. A arte de traduzir a Bíblia esteve presente na peregrinação pela Terra Santa. Orientado pelo seu fiel professor de hebraico Karl Henning, D. Pedro d’Alcântara fez vários exercícios de tradução. Fiel cristão, a sua paixão pela Bíblia transbordava em todo momento. Ele o motivou permanentemente a traduzir trechos bíblicos de interesse. Visitar uma sinagoga dos samaritanos foi também uma aventura única, jamais vivenciada antes pelo monarca. Essa experiência ímpar possibilitou a D. Pedro II entrar em contato direto com uma faceta da comunidade judaica na Terra de Israel. Finalmente, a rápida visita ao monastério de Saint Sabbá, nas proximidades de Jerusalém, serviu para que o Imperador percebesse que nem todos,
incluindo aqui os monges guardiões, foram capazes de penetrar o conteúdo sagrado dos manuscritos existentes nas bibliotecas de seus próprios conventos.

Referências

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